Entretempos https://entretempos.blogfolha.uol.com.br Artes visuais diluídas em diferentes suportes, no Brasil e pelo mundo Sun, 28 Nov 2021 14:42:12 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Um Brasil para os brasileiros – Ensaio Palavra-Imagem com Carolina Maria de Jesus https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/um-brasil-para-os-brasileiros-ensaio-palavra-imagem-com-carolina-maria-de-jesus/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/um-brasil-para-os-brasileiros-ensaio-palavra-imagem-com-carolina-maria-de-jesus/#respond Sun, 26 Sep 2021 10:14:46 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Meada-Antonio-Obá.-Credito-Maria-Clara-VillasInstituto-Moreira-Salles-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22509 Ontem, 25, inaugurou no IMS a exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros” sobre a vida, a obra e o legado da fundamental escritora Carolina Maria de Jesus (catadora de papel e autora do clássico “Quarto de Despejo”, 1960), organizada pelo antropólogo Hélio Menezes e pela historiadora Raquel Barreto. Neste domingo, eu publico alguns trechos de inúmeros registros de Carolina Maria de Jesus. Com obras inéditas dela, entre fotografias, matérias de imprensa, vídeos e outros documentos, a exposição inclui também obras de cerca de 60 artistas que dialogam com os temas investigados por Carolina. Com seus manuscritos como fio condutor, a equipe de curadoria comenta a importância do livro: “Em Um Brasil para os brasileiros, a autora elabora narrativas biográficas e autoficcionais ao rememorar sua infância, apresentando pontos de vista de personagens que foram apagadas das narrativas oficiais escritas, majoritariamente por autores homens e brancos. Carolina faz assim um interessante contraponto aos cânones literários vigentes no Brasil.” Urgente e fundamental para estes e todos os tempos.

Mulambö
Bandeira Mulamba de Ouro, 2021
Costura em tecido. Coleção do artista. (Foto:Maria Clara Villas / Instituto Moreira Salles)

Quando eu morrer
Não digam que fui todo
Rebotalho
Que vivia à margem da vida
Digam que eu procurava
Trabalho
E fui sempre preterida

Digam ao povo brasileiro
O meu sonho era ser escritora
Mas eu não tinha dinheiro
Para pagar uma editora

Eu não tenho complexo de cor, eu gosto de ser preta. Se Deus enviasse-me branca creio que ficava revoltada. Quando leio nos jornais ‘Carolina Maria de Jesus, a preta da favela’, fico contente. Favela é lugar dos pobres, é a manjedoura da atualidade. Cristo nasceu numa manjedoura, se renascer será numa favela. O recanto dos que não podem acompanhar o custo de vida.

O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.

(Trecho proveniente do livro Quarto de despejo.)

“Um dia apoderóu-se de mim um desejo de escrever: – Escrevi – ”

– Trecho extraído do manuscrito Um Brasil para os brasileiros. Acervo Instituto Moreira Salles.
“Devemos escrever a realidade. A verdade. Revelar os fatos que córrómpem um País”

– Trecho extraído de manuscrito do arquivo Público Municipal de Sacramento.

“Inconcientemente mostre o são paulo por dentro. O universo pensava que são paulo era um atleta. Um fisico fórte. e eu apresentei suas chagas_ As favelas. A chaga moral de um país.”
– Trecho extraído de manuscrito do arquivo Público Municipal de Sacramento.
“Após a libertação dos escravos e a Proclamação da República, o que restou para o Brasil foi um saldo de analfabetos.”
– Trecho extraído de manuscrito do arquivo Público Municipal de Sacramento.

Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros
Abertura: 25 de setembro de 2021
Visitação: até 30 de janeiro de 2022
IMS Paulista
Entrada gratuita

A exposição dedicada a Carolina Maria de Jesus integra também a programação expandida da 34ª Bienal de São Paulo, que poderá ser visitada gratuitamente no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, de 4 desetembro a 5 de dezembro de 2021.

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Sem regras nem teoria: os tapetes feitos de paixão da coreógrafa Noa Eshkol https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/23/sem-regras-nem-teoria-os-tapetes-feitos-de-paixao-da-coreografa-noa-eshkol/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/23/sem-regras-nem-teoria-os-tapetes-feitos-de-paixao-da-coreografa-noa-eshkol/#respond Thu, 23 Sep 2021 10:59:28 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/noa_eshkol_01-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22484 Por Iara Biderman

Tapeçarias flutuam no salão sem forro e com vigas aparentes da Casa do Povo. Os tapetes foram criados coletivamente por integrantes do Chamber Dance Quartet, fundado por Noa Eshkol, coreógrafa nascida em 1924, em um kibutz na Palestina.

Noa Eshkol na Casa do Povo (Foto: Edouard Fraipont)

Costurados sobre lençóis ou mantas, os retalhos coloridos recolhidos nas ruas sugerem formas, padrões, simetrias inusitadas – como os movimentos de uma dança.

Noa Eshkol, Heavy Soil Fields, c. 1980, Cortesia da Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel, and Neugerriemschneider,
Berlin.© The Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel
(Foto: Jens Ziehe, Berlin)

São também uma não-dança. Começaram a ser criados em 1973, quando um dos dançarinos, o único homem do quarteto, foi convocado para a Guerra de Yom Kippur e Noa decidiu que o grupo não dançaria até ele voltar. Enquanto esperavam, ela e as outras integrantes do grupo juntavam os panos descartados e teciam.

Penélopes modernas, não desfaziam o trabalho do dia durante a noite, como a rainha grega à espera de Ulisses. Agiam quase intuitivamente, sem estratégia nem metas precisas, desprovidas de “explicação ou ideologia”, como afirma Eshkol em seu único texto sobre as obras têxteis.

Noa Eshkol, Insects in the Sun, 1990, Cortesia da Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel, and Neugerriemschneider,
Berlin.© The Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel
(Foto: Jens Ziehe, Berlin)

“[O trabalho] começou por um anseio totalmente pessoal de fazer alguma coisa, algo que não envolvesse uma decisão intelectual”, escreve a artista no texto intitulado “Sem regras, sem teorias – somente paixão”.

Se não havia regras racionais, o trabalho proposto pela coreógrafa era conduzido por algumas restrições: os tecidos não podiam ser comprados, só eram usados retalhos, trapos e roupas descartadas recolhidas de forma fortuita, que não podiam ser cortadas: as peças eram apenas descosturadas para serem aplicadas aos painéis.

“O material é ‘vulgar’, vernacular: tecidos encontrados no dia a dia, disponíveis em qualquer lugar em quase todas as culturas atuais, de forma que passam despercebidos a maior parte do tempo, quase como o ar que respiramos.”

Noa Eshkol, Sunsets, 1975, Cortesia da Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel, and Neugerriemschneider,
Berlin.© The Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel
(Foto: Jens Ziehe, Berlin)

Quase dançantes em suas composições abstratas, em suas formas tão orgânicas descosturadas de mangas, colarinhos e outras partes de roupas que redesenham as formas do corpo. Recompostas nas tapeçarias, lembram plantas, riachos, astros, aves, peixes. Ou seriam apenas gravatas desconstruídas?

A produção iniciada no tempo em suspensão do início da guerra de 1973 continuou mesmo depois da volta do soldado-bailarino e faz parte do acervo da Noa Eshkol Foundation, fundada por integrantes do quarteto de dança após a morte da coreógrafa, em 2007.

Noa Eshkol, Yellow Tree, 1998, Cortesia da Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel, and Neugerriemschneider,
Berlin.© The Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel
(Foto: Jens Ziehe, Berlin)

Sediada na casa onde Noa viveu, em Holon (Israel), a fundação também mantém todo o material sobre o sistema de notação do movimento, espécie de partituras ou guias gráficos de coreografias elaborado por Noa e o arquiteto Avraham Wachman na década de 1950.

Parte desse material também está na Casa do Povo, na exposição Corpo Coletivo, que integra a programação da 34ª Bienal de São Paulo, neste ano espalhada por espaços da cidade em uma rede de mostras paralelas de artistas participantes.

Noa Eshkol na Casa do Povo (Foto: Iara Biderman)

“Recebemos o convite da Bienal e a sugestão de realizar uma mostra com as obras de Noa. Pesquisamos seu trabalho, para ver o que tinha mais relação com a Casa do Povo. Há muita coisa, como o fato de ela trabalhar coletivamente, propor novas práticas pedagógicas. Além das tapeçarias com sobras de confecções: todo dia às 19h vemos sacos de retalhos nas ruas do Bom Retiro [onde fica o centro cultural]”, diz Marilia Loureiro, curadora da exposição.

Noa Eshkol
Musical Carpet – Fugue, 1978, Cortesia da Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel, and Neugerriemschneider,
Berlin.© The Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel
(Foto: Jens Ziehe, Berlin)

Há um processo para se chegar aos tapetes. É preciso subir um lance de escadas para entrar nos bastidores do trabalho de Noa. A primeira parada da exposição não mostra as obras tecidas, mas o ambiente no qual foram criadas. São cápsulas arquivísticas (método de organização usado pela Fundação Noa Eshkol) com fotos de encontros, viagens, Noa conversando em casa, quase sempre com um cigarro na mão – uma Pina Bausch no kibutz. E livros, catálogos, partituras de movimento desenhadas por crianças e filmes delas dançando passando em aparelhos antigos de TV.

Noa Eshkol na Bienal de SP (Foto: Iara Biderman)

Os documentos vindos de Israel conversam com outras cápsulas de arquivo, criadas na Casa do Povo: fotos e trabalhos das crianças da escola progressista que existiu no centro cultural do Bom Retiro, jantares comunitários, cartazes mimeografados sobre as atividades.

Noa Eshkol, Vase with White Apples, 1997, Cortesia da Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel, and Neugerriemschneider,
Berlin.© The Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel
(Foto:Jens Ziehe, Berlin)

“Procuramos as pontas onde o trabalho de Noa encontra o da Casa do Povo, criando um diálogo entre a história da artista e a da instituição. É memória viva: usar o passado como ferramenta do presente para pensar o futuro”, diz Loureiro.

Noa Eshkol na Bienal de São Paulo (Foto: Iara Biderman)

Mais um lance de escadas e o preto e branco dos documentos e fotos ganha outro sentido na explosão de cores das tapeçarias suspensas. Contraste e continuidade da dança minimalista e precisa do Chamber Dance Quartet, os tapetes são exuberantes, com formas que parecem brotar incontidas: o sol no lago e mil sóis se pondo, maçãs brancas transbordando de vasos, insetos, notas de uma música clássica numa partitura de retalhos.

No dia 15 de outubro, os tapetes se moverão, voarão do Bom Retiro ao Ibirapuera, para encontrar outras tapeçarias de Noa, expostas no pavilhão da Bienal. O movimento continua, agora numa conversa à distância entre as cápsulas de arquivo e as obras têxteis. A parte “acervo em diálogo” da exposição de Noa Eshkol fica na Casa do Povo e o conjunto de tapeçarias estará reunido na Bienal. As mostras nos dois espaços estão abertas à visitação até o dia 5 de dezembro.

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O dentro e o fora sem fronteiras – A obra de Amilcar de Castro no Mube https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/07/15/o-dentro-e-o-fora-sem-fronteiras-a-obra-de-amilcar-de-castro-no-mube/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/07/15/o-dentro-e-o-fora-sem-fronteiras-a-obra-de-amilcar-de-castro-no-mube/#respond Thu, 15 Jul 2021 12:09:38 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/IMG_2493a-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22374 “O pintor “emprega seu corpo”, diz Valéry. E, de fato, não se percebe como um Espírito poderia pintar. É oferecendo seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura. Para compreender essas transubstanciações, é preciso reencontrar o corpo operante e atual, aquele que não é uma porção do espaço, um feixe de funções, que é um trançado de visão e de movimento.

Basta que eu veja alguma coisa para saber juntar-me a ela e atingi-la, mesmo se não sei como isso se produz na máquina nervosa. Meu corpo móvel conta com o mundo visível, faz parte dele, e por isso posso dirigi-lo no visível. Por outro lado, também é verdade que a visão depende do movimento. Só se vê o que se olha. Que seria a visão sem nenhum movimento dos olhos, e como esse movimento não confundiria as coisas se ele próprio fosse reflexo ou cego, se não tivesse suas antenas, sua clarividência, se a visão não se antecipasse nele? Todos os meus deslocamentos por princípio figuram num canto de minha paisagem, estão reportados ao mapa do visível. Tudo o que vejo por princípio está ao meu alcance, pelo menos ao alcance de meu olhar, assinalado no mapa do “eu posso”. Cada um dos dois mapas é completo. O mundo visível e de meus projetos motores são partes totais do mesmo Ser.

Essa extraordinária imbricação, sobre a qual não se pensa suficiente, proíbe conceber a visão como uma operação de pensamento que ergueria diante do espírito um quadro ou uma representação do mundo, um mundo da imanência e da idealidade. Imerso no visível por seu corpo, ele próprio visível, o vidente não se apropria do que vê; apenas se aproxima dele pelo olhar, se abre ao mundo. E esse mundo, do qual ele faz parte, não é, por seu lado, em si ou matéria. Meu movimento não é uma decisão do espírito, um fazer absoluto, que decretaria, do fundo do retiro subjetivo, uma mudança de lugar milagrosamente executada na extensão. Ele é a sequência natural e o amadurecimento de uma visão… Digo de uma coisa que ela é movida, mas, meu corpo, ele próprio se move, meu movimento se desenvolve. Ele não está na ignorância de si, não é cego para si, ele irradia de um si…”

O olho e o espírito, de Merleau Ponty – texto sugerido por Gal Neves, curadora-chefa do Mube, para nossa conversa.

Amilcar de Castro e Paulo Mendes da Rocha, dois ícones. Sim, isso todo mundo sabe. Juntos, atravessados um pelo outro no Mube. Essa é a novidade. Ou não, afinal a exposição “Amilcar de Castro, na dobra do mundo” com curadoria de Guilherme Wisnik está em cartaz desde fevereiro. Uma mostra para ir e voltar, sentir e revisitar quantas vezes forem necessárias. Depende do clima, da luz, do seu estado de espírito. Fui, a primeira vez, em um sábado, numa tarde de outono com minha mãe. Na segunda, fui com meu sobrinho de 6 anos, para vivenciar uma nova experiência e novas perspectivas.

As esculturas a céu aberto, entrelaçadas com a arquitetura de Paulo me fizeram refletir e muito sobre Gaston Bachelard em “A poética do espaço”, entre suas portas e janelas, entradas e saídas, encontros e desencontros. As grandes estruturas de aço corten, sem cortes, sem junções inventadas, apenas placas que se moldam e são moldadas pelo espaço são de uma magnitude ímpar. Sentimo-nos parte da obra e deixamo-nos permear por ela. Dois corpos interagindo em sua mais alta potência. São caminhos sugeridos, portais propostos e um esconde-esconde entre o eu e a obra. São formulações de espaço importantes para este momento no qual nossas estratégias e nossos modos de circulação foram muito alteradas e restritas.

Uma ideia de espaço da experiência na qual as ebulições culturais efervescentes e políticas tem nosso corpo atuando diretamente. O dentro e o fora da obra estão sem fronteiras. É pelo espaço e no espaço que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas permanências. O inconsciente permanece nos locais, as lembranças são imóveis, dizia Bachelard. Ele discute que as memórias não se situam no tempo, mas em espaços que têm a função de “conter” determinado tempo. Por isso a importância do espaço para a memória e o devaneio de cada corpo.

“Ele transforma a obra em um espaço de compartilhamento – posso estar inundada pela obra do Amilcar, mas eu acho que a gente vive um momento no qual nossos espaços de trânsito, de circulação, de encontro, ganharam uma complexidade que a gente não imaginava. Essa simples circulação de ar, essas forças que animam a ideia de espaço… tudo foi muito transformado pela pandemia. Tenho a sensação de que por conta de tudo isso, um trabalho como do Amilcar, que parece ter no DNA uma articulação de espaços, mexe muito mais com a gente neste momento.” Comenta Gal Neves, curadora do Mube, com quem conversei na última semana.

O corpo humano não é só algo que ocupa um lugar no espaço, mas também articula espaços. Somos videntes e visiveis e esses espaços todos se animam. Tanto dentro como fora, trazem outro vigor para o trabalho de Amilcar. Essa porosidade com o espaço da cidade, a avenida, o jardim… Paulo dizia que a área externa era uma área expositiva. O dentro e o fora como um fluxo, um espaço movente.

“Existe uma elementaridade do gesto, como um gesto de extrema experimentação e desafiador como poética do artista e por um rigor. Um gesto de extrema liberdade. Esse fluxo dentro fora que tem a dimensão corporal também tem um traço de liberdade. São frestas. Ele convoca o tempo inteiro a gente a novos olhares” devaneia Gal.

“O Paulo parece que sempre sonhou com esse museu habitado pelas obras do Amilcar. Ele mesmo testou os posicionamentos das obras, pensou nas formas que os trabalhos iam ter. A cidade é o lugar do aprender, para o Paulo. A ideia de museu para ele é uma ideia pedagógica e trazer o Amílcar é acentuar o desejo dele. A gente pensa o espaço do museu como uma pele. Uma pele ao mesmo tempo porosa ao trabalho e que propõe um embate, uma fricção. Não é um diálogo que se pretende harmonioso, mas que é construído na fricção. É bonito pensar nos materiais, nas linhas. São linhas que contornam o trabalho e são linhas que o trabalho faz o espaço ser contornado”. Gal Neves

Rodrigo de Castro, filho de Amílcar me conta que Paulo e seu pai nunca se encontraram em vida, mas tinham tudo que era necessário para terem um diálogo potente. “Parece para mim, que aquelas esculturas encontraram um lugar onde tudo dá certo e é tudo perfeito. Tinham que ficar lá para sempre. Quando vi a montagem, vi que tinha um pensamento de ambos os lados que convergem para uma mesma coisa. A arquitetura do Paulo no vão livre do Mube, com aquelas linhas… ali se estabelece uma conversa de imediato com os vãos de luz que surgem dentro das esculturas do Amílcar. Esses vazios que surgem nas sobras de imediato começam a interferir no visual do espectador. Quando você anda embaixo da obra esses vãos de luz vão se modificando, criando novas perspectivas e novas maneiras de presenciar a obra de arte. O Mube estabelece com a escultura uma mesma linha de pensamento. A linha do concreto do vão vazio fazem com que as obras e a arquitetura formem um único conjunto.”

Claro que não é só nessa mostra que essa porosidade entre corpo e espaço acontece, mas precisamos estar despertos a esses acontecimentos de troca, de rastros, de viver e ser vivido, de sentir e ser sentido. Nossos corpos interagem com a magnitude de suas obras que parecem serem layoutadas e encaixadass de forma precisa no terreno de Paulo. Existe um entrar e sair, habitar e ser habitado constante nessa visita. Ou nessa visita plural. Existe o eu e o todo e esse plural coletivo que surge durante essa experiência potente que integra obra e museu, artista e público, cidade e humanidade, criando uma simbiose geradora de novas possibilidades de existências e experiências no agora.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Ontem, Hoje, Amanhã – As potências fabulosas de José Damasceno no tempo e no espaço https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/06/17/ontem-hoje-amanha-as-potencias-fabulosas-de-jose-damasceno-no-tempo-e-no-espaco/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/06/17/ontem-hoje-amanha-as-potencias-fabulosas-de-jose-damasceno-no-tempo-e-no-espaco/#respond Thu, 17 Jun 2021 09:05:45 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/método-para-arranque-e-deslocamento-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22310 — A quem mais amas tu, homem enigmático, dizei: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?

— Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.

— Teus amigos?

— Você se serve de uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhecido.

— Tua pátria?

— Ignoro em qual latitude ela esteja situada.

— A beleza?

— Eu a amaria de bom grado, deusa e imortal.

— O ouro?

— Eu o detesto como vocês detestam Deus.

— Quem é então que tu amas, extraordinário estrangeiro?

— Eu amo as nuvens… as nuvens que passam lá longe…

as maravilhosas nuvens!

Charles Baudelaire

Condensador Cromático, 2021 (Foto: Filipe Berndt)

Quando me preparei para o papo com o artista José Damasceno, eu tinha em mente alguns pontos formais de sua obra, conceitos já trabalhados e conhecidos por todos que a admiram. Como sempre, criei um mapa para nossa conversa com palavras e conceitos soltos. No primeiro instante, fomos atravessados por potências fabulosas de uma fala complementar a outra e, mais do que uma entrevista, devaneamos e trocamos os afetos e as linhas de fuga que compreendem a arte e os dias que habitamos.

Um dos maiores nomes da arte brasileira, desde o início dos anos 1990, Damasceno teve sua obra exposta em importantes instituições como o Museu de Arte Contemporânea de Chicago, o Reina Sofia em Madrid e o Museu de Arte Moderna em São Paulo, bem como nas Bienais de Veneza, Sydney e São Paulo.

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

 

 Comecei com uma frase da Suely Ronik que diz: “Cartografar, portanto, não é criar mapas, desenhar o visível, e sim acompanhar a latitude e a longitude das intensidades dos afetos, marcar e remarcar a multiplicidade rizomática dos movimentos.” E ele logo me trouxe um poema do Baudelaire e me contou sobre sua exposição no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia em  Madrid que se chamava “coordenadas e aparições”, em 2008.

“Nove coisas aconteciam no museu todo e me perguntei: qual era o sentido mais essencial da ideia de espaço, que possa defini-lo? Seria a existência de duas coordenadas diferentes. O espectador percorria o museu e ia identificando uma trajetória, entendendo uma certa topografia, um espaço que precisava ser percorrido. Depois me dei conta que isso é o que faço. Na pinacoteca – a exposição ‘Moto-contínuo’ fica em cartaz até 30 de agosto, com curadoria de José Augusto Ribeiro – você tem um intervalo de tempo considerável e ao longo desse processo foram também estabelecidas coordenadas que são as obras e isso vai criando espaço. Ele vai sendo descoberto a medida que vai sendo inventado.”

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

Um projeto como esses é uma oportunidade de repensar lugares, percursos e posições, bem como a localização da arte e a sua relação com o espectador. Damasceno é mais um explorador e sua missão é iluminar e descobrir esses entre espaços, com o desafio intermitente da compreensão do mesmo: suas qualidades, propriedade e mistérios. Uma microfísica do imaginário.

Para ele, o tempo é um dos mistérios insondáveis e nós somos o tempo. E a obra de arte possui um tempo próprio, particular que não está subjugado a uma questão cronológica e usual. Carrega todo um legado poético, latente e vivo. Cada contato com uma obra é único, se difere entre o próprio tempo do espectador, o espaço que habita e o que carrega em si de afeto. “Literalmente a mostra na Pinacoteca é uma retrospectiva, reunindo diferentes tempos meus e das obras, com suas particularidades e circunstâncias. Existe uma questão de vizinhanças que é surpreendente”, comenta ele.

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

“Você tá me dando onda, Cassiana. Já estou querendo responder tudo”.

Em sua obra “Organograma” com as palavras ontem, hoje e amanhã, ele sugere que cada um experimente esse organograma na exposição. Parece que a gente vai criando uma espécie de tecido, uma topografia onde as coisas vão acontecendo num fluxo contínuo, orgânico e misterioso. “Uma coisa que me acompanha e é muito presente na minha vida são meus livros e os tempos que nele existem. Uma biblioteca é um lugar espiritual por excelência e você escolhe ter uma relação com todas aquelas circunstâncias e tempos diante de sua atenção. Eu levo em consideração o legado poético, a fim de experimentá-lo, compreendê-lo e vive-lo.”

“Por exemplo, nós agora estamos conversando. E temos vários encontros e conversas ao longo da vida e cada uma tem seu tempo e seu lugar próprio. Aquele lugar que ela ocupou existe para sempre. Tenho experimentado isso ao longo da vida, em me dar conta disso…”

Monitor Líquido, 2021
(Foto: Filipe Berndt)

José me conta que o enigmático é uma condição incontornável e que vivemos em um mundo que não compreendemos e isso faz parte do ímpeto que nos faz mover cada coisa, despertados pela curiosidade, atenção, com a mente sob o signo da interrogação, como dizia José Ortega y Gasset. Ao mesmo tempo que nos entregamos aos acasos, aos encontros e aos fluxos misteriosos e indomáveis. É essa a presença que ele considera imediata de um mistério movente. “E quando você me pergunta da essência da matéria existem várias formas de pensar isso. Em relação a arte, é um elemento essencial quando aquilo que é inorgânico ganha vida e também você pode pensar uma espécie de um novo tipo de densidade. Uma densidade que compreende a ideia também. Pensar onde o objeto e ideia se confundem. Isso eu creio que traz um sentido da graça e traz vida”.

Na obra “cinema elástico”, composto por pregos e elástico, por exemplo, uma série de hipóteses se apresentam e o espectador não sabe bem o que acontece a sua frente. São micro tensões que tem um sentido de uma espécie de coisa pré-formal, estrutural,  anterior a uma narrativa, de forma bastante elementar. É uma obra que acontece no entre. “Esse ‘entre’ me interessa muito, esse lugar de passagem, de correspondência me interessa bastante. Entre o mundo material e o espiritual. Existe sempre essa tentativa de compreensão que traz uma espécie de  comunicação de um lugar ao outro”.

Solilóquio, 2001 – Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021 (Foto: Jamerson Lima)

Ele tem um interesse especial nesse espaço poético de trânsito entre nós, da imaginação. O background de arquitetura o acompanha mesmo que de forma silenciosa. Exercícios para que algo aconteça nesse espaço entre nós. Pensar que esse lugar real pode ser. O espaço como uma forma de experimentar e celebrar a arte.

Existe sempre o acaso num espaço expositivo, segundo ele. Reflete que o mundo é imenso ao nosso redor, inclusive em nossos corpos e não temos consciência absoluta disso. O inconsciente existe e o acaso idem. Portanto, é algo que precisamos considerar em nossas vidas, em nossas ações e processos, permitindo as questões todas que surgirem e ir dançando conforme as situações que se apresentam. “As vezes em determinado projeto tem uma execução extremamente fiel ao que foi planejado e tem vezes que há imposições onde não há escolha”.

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

Para ele, é importante reconhecer, considerar e valorizar a relação entre acaso e método, chance e arbítrio para perceber e buscar as soluções. A escultura, por exemplo, funde espírito e matéria, objeto e ideia, transformação do inorgânico em algo vivo, a substância em espírito. “Ser livre é ser responsável”, citou ele com essa frase de Maria Zambrano.

“Nós, nesse início do século XXI, sabemos que devemos nos tornar mais lúcidos, mais espirituais e mais responsáveis do que nunca e nós sabemos, ao mesmo tempo, que nunca a humanidade esteve tão cega, embrutecida e irresponsável. Nós o sabemos porque constatamos que quase toda a vida social é controlada por um populismo industrial que destrói a consciência individual e coletiva”. Bernard Stiegler

“A crise global neoliberal deflagra em escala exponencial desamparo e precariedade. A pandemia esgarça, precariza e desestrutura os laços e as relações sociais. Vivemos uma tragédia político-sanitária, uma tragédia simultânea, um desafio mortal literalmente, penso sempre diante de circunstâncias tão hostis e ameaçadoras em grande escala numa alternativa viável em termos de uma micropolítica e deliberadamente trabalhar para melhorar meu entorno, cuidar daquilo que esteja a meu alcance em relação aos demais e ao meu habitat psíquico e também espacial onde prevaleçam respeito, consideração e afeto e assim fortalecer o sentido de solidariedade. Está tudo em aberto e devemos repensar o sentido de união e procurar produzir esclarecimento e discernimento”.

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

É preciso prezar o respeito, a consideração e o afeto, ligando um ponto a outro pelo amor. Como numa teia que vai ganhando corpo à medida em que se conecta em um fluxo contínuo de encontros, trocas, silêncios, essências, acasos e precisão. Muita precisão para nos entrelaçarmos nesse embaralhado estético, dissonante e que se deixa ser afetado pelo outro e pelo espaço pulsante.

20.04.2017 – RE:PUBLICA – Intervenção do artista plástico José Damasceno nas ruas das cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Av. Presidente Vargas, Centro, Rio de Janeiro. (Foto: PAULO BARRETO)

“O amor nos liga às coisas. Trata-se de uma real conexão, uma ampliação da individualidade que se relaciona e absorve essas outras coisas amadas. Aquilo que amamos se torna imprescindível e que não podemos viver sem sua presença e logo as propriedades do que amamos se tornam assim também para nós e então o amor vai ligando uma coisa a outra em uma estrutura essencial”. José Ortega y Gasset.

“Tenho orgulho do que você está me trazendo. Dá uma esperança para a gente… você está apostando naquilo que te move: afeto e respeito. Gostei de a gente ter trocado”. Disse-me ele, terminando nossa conversa.

Obrigada Damasceno, por esta conversa tão potente. <3

Carimbo, 2021

 

 

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Ficções Coloniais – Denilson Baniwa na nova edição da revista ZUM, do Instituto Moreira Salles https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/20/ficcoes-coloniais-denilson-baniwa-na-nova-edicao-da-revista-zum-do-instituto-moreira-salles/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/20/ficcoes-coloniais-denilson-baniwa-na-nova-edicao-da-revista-zum-do-instituto-moreira-salles/#respond Thu, 20 May 2021 11:33:35 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/ZUM20_Baniwa_01-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22276 A convite da ZUM, o artista Denilson Baniwa concebeu um trabalho inédito para a revista que será lançada hoje, (quinta-feira) em uma live às 18h, transmitida nos canais de YouTube e Facebook da ZUM. Haverá um debate com Allan Weber e Lita Cerqueira. Na série “Ficções coloniais, Baniwa faz intervenções irônicas em fotografias dos povos indígenas feitas por Theodor Koch-Grünberg no século XIX, inserindo ícones da cultura pop, como King Kong, E.T. e Alien. Numa inversão de perspectivas, o artista comenta os processos de expropriação das culturas nativas: “O mundo ocidental imagina ataques alienígenas que destroem gente e cidades porque foi isso que fez ao longo dos tempos e teme um revide histórico. Pois, para os diversos povos originários deste planeta, um dia os alienígenas foram o mundo ocidental.” 

Na semana passada, planejamos uma conversa que no final acabou virando um minipapo, quando sugeri a ele que escrevesse em um texto corrido sobre esse novo ensaio feito para a ZUM partindo de algumas palavras e sentimentos: pop x tradição, expectativa x realidade, alienígenas x humanos, fotografia como janela da alma, fotografia x cinema, memória x futuro, tempo-espaço-hoje, terminando com a frase: “como você está hoje, no meio de tudo que vivemos, sonhamos, lutamos e acreditamos?”

Ficções Coloniais, de Denilson Baniwa

Denilson:

Quando o Thyago Nogueira, editor da Zum! me convidou para participar do projeto, senti uma continuidade das conversas que já havíamos feito em outros momentos, a exemplo do convite para o Projeto IMS Convida, onde tecemos assuntos como imagética e povos indígenas e surgiu a ideia de trabalhar com os registros fotográficos do Theodor Koch-Grünberg, etnólogo e fotógrafo alemão. Não por acaso, eu escolhi trabalhar com estes registros, Koch-Grünberg tem uma importância muito grande para o território onde eu nasci, região do Rio Negro, interior do Amazonas.

Dentre as centenas de registros fonográfico, fotográficos, gravuras, diários e entrevistas, uma se destaca e que de certa forma mudou o Brasil: o diário de Koch-Grünberg onde Mário de Andrade retirou as anotações para criar a personagem Macunaíma, que acabou virando o famoso livro e posteriormente filme, que ainda hoje repercutem em lugares tão distantes tanto nas mesas de um boteco no Rio de Janeiro quanto nas salas de aulas da USP.

Trabalhar com as fotografias deste etnólogo alemão é dialogar e navegar em dois aspectos caros a mim: o Eu pertencente ao milenar povo Baniwa e o Eu urbanoide que ama cinema, quadrinhos e fotografia.

Sou de uma geração de indígenas que viram o surgimento do Brasil Novo, da Constituição Cidadã, da abertura do país. Da geração que viu a chegada de aparelhos tecnológicos e que teve acesso a educação formal, fora da educação católica violenta dos Internatos Salesianos no Rio Negro.

Junto com outros da minha idade, também fomos os que tiveram contato com uma educação que retroalimentava a ficção colonial, o que chamo de lavagem cerebral do Estado. Eu cresci aprendendo com os mesmos livros escolares que alunos do Sul ou Nordeste acessavam. Fui convencido que Pedro Alvares Cabral descobriu o Brasil e os índios precisavam sem integrados à sociedade para que virassem de cidadãos reais.

Coisas da construção de um país de massa homogênea e segregada, onde cabe o discurso das “três raças que construíram o Brasil”, onde não cabe as identidades próprias destas “raças”.

O trabalho “Ficções Coloniais” bebe basicamente na metáfora e no sarcasmo. Essa tem sido minha resposta ao mundo da arte, da Academia e ao Estado. Ser cínico, irônico, malicioso e cheio de mágoa transmuta tons de humor em verdades que são duras demais pra dizer seriamente sem perder a compostura.

Indígena significa pelo dicionário, aquele que é originário do lugar, o nativo; seu antônimo é alienígena, aquele que é estranho ao lugar, forasteiro. Trazer para o Sci-Fi foi o modo de desumanizar o invasor e ao mesmo tempo disparar no citadino algo que fosse um gatilho emocional. Todos nós crescemos com dois criadores de ficções: a educação ocidental e a televisão. Transformar o descobrimento do Brasil em invasão alienígena, foi o modo que encontrei de contar a construção colonial deste país.

Noutro tempo fiz uma série de trabalhos chamados “ídolos profanados” uma espécie de iconoclastia quando percebi que as pessoas que eu admirava na juventude não eram da minha comunidade ou povo indígena, e sim atores e atrizes de Hollywood. Pra mim pegar este meu lado-branco e rasurar, também é um modo de reafirmar quem eu sou: indígena e amazônida. Foi o momento em que me percebi como metade Baniwa e metade criação colonial.

Eu não vou deixar de amar o cinema ou a fotografia. Mas, posso fazer esse trabalho iconoclasta com esta parte minha. E como roteirista da minha própria ficção juntar os dois mundos, como Makunaima ou Ajuricaba, que viveram também nos dois mundos.

Já que não posso apagar do cérebro Koch-Grünberg, George Lucas, Spielberg etc. Posso pegar essa bagagem da cultura pop e indigenizar por meio de metáforas e a partir daí fazer quase remakes do Lugar de onde eu olho as coisas. É o roubo do roubo, o pastiche, a sátira onde o “descobridor do Brasil” é o cara que escraviza o King Kong dentro de sua própria ilha e depois leva pra exibição como aberração do “Novo Mundo”, como fizeram com os Tupinambás em 1562.

Ao mesmo tempo que jogo com a provocação ao mundo, me coloco neste lugar do indígena crescido com a televisão como co-educadora. É uma forma de dizer: reconheço a minha parte colonizada e tudo bem, este é o indígena do Séc XXI. E que sorte que ainda consigo contar histórias do meu povo ao mesmo tempo que posso contar como é viver no mundo fora da aldeia.

 

Ficções Coloniais, de Denilson Baniwa
Ficções Coloniais, de Denilson Baniwa

 

 

 

 

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Cantos de um Livro Sagrado – uma conversa dos diretores com Cao Guimarães https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/04/23/cantos-de-um-livro-sagrado-uma-conversa-dos-diretores-com-cao-guimaraes/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/04/23/cantos-de-um-livro-sagrado-uma-conversa-dos-diretores-com-cao-guimaraes/#respond Fri, 23 Apr 2021 12:20:59 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/entretempos-cantos-2-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22205 Este Entretempos é um pouco diferente. Eu e Cesar Gananian estamos lançando nosso novo filme, dirigido, produzido e sentido na Armênia. “Cantos de um Livro Sagrado” terá sua pré-estreia online amanhã, 24/04, dia que marca os 106 anos do início do genocídio armênio perpetrado pelo governo otomano em 1915, crime ainda negado pela República da Turquia. Conversamos com o cineasta e artista plástico Cao Guimarães sobre suas impressões sobre o filme, ele no Uruguai e nós em São Paulo.

conversa dos diretores Cassiana Der Haroutiounian e Cesar Guimarães pelo zoom com o cineasta e artista plástico Cao Guimarães

Com a chamada “Revolução de Veludo” ocorrida na República da Armênia em 2018 como cenário, o filme recria em 5 cantos – Microcosmos, Eu, Casa, Sociedade e Macrocosmos – a sinergia que gera as revoluções.

Cassi: Quero só ver como vou publicar esse papo, Cao.

Cao: Publica como se fosse uma conversa, Cassiana

Cassi: Boa, Cao. Ótima ideia.

Cao: Eu acho que é um filme cheio de camadas e narrativas. Achei tão bonita essas relações entre o microcosmos e o macrocosmos em coisas ordinárias da vida: coisas, a princípio, “banais” e as grandes coisas da vida. Pequenas revoluções cotidianas e grandes revoluções sociais.

Vocês tiveram que se distanciar de vocês mesmos para fazer esse trabalho. Queria que vocês falassem um pouco mais sobre isso. Achei bonita a forma como vocês estruturaram os 5 cantos: Microcosmos, Eu, Casa, Sociedade e Macrocosmos. No primeiro, existe a fábula maravilhosa e achei lindo esse começo. A guerra, a paz. As gerações mais velhas e as mais novas caladas para não machucar os sonhos dos pais, a utopia comunista.

Cesar:  A Cassi chegou em julho de 2018 com essa ideia depois de todos os acontecimentos na Armênia e com a imagem de uma pedra sendo cortada. Programamos uma viagem para o país em outubro e eu falei “A gente precisa elaborar isso. Não vamos chegar lá e filmar. Vamos conhecer, saber o que aconteceu, nos estruturarmos e programar as filmagens para depois. O roteiro nasceu em São Paulo, depois dessa viagem, e decidimos que todo o filme seria em armênio.”

Cassi: Conhecemos um roteirista por lá e a fábula do primeiro canto partiu de um conto dele, já antigo. E juntos fomos chegando no embrião dessa sequência. Ele sempre disse que é um conto sobre a decadência moral do país pós-soviético. A culpa nessa sociedade cristã ortodoxa sempre acontece. O que você definiu sobre o primeiro capítulo é maravilhoso!

Cao: É a frustração de uma geração mais velha por não ter dado certo uma viagem utópica. Depois entra esse capítulo ‘Eu’, do individualismo, que é o oposto do comunismo. Queria saber de vocês por que na hora do ‘Eu’ tem a imagem da pedra e das ruínas?

Cesar: Esse é um dos capítulos que demoramos para chegar. A ideia era ser uma abertura poética na qual cada espectador construísse a sua metáfora. A criação e a destruição. Existe um provérbio armênio de que quando Deus construiu o mundo, as pedras que sobraram na Sua peneira ele jogou naquela região e assim surgiu a Armênia.

Cassi: O país é inteiro rodeado por montanhas. Em todos os cantos existem essas fábricas que transformam esse macrocosmos ‘montanha’ virar esse pedaço de pedra que se torna uma construção do país. E claro, existe também a relação com o Sisifo. A Armênia carrega fardos milenares e essa coisa geracional está muito ligada a Armênia. ‘Ancestralidade’ é uma palavra muito forte no país. Nós, como imigrantes, carregamos essa história. Os armênios sempre estão na questão de sobrevivência: o genocídio em 1915, o terremoto em 1988, a Guerra de Nagorno-Karabakh contra o Azerbaijão.

Cao: Qual a população armênia no país?

Cesar: Mais ou menos 3 milhões. Mais 10 milhões espalhados pelo mundo.

Cao: Nossa. É quase o Uruguai. E vocês são dois desses 10 milhões. Bom, agora voltando para o filme, eu queria que vocês falassem um pouco sobre o capítulo ‘Casa’. Os móveis, elas vazias, um mood comunista… Achei interessante o discurso sobre aquelas lugares vazios, tanto de Nikol Pashinyan, o revolucionário,quanto de Serj Sargsyan, que renunciou. Existe outra camada que são os três senhores jogando gamão e discutindo a revolução. Existe essa coisa das mãos no filme e é muito simbólica, né?! Eu gostei muito das pequenas nuances no filme. Me falem um pouco sobre esse pano de fundo dos cientistas no último capitulo ‘Macrocosmo’ e dessa troca de cartas entre os dois.

Cesar: Mergulhamos nas teorias do cosmólogo Mario Novello para criar esse diálogo por trocas de cartas, para trazer a criação do início do universo por meio da energia da transformação.

Cassi: Depois de uma pesquisa sobre observatórios no país, achamos este de Byurakan, que foi o segundo maior da União Soviética. Tinha essa decadência ali vivida por esse casal, em um país que se desintegrava.

Cao: Tem essa coisa do sonho dele, do início do mundo. Algo que nasce dentro dela e você começa a relacionar com a revolução. Parece que ela está grávida de uma nova utopia, de uma nova possibilidade social.

Cassi: Buscamos fazer um filme que permitisse o espectador entrar em um transe. Esse filme é mesmo um filme para ver em grupo, num ato ritualístico.

Cao: O ‘Eu’ em armênio é ‘tu’, né?! Você lê ‘tu’, se tentamos ler o alfabeto armênio com o referencial que temos. Totalmente paradoxal. Nossa, eu passei o inverno aqui no Uruguai, no meio da pandemia, escutando duduk (instrumento armênio).

Cassi: E você saiu vivo Cao? Parabéns!

Cao: Graças ao duduk. Gosto de acentuar a melancolia da coisa.

Cassi: A Armênia é melancólica. Existe uma dor em todas as camadas do povo e do país.

Cao: Então é a perfeição para vocês. Ter essa bagagem melancólica morando do Brasil.

O carnaval no filme, com as manifestações e o os desfiles juntos… aquelas imagens das pessoas em transe é maravilhosa. Eu gostei da evolução do ‘eu’, para ‘casa’ e para ‘sociedade’ e lembrei muito do filósofo francês Georges Perec e seu livro “Species of Space”, que vai do micro para o macro, do travesseiro até o cosmos. No filme, achei muito interessante essas interrelações que vocês constroem entre microcosmos e macrocosmos. Esses três fundamentos sociológicos, três instituições que vocês propõem, são maravilhosos. Fiquei muito intrigado com a pedra e fiquei viajando como se o indivíduo, que simboliza muito essa ideia do liberalismo e do capitalismo, oposto ao comunismo que a Armênia viveu por anos, já em ruínas. Como se acabasse o sonho utópico comunista e entrássemos em um mundo capitalista se destruindo. Claramente, o filme é interessante por isso. Tem um tanto de informações e o filme se faz diferente para cada espectador. Os brasileiros dançando com aquelas máscaras, aqueles rostos, as emoções, é super bonito relacionar como se fosse o ponto de fusão de um átomo. Pensando na ideia do micro com o macro, é como se fosse explodir, na ideia da revolução. Da força que existe na sociedade, na possibilidade de união, cisão, fusão e explosão.

Obrigada, Cao querido! <3

Para adquirir seu ingresso, acesse este link.

Nos vemos na sessão!

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PRESENTE, a revista de correspondências de Paulo Miyada e Anna Maria Maiolino https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/04/21/presente-a-revista-trimestral-de-correspondencias-de-paulo-miyada-e-anna-maria-maiolino/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/04/21/presente-a-revista-trimestral-de-correspondencias-de-paulo-miyada-e-anna-maria-maiolino/#respond Wed, 21 Apr 2021 11:24:08 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/MAIOLINO-02-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22193 Uma troca de correspondências entre Paulo Miyada e Anna Maria Maiolino permeada por afeto e pela necessidade de comunicar, primeiramente publicadas no Entretempos, desdobrou-se em uma publicação online trimestral chamada PRESENTE, lançada hoje, 21 de abril. A palavra ‘Presente’ tem pelo menos três sentidos: o tempo-agora, concomitante a tudo que acontece (ou apesar de tudo); o presente do ser/estar em algum lugar; e a dádiva, o dom, diretamente ligados ao gesto artístico. PRESENTE, a publicação, é um abrigo neste olho do furacão que nos convida a pensar.

Na última sexta feira conversei com os dois e fui invadida por uma onda de afeição e  vontade de trocar, valores fundamentais para tempos como estes.

A troca de cartas inicial aconteceu sem o intuito de serem publicadas. Mas o interesse de continuar compartilhando trocas com um possível e hipotético leitor fez com que, no final do ano passado, Maiolinoprocurasse Miyada para criarem algo que não se rendesse à apatia, à depressão e ao medo. Na primeira fase da quarentena, quando várias chances de arte foram adiadas, ele havia começado a escrever cartas para artistas. “O que significa ser artista se não há esse diálogo com o mundo?”, perguntou-se. E a primeira que respondeu, fervorosamente, foi Maiolino.

A dupla decidiu então se corresponder com outros artistas e pensadores, como Tania Rivera, Dalton Paula e Lisette Lagnado. Todos sentiam a necessidade do diálogo e da troca. O lar da publicação é o campo das artes visuais no Brasil, mas está totalmente aberta a aventuras longe de casa. A revista será publicada em português e será acompanhada de traduções em inglês. Tania e Anna e Paulo e Dalton já conversaram muitas vezes na vida. Paulo e Lisette, por outro lado, nunca tinham trabalhado juntos. Algumas conversas são uma oportunidade para permitir uma troca necessária. As vezes parece que lidamos com temas subjetivos e quando os compartilhamos percebemos que eles têm um alcance maior do que imaginamos.

Castiel Vitorino Brasileiro, Corpo-Flor, 2016-2021
Série fotográfica

“É como se fosse um novelo que começa com uma linha entre dois pontos. Essa linha triangula, se tece numa cama de gato, cria um monte de diagonais… Todas as conversas e textos formam um emaranhado em que as linhas se atravessam e entralaçam suas singularidades”, define Paulo. Esses pontos cruzados e atravessados entre os participantes são impressos em um projeto gráfico simples e direto, que traz também poemas, ensaios e imagens de autores como Edimilson de Almeida Pereira, Úrsula K. Le Guin e Castiel Vitorino Brasileiro. Junto a esse material, as cartas são reunidas, editadas, diagramadas para formar um conjunto que se torna uma edição. Os dois propositores fazem uma metáfora com a energia que se deposita ao preparar uma refeição, adicionando cuidado e intenção. A revista carrega o ato de doação da palavra, numa tentativa de conservar a filosofia de doação/dádiva na escrita e no futuro.

Pat Bergantin, da série Metal, 2020
Frames de vídeo, 30’’

Ao ser redigida, uma carta se impregna do presente. Na revista, esse marcador de tempo faz parte do projeto gráfico. Quando essas conversas levam o seu próprio tempo, também absorvem as durações das angústias, das hipóteses e dos afetos e se tornam uma espécie de índice. A carta possibilita a possibilidade do retorno ao que foi escrito. Há um chamado quase poético ao relê-las. Elas possuem a fragilidade e a porosidade do tempo. Os artistas pretendem convidar o leitor a se colocar no lugar de quem escreveu e pensar no que responderia, acessando suas subjetividades.

Miyada e Maiolino nunca se preocuparam com um tema específico para a troca de correspondências, mas há uma coisa que várias delas trazem: para viver um presente pleno, é preciso ter direitos. Algumas das violências mais brutais que experimentamos são a eliminação de qualquer perspectiva de futuro ao negarem o nosso direito à memória. Vivemos uma tentativa de apagamento das histórias indígenas e negras, um apagamento das nossas origens, das nossas lutas por democracia e liberdade. Há uma perda de horizontes passados e futuros e o que sobra não é mais o presente, é uma existência anestesiada. Só é possível viver o presente sonhando com o futuro e rememorando o passado. Sem isso, sobram apenas Pessoas Físicas, não seres humanos.

Anna Maria Maiolino, Sem título – da série Andaços, 2020
Caneta permanente sobre papel
59 x 42cm
Fotografia: Edouard Fraipont

“Esta publicação foi uma forma de sonhar. Para sonhar era preciso mergulhar nessa dor. Não existe um tema, nem algo que precisa ser dito. Se alguém escreveu é porque sente que necessita, e assim segue a troca. A liberdade com uma ética constante.” Afirma Maiolino.

Disponível em www.presentepresente.com, a revista é gratuita e pode ser distribuída livremente, desde que sem fins lucrativos. Caso deseje escrever correspondências para edições futuras, envie sua proposta para: contatorevistapresente@gmail.com.

 

 

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As cores do universo de Flavia Aranha https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/as-cores-do-universo-de-flavia-aranha/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/as-cores-do-universo-de-flavia-aranha/#respond Thu, 08 Apr 2021 15:44:38 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/retrato-da-estilista-flavia-aranha-1556218270093_v2_1920x1-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22149 “As plantas são o ornamento cósmico, o acidente inessencial e colorido relegado as margens do campo cognitivo… são as feridas sempre aberta do esnobismo metafísico que define nossa cultura.” Emanuele Coccia, A vida das plantas – uma metafísica da mistura

(Foto: Julia Rodriguez)

Falar de moda com a Flavia Aranha é transitar por diferentes camadas do ser. São tantos os caminhos e processos que ela vivenciou que, por meio da roupa que faz, nós vivenciamos também. Começou de um modo bastante experimental e foi, por meio de suas inquietudes e muito conhecimento, se tornando uma das marcas mais bonitas e mais coerentes no mundo em que vivemos. Agora, depois de 11 anos, ela afirma que precisa se descolar um pouco do lado empresarial e voltar-se para dentro.

“A vida vegetal é a vida enquanto exposição integral, em continuidade absoluta e em comunhão global com o ambiente.” Emanuele Coccia, A vida das plantas- uma metafísica da mistura

Por que decidi falar da Flavia neste blog que trata de artes visuais? Porque está tudo conectado. Falar da Flavia é também falar de seus processos criativos, referências e maneiras de pensar e fazer a cor.

A cor com pigmentação natural – marca registrada de suas roupas – é um processo quase de magia, embasado em muita técnica de diferentes cantos. Não se trata apenas de colorir. Trata-se de tatear as plantas, olhá-las, entendê-las, senti-las. Sua relação com as plantas vem desde pequena por ter sido criada fora de São Paulo, onde comia flores. “Minha infância foi num pomar e o chá era a cura. Já carregava em mim a obsessão pelas plantas e cores e fui sempre estimulada a estar desperta para o meu entorno.”

“As plantas foram consideradas por séculos como a forma paradigmática da existência da razão. De um espírito que se exerce na modelagem de si mesmo.Para existir a planta deve se confundir com o mundo, e só pode fazer isso na forma de semente: o espaço em que o ato da razão coabita com o devir da matéria.” Emanuele Coccia, A vida das plantas- uma metafísica da mistura

Elas possuem seus próprios rituais. A dança entre planta e água é um lugar sagrado, espiritual… diz Flávia. Quando ela começou a se conectar com o selvagem e conheceu a obra de Emanuela Coccia, sentiu que essa artista traduzira em palavras tudo o que ela sentia.

Desde cedo na pintura, Flavia Aranha sempre se encantou pelos processos manuais de redes tecidas por mulheres no Nordeste e por outros processos e rituais hereditários, ancestrais ultrafemininos e carregados de memórias afetivas.

“Quando comecei a faculdade, fui tentar entender isso tudo com o Arraiolo. Quando vim para São Paulo estudar, me afastei das plantas e isso abriu um buraco em mim. Fui para a China trabalhar e tudo era cinza. Uma infelicidade… E foi a partir deste lugar totalmente sem cor nenhuma que entrei em uma depressão profunda. Na sequência, fui pra Índia, contrastando absolutamente com a China, numa imensidão de cor. Decidi pedir demissão com a certeza de que tinha achado o que preencheria esse vazio em mim, me reconectando com as minhas memórias afetivas. Precisei chegar no ápice do cinza chapado para poder trazer cor. Eu nunca mais na vida usei preto.”

(Foto: Julia Rodriguez)

Flavia decidiu mergulha nos estudos do chá, ainda em tons pasteis – como camomila e mate – para além das eficácias medicinais. Cozinhar uma planta passa pelo sensorial e cria uma relação do corpo com determinada temperatura. A tinta que enxergamos que atravessa a água é de uma presença absoluta. É preciso estar com o olhar atento para poder perceber e presenciar esse caminho e vivenciá-lo como um balé harmonioso que flui no ritmo da água e das plantas em seus movimentos circulares. Há ainda o reflexo de nós mesmos na água tingida de plana, provocando uma catarse, uma troca fluida de energias.

Para ela, o processo sempre interessou mais do que o próprio resultado. Descobrir uma planta, amassar, sentir, deixar secar, sujar o tecido ou o papel… toda a transformação da vida em cor vira Flavia do avesso.Materializar o processo em umapele que veste o corpo da mulher. Criar uma conexão e uma relação com as peças, corpos, texturas e sensações. A cor e a planta vão nos atravessando e perdemos o controle dessa identidade, sendo estimulados a olhar para um lugar onde há uma integração maior entre humano e natureza.

“Quando comecei, a marca era uma tela em branco. Fui colocando lentamente e de forma extremamente suave essas cores, pálidas e singelas para poder ir descobrindo meu olho para a cor. Uma sutileza em cada pigmento, na singeleza de cada planta em um lugar muito etéreo e sutil.” O olhar de Flavia foi sendo lapidado e apurado para receber cores mais vibrantes e densas até chegar no vermelho, vindo do pau-brasil, no SPFW de 2019. Flavia conta que foi uma pesquisa bastante dolorida sobre a nossa identidade. A potência e a violência habitando o mesmo espaço. O desfile serviu também para valorizar essa árvore tão potente e como sua exploração pelos europeus tentou apagar a nossa identidade ancestral, anterior à colonização. Trabalhar com as cores do pau-brasil tem algo de reação ao sentimento de impotência e, ao mesmo tempo, de reação, pois nós existimos e não podemos ser apagados outra vez.

 

O SPFW foi extremamente emblemático para Flavia, pois trouxe a potência e a violência da cor. “O momento do preto vai chegar… durante 10 anos as cores vieram muito mais pelo encontro com meu processo e com essas mulheres plantas do que eu como centro do desejo; muito mais pela relação e pela liberdade de me permitir mergulhar nesses universos e nessas plantas, em conexões com minhas identidades, anseios e movimentos políticos.”

(Foto: Julia Rodriguez)

“Roupa viva, cor viva” é uma expressão que resume bastante a marca como um todo. As cores naturais mostram o tempo todo como tudo é impermanente, e reage aos estímulos a nossa volta. As cores interagem com o meio, com o tempo, com a temperatura e são efêmeras. Cada planta tem sua vida, sua potência bruta, da cor em seu estado mais latente. Quando ocorre o processo do tingir, é possível absorver esses tempos vegetais.

Para estudar o azul índigo – que entrou em sua coleção há três meses – Flavia foi para o Mali estudar com Aboubakar Fofana, o artista e designer multidisciplinar conhecido por seu trabalho em revigorar e redefinir as técnicas de tingimento de índigo da África Ocidental, onde reverenciam o deus do ar e da água para poder celebrar essa potência de acontecimento do índigo, passando por infinitos rituais.

A produção tangível de Fofana é o resultado de uma prática espiritual baseada em sua crença fundamental de que a natureza é divina e é assim que ele compartilha sua prática com o público. Sua habilidade vem de décadas de aprendizado para trabalhar em harmonia com as forças da natureza. Seus materiais, suas limitações e qualidades inatas envolvem todos os aspectos de seu trabalho. Seus tonéis de índigo estão vivos. Eles contêm poucos ingredientes e nenhum produto químico industrializado. A cor vem das próprias folhas de índigo, trituradas e secas. As bactérias, cuidadosamente nutridas dentro de uma cuba, tornam acessível o pigmento de indigotina das folhas e ajudam a reduzi-lo a uma forma em que se oxide diretamente no tecido. Para Fofana, o mundo natural junto com nossa própria habilidade humana é onde começamos e é lá que terminaremos.

Para Flavia também. O ser humano precisou se relacionar com a planta para criar a cor. Ela não está pronta ali. Foi preciso se apropriar da natureza e de todos os seus processos e rituais para entender que nós viemos da terra e voltaremos para ela. Temos que lembrar que a planta era semente antes de virar planta, , cor, roupa. Nós fenecemos. Viramos terra, semente, planta. “A vida atravessa a gente. Me tira desse templo e desse ego. Na minha marca entendo que cada vez mais é sobre a vida em si.”

“A vida das plantas é uma cosmogenia em ato, a gênese constante de nosso cosmos. Emanuele Coccia, A vida das plantas- uma metafísica da mistura

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Fique em casa – Ensaio Palavra-Imagem com Mariana Tassinari e Alberto Tassinari https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/03/07/fique-em-casa-ensaio-palavra-imagem-com-mariana-tassinari-e-alberto-tassinari/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/03/07/fique-em-casa-ensaio-palavra-imagem-com-mariana-tassinari-e-alberto-tassinari/#respond Sun, 07 Mar 2021 12:09:12 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/b6521639-b2d6-4268-9643-9f50b7540149-1-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=21993 O Ensaio Palavra-Imagem de hoje vem com pai e filha. Mariana Tassinari com seus desenhos tão característicos de casas, desta vez na série “Fique em casa” criados na última semana, a partir do anúncio da volta da fase vermelha do Plano São Paulo de contenção da Covid-19. E seu pai, Alberto Tassinari, com palavras de sua poesia para as casas de Mari na última sexta feira. Ela é artista plástica e teve uma breve, mas fundamental passagem pela Faculdade de Arquitetura, onde seu olhar foi formado. Ele, autor do livro “O Espaço Moderno” é crítico e curador de arte. A parceria entre os dois só podia ser uma potência poética.

Se puder, fique em casa. Nutra-se de coisas bonitas e de cuidado.

 

fica em casa

desenha uma outra
casa
insuspeitada
na tua mesma casa
ou desenha muitas
tão diferentes
e tão parecidas
toda casa é uma casa
fica em casa
na tua, na minha
toda casa
hoje
é de cada um
e de todos
nunca
tão no mundo
se esteve
sem sair
de casa
repousa
ama
fica em casa
toda casa
agora
é um mundo
no mundo inteiro
fica em casa
vê a beleza
daquela trinca
sonha
com a praça
na qual
nos encontraremos
fica em casa

 

 

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O ventre da terra – um devaneio sobre a terra e suas camadas na Galeria Superfície https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/02/25/o-ventre-da-terra-um-devaneio-sobre-a-terra-e-suas-camadas-na-galeria-superficie/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/02/25/o-ventre-da-terra-um-devaneio-sobre-a-terra-e-suas-camadas-na-galeria-superficie/#respond Thu, 25 Feb 2021 11:00:21 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/celeida-tostes_passagem_14-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=21957 “O sonho da Terra é uma metamorfose. O que é pedra vira borboleta, o que é pau vira vento, o que é vapor vira chuva, as nuvens despencam em tempestade. Toda essa fantástica movimentação da vida é o sonho da Terra. É a transformação, a metamorfose.” Ailton Krenak em entrevista para o Instituto Humanitas Unisinos.

Passagem, Celeida Tostes, 1979

A Terra pulsa, transpira, sente. O ser humano pulsa, transpira, sente. Em uma sinergia necessária e fundamental, hoje desajustada  para os possíveis encontros e micro acontecimentos em sua máxima potência. É preciso que estejamos alinhados, na terra como política, como território, como casa, como pele e como ninho.

Passagem, Celeida Tostes, 1979

“Estamos experimentando a febre do planeta” já disse Ailton Krenak em uma de suas entrevistas. E é diante  deste corpo-terra quente que estamos. E que provocamos também. Segundo ele, nos descolamos desse organismo vivo chamado terra, dessa redoma que nos acolhe e nos convida a compassar os batimentos cardíacos, seguindo rotas individualistas e egoístas.

Epidermic scapes, Vera Chaves Barcellos, 1977

Seguindo um pouco do pensamento latente que permeia o mundo e o planeta, a Galeria Superfície abriu ontem a exposição “O Ventre da Terra” com obras de artistas brasileiros dos anos 1970, carregadas de história,  com produções que conversam diretamente com os tempos atuais em questões urgentes do passado e de hoje, como uma ponte entre esses momentos históricos do país. Um conjunto de obras que trata de temas relativos à fertilidade, ao nascimento, à vida e à morte. Um olhar para o lugar de origem, para os processos que são próprios da natureza humana, dos ciclos que se iniciam e se encerram na Terra.

Rosa dos ventos, Amelia Toledo, 1973

Sabemos que os anos 1970 são um momento de uma crise muito clara, um endurecimento e rigidez e uma afirmação da potência do corpo como um dispositivo de arte. E ao olharmos para a produção de 2021, esses paralelismos acontecem, pensando o corpo e em questões identitárias. Obras históricas reunidas com nomes como Amelia Toledo, Ana Mendieta, Anna Bella Geiger, Anna Maria Maiolino, Amelia Toledo, Celeida Tostes, Hélio Eichbauer, Lotus Lobo, Mara Alvares, Neide Sá, Nydia Negromonte, Péricles Eugênio da Silva, Sérvulo Esmeraldo, Tunga e Vera Chaves Barcellos.

Brasil nativo, Anna Bella Geiger, 1977

“Trabalhos que afirmam essa postura diante da vida, lidando com uma certa imanência com a terra, com a paisagem. Não é uma relação sujeito/objeto, a terra como  um organismo vivo e uma condição de transformação para esse ser.” Devaneia Pollyana Quintella, responsável pelo texto da exposição que trabalha com arte brasileira dos anos 1970 com um interesse pontual por artistas femininas. 

Sem-título, da série Silhueta, Ana Mendieta, 1977

A exposição faz uma ponte com esse sentimento de falência e crise com o que estamos vivendo e o modo como o planeta está colapsando. Traz a Terra como um significante em suas múltiplas camadas, um significante que se desdobra em muitos sentidos: território, sujeito, renascimento, transformação, ritual,  tempo, história e cicatriz.

“Viver uma manhã no seio da Pachamama, da Terra, é um conforto diante de tanta desolação do ponto de vista ambiental e também do ponto de vista dos sonhos, de pensar mundos”. Ailton Krenak em entrevista para o Instituto Humanitas Unisinos.

Sem-título, da série Vida Afora, Anna Maria Maiolino, 1981

Além das obras precisamente escolhidas, o espaço expositivo foi todo pensado baseado no trabalho e no conceito de Celeida Tostes, em parceria com o estúdio de arquitetura MNMA e parceria de execução da Taipal. A expografia será toda feita em terra, utilizando a técnica ancestral de construção com adobe e taipa, numa negociação de vários sentidos de terra testados e experimentados, trazendo os conflitos disso com o espaço expositivo, entre os trabalhos e a própria arquitetura.

Vista da exposição (Foto: Gui Gomes)

“Gesto arcaico” foi a ação reflexa da mão quando recebe o bojo do barro macio, definia Celeida Tostes em Mutirão, seu sempre espírito de trabalho,  e foi  nesse espírito que se deu o processo da expografia. Inspirados pela obra “Muros de Resistência” de Tostes, onde os tijolos de adobes foram recriados com a mesma receita usada: palha de arroz, argila e barro.

Posta, Nydia Negromonte (Foto: Gui Gomes)

Em 1983, a artista  foi convidada para expor na 17ª Bienal Internacional de São Paulo. Para tanto, propôs um trabalho decorrente de sua pesquisa no qual um novo muro seria realizado em etapas: na primeira, os detentos de uma penitenciária em São José do Rio Preto fariam tijolos na olaria do presídio; na segunda, presos em regime semiaberto construíram um muro nos jardins em frente à Bienal, no Parque do Ibirapuera; a terceira parte do muro seria construída dentro do prédio de exposições. Para a artista, as três partes do trabalho formavam um único muro e ela pretendia que o trabalho fosse deixando vestígios de seu caminho até a Bienal, com tijolos marcando o trajeto de São José do Rio Preto até o Ibirapuera. A obra incluía também outro circuito: uma urna levaria para o pavilhão mensagens dos presos do interior de São Paulo. O público leria esses recados no último dia da Bienal, quando as duas urnas seriam abertas, expondo os dois lados de um mesmo muro. A artista previa que, ao fim da Bienal, os tijolos fossem doados para a comunidade mais próxima ao Ibirapuera. Além disso, como ia contar com a ajuda do sistema penitenciário de São Paulo para realizar a obra, dispunha-se a dar como contrapartida a montagem de oficinas de cerâmica em presídios femininos. Era, portanto, um projeto relacional, de arte pública e com forte inserção na paisagem. Ao receber o projeto enviado diretamente pela artista, a Bienal – naquela edição sob a curadoria de Walter Zanini – simplesmente desconvidou-a e nada aconteceu. O trabalho de arte já não tem mais a ver com a representação, mas com a esfera do acontecimento, da presença. Isso define um legado chamado Celeida Tostes. E esse é o “mood” que essa expo na Superfície traz, segundo Mariana Schmidt, fundadora  do escritório MNMA, com quem conversei há 3 dias.

Amassadinhos, Celeida Gomes, 1991 (Foto: Gui Gomes)

Percorrer essas imagens tão cheias de simbologias, presenças, forças e processos rituais com certeza nos atravessará e provocará alguns devaneios e inquietações importantes para seguirmos habitando a Terra em seu ventre. De enraizarmos nosso ser ao acontecimento dessa Terra que nos acolhe, nos serve de superfície, de redoma, de inícios e fins. Respeitar os ciclos.

Lábios, Tunga

“A vida é um organismo. A Terra é uma materialidade dessa vida. Nosso corpo, assim como o de uma formiga, ou de uma borboleta, é a materialidade da vida. A vida passa na gente e vai para outro lugar. Ela não fica parada em lugar algum. Esse sonho da terra é essa vida. A vida maravilhosa. E ela não tem fim.” Ailton Krenak em entrevista para o Instituto Humanitas Unisinos.

*Em cartaz até 17.04.21

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