Entretempos https://entretempos.blogfolha.uol.com.br Artes visuais diluídas em diferentes suportes, no Brasil e pelo mundo Sun, 28 Nov 2021 14:42:12 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O corpo feminino e seu direito – Ensaio Palavra-Imagem com Rachid Al-Daif e Mireille Honein https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/11/28/o-corpo-feminino-e-seu-direito-ensaio-palavra-imagem-com-rachid-al-daif-e-mireille-honein/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/11/28/o-corpo-feminino-e-seu-direito-ensaio-palavra-imagem-com-rachid-al-daif-e-mireille-honein/#respond Sun, 28 Nov 2021 14:40:15 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/e96bcfad-d9c9-4ed1-b352-86d093e6da3f-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22597 O Ensaio desta semana busca pontos de contato entre a obra de dois artistas libaneses: a ativista Mireille Honein e o escritor Rachid Al-Daif, autor do romance “E quem é Meryl Streep?” (Editora Tabla, 2021, trad. Felipe Benjamin Francisco). O livro toca em tabus da sociedade libanesa ao lançar luz sobre a intimidade de um jovem casal na Beirute dos anos 1990. A narrativa traz cenas de sexo explícito que instituem a cama como o campo de batalha onde homem e mulher disputam o controle sobre o corpo feminino. O romance – que já foi proibido diversos países árabes – é uma crítica à hipocrisia da sociedade patriarcal e uma defesa da emancipação feminina, abordando entre outros temas o sexo antes do casamento, o divórcio, a virgindade e o machismo. Em meados de 2017,  ativistas apoiados pela “Abaad – Uma associação civil independente que visa alcançar a igualdade de gênero no Oriente Médio e Norte da África – conseguiram fazer com que o parlamento libanês chegasse a  um acordo sobre um projeto de lei para abolir o polêmico artigo 522 do código penal, que permite que estupradores escapem da prisão casando-se com suas vítimas. Numa tentativa de pressionar o parlamento a abolir totalmente esta lei, Mireille Honein criou uma instalação com  31 vestidos de papel balançando entre as palmeiras em Ain El Mraysseh,  para apoiar a ONG e escancarar a injustiça.  Ainda há muito o que acontecer para valorizar a mulher. Mas cada passo é gigante. O Oriente Médio foi, por muitas vezes, retratado como uma mulher indefesa e em perigo a ser salva pelos homens brancos ocidentais. Faz tempo que as mulheres orientais dão provas que são donas de seus próprios destinos e protagonistas das suas histórias. Se houver uma reconstrução possível para o Líbano, essa reconstrução é feminina.

Sinopse do livro (site da editora)

E quem é Meryl Streep?” é um romance desafiador do polêmico autor libanês, Rachid Al-Daif. Como em outros livros seus, ele batiza o protagonista e narrador do romance com seu próprio nome. Rachid, o personagem, é um libanês recém-casado que se vê ameaçado pela ideia da emancipação feminina.

Ao se dar conta de que sua esposa usa a presença da TV na casa dos pais como desculpa para ficar longe de casa, Rachid compra uma televisão na esperança de atraí-la, mas à medida que o laço frágil que une o casal se desintegra, a televisão passa a ocupar um lugar cada vez maior na sua vida.

Numa cena crucial, ele se vê sozinho assistindo ao filme “Kramer versus Kramer”. Na ausência de legendas, Rachid se esforça para entender o que se passa no filme e projeta o comportamento de sua esposa na personagem vivida por Meryl Streep, que ao mesmo tempo que o cativa, também o apavora por representar um esforço de libertação das mulheres que ele considera inaceitável.

Rachid Al-Daif constrói um personagem reacionário, por vezes repulsivo, e não tem medo de mergulhar na mente desse indivíduo e descrever nua e cruamente sua mentalidade, inclusive sua vida sexual, real ou imaginada. O livro foi considerado pornográfico no mundo árabe e obteve um enorme sucesso tanto no idioma original, como em outros idiomas.

Trechos do Livro “E quem é Meryl Streep?”

No final das contas, ela concordou em definir a data do casamento, sem que ninguém a obrigasse. Fui franco ao extremo com ela e lhe pedi que, se não quisesse mais se casar, anunciasse isso para seus pais, minha mãe, minha tia e os parentes. Então ela respondeu de forma enfática que queria se casar, sim. No entanto, às vezes, quando saíamos juntos, ela me pedia para não ter pressa com esse assunto. Era estranho como ela se sentia forte quando estávamos só nós dois. Ela me dominava quando estava sozinha comigo, por isso eu sempre procurava fazer com que declarasse seu compromisso com algo importante diante de todos os parentes e, sobretudo, na presença da mãe, para que esta dificultasse as coisas se ela se arrependesse mais tarde. Havia momentos em que eu a constrangia, com o objetivo de fazê-la manifestar publicamente uma opinião que ela disfarçava, como acerca de ter um filho logo, já que seu desejo era adiar a gravidez para “a hora certa”. Assim, eu iniciava de propósito esse tipo de conversa diante de todos, para que, caso ela expressasse sua opinião, as pessoas a repreendessem! (pp.96-97).

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Há coisas que permanecem imutáveis por mais que o ser humano progrida e por mais que os tempos e o lugar mudem; contudo, o importante é que saibamos contemplá-las bem e não as tomemos pelas aparências. O respeito à mulher é um dever indiscutível, assim como o fato de o marido desfrutar da esposa e a esposa do marido também é algo indiscutível, mas dentro dos limites estabelecidos que só enxerga bem aquele que quer ver. Se o homem e a mulher estiverem em harmonia, é um direito dos dois desfrutar do que quiserem, onde quiserem, como quiserem etc.; mesmo assim o olho deve permanecer atento aos limites estabelecidos — e ainda que esses limites não sejam respeitados, pelo menos o ser humano deve saber o que aconteceu com eles, o quanto se afastou e o quanto se aproximou deles. Por mais que os novos tempos mudem e os costumes e as tradições ocupem outro lugar, o homem permanecerá homem e a mu- lher, mulher. A mulher deve sempre, em toda circunstância, responder ao marido quando ele a chamar, e deve a ele obedecer nos momentos decisivos, mesmo que essa obediência a sobrecarregue psicologicamente, pois essa sobrecarga psicológica é recompensada depressa, assim que a mulher vê que seu marido retoma a calma, a compaixão e a castidade. Ele necessariamente as retomará. O fato de ela pular sobre ele como uma louca para se vingar, derramando na boca dele o que ele depositou na sua boca — à força e com ódio — é realmente inaceitável. (pp. 180 e 181).

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As cenas continuavam passando diante de mim, subjugando-me, até que meu desejo foi aumentando de um modo como nunca acontecera. Certa vez minha esposa me disse que filme pornô é como fertilizante químico: acelera o crescimento do fruto, aumenta seu tamanho ao máximo, porém faz perder o mais importante, o gosto e o sabor! Onde ela teria aprendido aquilo? Sempre que me via espantado com algo que havia dito, ou quando conseguia ler a desconfiança e a dúvida nos meus olhos, minha esposa dizia que lera aquilo numa revista em inglês. (p.65).

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Puseram certos tipos de propaganda em vias e lugares públicos, chocantes para nossos costumes e tradições. Nós somos uma sociedade conservadora. Para nós, a honra ainda é o valor mais elevado. Todo dia lemos nos nossos jornais alguma notícia sobre o assassinato de uma jovem para lavar a honra, ou seja, por causa do seu relacionamento com um homem. O irmão mais novo a mata, quando não o mais velho, o pai também pode matá-la, ou mesmo o filho, caso tenha um. Ontem mesmo um irmão matou a irmã porque esta fugiu para se casar às escondidas com o homem que amava, indo contra a vontade do irmão de casá-la com outro homem. Depois de tudo isso, ainda mostram os métodos de prevenção da Aids, liderados pelo uso do preservativo, em anúncios por todos os cantos das avenidas principais. É como se tivessem decidido desatar o sexo dos laços do matrimônio. Não sou puritano, porém estou do lado do pudor e da vergonha, uma vez que esse pessoal está agindo como se o espaço público fosse algo diferente do interior dos lares. Veiculam na televisão propagandas de incentivo ao uso do “preserva- tivo” (é assim que se chama!) para quando o parceiro estiver inseguro quanto à parceira. Eu não faço ideia de qual é a diferença entre a tela da televisão e o quarto do casal (p.112).

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Para minha mãe, uma situação imprópria era um homem pôr a mão sobre o ombro da mulher no meio da rua, ou então entrelaçar sua mão na dela. “Ninguém mais teme a Deus!”, costumava dizer. Ela sentia falta de ver meninos e meninas juntos durante o período em que pensava que eu era homossexual e, ainda por cima, um homossexual afeminado, isto é, não era o macho ativo, e sim a fêmea passiva. Depois, sua imaginação a fez lembrar de que, quando eu jogava futebol com meus amigos, só gostava de ser o goleiro! Minha tia deu muita risada quando minha mãe lhe contou isso, porque não entendeu exatamente o que ela queria dizer. Só muito mais tarde é que ela foi entender. Na cabeça da minha mãe, o que iguala o goleiro à fêmea é que os dois são o alvo, nos dois entra alguma coisa e os dois ficam parados à espera de que os outros corram atrás deles! (p.87)

 

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A catástrofe se move pelas ondas – Ensaio Palavra-Imagem com Mahmud Darwich e Abdulrahman Katanani https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/31/a-catastrofe-se-move-pela-ondas-ensaio-palavra-imagem-com-mahmud-darwich-e-abdulrahman-katanani/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/31/a-catastrofe-se-move-pela-ondas-ensaio-palavra-imagem-com-mahmud-darwich-e-abdulrahman-katanani/#respond Sun, 31 Oct 2021 10:00:34 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/selections-arts-katanani-the-wave-feature-1170x600-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22564 Neste mês de novembro, o Entretempos se dedicará ao Oriente Médio. Os Ensaios serão tomados pelas literaturas do mundo árabe, a partir de escritores traduzidos e publicados pela incrível Editora Tabla, da qual sou fã. Ela tem como foco a publicação de livros referentes às culturas de Oriente Médio e Norte da África e seus ecos no Ocidente. Com o objetivo de ressaltar os pontos de contato, percorrendo e construindo pontes culturais, a Tabla deseja apresentar e representar essas culturas de forma autêntica e longe de estereótipos. Numa parceria alinhada, será um mês com obras de arte palestinas, libanesas e sírias permeadas pelas palavras de tais territórios. Que alegria anunciar esse encontro!

Junto com a Tabla, vem o Geraldo Adriano Campos, Coordenador do Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Federal de Sergipe, que apresentará todos os domingos um dos autores escolhidos, além de me dar uma mão essencial para navegar entre os nomes da arte contemporânea daquela região. É um longo caminho a percorrer, mas também é um convite para mergulhar nesse universo ainda mal explorado em terras brasileiras que tanto tem de Oriente Médio, ainda que pouco conhecido.

A CATÁSTROFE SE MOVE PELAS ONDAS

Por Geraldo Adriano Campos

“O matador mata, o combatente combate e o pássaro gorjeia. Quanto a mim, encerro a busca por linguagem figurativa. Paro completamente minha procura por interpretação, pois a essência da guerra é degradar os símbolos e levar as relações humanas, o espaço, o tempo e os elementos de volta a um estado primordial”.

Com essas palavras, o poeta palestino Mahmud Darwich expõe as tensões do escritor nos escombros da guerra. Além da devastação material, dos corpos despedaçados, da cidade em ruínas, Darwich nos lembra que a guerra degrada os símbolos. O que resta ao poeta? O que pode a linguagem, face à eloquência das bombas?

“Memória para o esquecimento” apareceu inicialmente como texto em 1986 e acaba de ser lançado no Brasil pela Editora Tabla, com tradução do árabe ao português da Profa. Safa Jubran. É o relato dos acontecimentos de um dia em agosto de 1982, durante o cerco israelense a Beirute. Objetivava-se, com o forte bombardeio, impor mais um capítulo de exílio aos palestinos, cujas lideranças encontravam-se no Líbano naquele momento. Um exílio que não cessa de ser renovado desde a limpeza étnica de 1948 e a expulsão de cerca de 800.000 palestinos de suas terras, na Nakba (catástrofe).

Aos herdeiros do desterro a experiência do estado de sítio não é estranha.

Por isso, no mergulho do poeta no estado primordial em busca de uma linguagem, adquirem força gestos triviais como a preparação de um café, convidando-nos a refletir sobre a peculiaridade da produção estética palestina.

Em uma entrevista ao poeta libanês Abbas Beydoun, em 1995, Darwich dizia que os poetas palestinos se encontravam em um “lugar híbrido, em um ponto médio entre o histórico e o mítico”. Seu lirismo transitaria, assim, entre “o alcance da voz de um mito consumado, definitivo e consagrado” e a “estética do cotidiano”. Na obra de Darwich, a ressonância épica é transposta à esfera do prosaico, como possibilidade de afirmação da vida diante da iminência do fim.

Vivenciar o exílio imposto por Israel desde 1948 é também a experiência do “cerco dentro do cerco”, condição compartilhada pelos palestinos que habitam a paradoxal temporalidade do provisório-permanente nos campos de refugiados no Líbano, como o artista Abdulrahman Katanani, nascido em Sabra, após seus avós terem sido expulsos pelos sionistas da Palestina. Katanani nasceu nove meses após o massacre de setembro de 1982, mesmo ano em que transcorrem os acontecimentos descritos por Darwich em “Memória para o esquecimento”. No massacre, os campos de Sabra e Chatila também estavam cercados pelos israelenses, o que permitiu que as milícias falangistas libanesas perpetrassem uma das maiores atrocidades do século XX. “Para que as pessoas não acordassem com o som dos tiros, parte do massacre foi realizado com machadinhas, inclusive de crianças e mulheres grávidas”, contava-me um sobrevivente, em uma conversa em Chatila, em 2016.

Uma onda do mar. Eu a reconheço e a sigo com apreensão. Vejo-a se cansar antes de alcançar Haifa ou Alandalus. Ela se cansa e então descansa nas margens da ilha de Chipre. Uma onda do mar. Ela não será eu. E eu, eu não serei uma onda do mar.”

O narrador do livro “Memória para o esquecimento” nos alerta nesse trecho que a catástrofe se espalha com o mar, espaço simbólico em que se fundem esperança e ameaça, atingindo outros portos e cruzando-se com memórias alheias. Se no livro de Darwich “o mar se transforma em terra firme e se aproxima”, na escultura “Onda” (2016) de Katanani, o mar se materializa em arame farpado. Uma imensa onda prestes a engolir-nos. Uma onda coesa a recostar sua intimidante parede, dobrando-se em uma espuma irregular de pontas de arame farpado. Suspensa no momento em que antecede a quebra, a iminência do acontecimento é reforçada pela antecipação da ferida anunciada pelo material que rasga a carne. Com seu irmão, Katanani produziu em Sabra uma máquina de tecer grandes chapas de arame farpado e desenvolveu técnicas para trabalhar com esse material. Não se trata de matéria qualquer. Se a ruína é expressão material emblemática da modernidade, o arame farpado também o é.

O filme “O mar à frente” (2021), do jovem diretor libanês Ely Dagher (atualmente em exibição na Mostra Internacional de Cinema) também oferece a imagem do mar como ameaça. A obra conta a história de Jana, uma libanesa que retorna a Beirute, após um período na Europa. Em uma atmosfera profundamente melancólica, nos deparamos com uma geração que não consegue enxergar possibilidades no trágico contexto do Líbano contemporâneo. Na ausência de horizontes, persiste a espera pela grande onda, a derradeira. Jana procura o mar da varanda do apartamento de seus pais, como quem busca qualquer resquício de um futuro viável. “A grande onda está chegando”, diz Adam, seu namorado, em certo momento. Os personagens falam sobre a provável vinda de um tsunami, que nunca chega.

O mar de Darwich, de Katanani e de Dagher é o da iminência. Do momento definitivo, que tudo engolirá. Há também uma esperança, que exigirá que nos tornemos os donos do tempo, como sugere Darwich: “Haverá tempo para enterrarmos os mortos. Haverá tempo para as armas. E haverá tempo para que o tempo passe conforme desejamos, para que este heroísmo possa continuar, porque, agora, nós somos os donos do tempo…” .

O poeta palestino nos oferece, de tal modo, uma metáfora potente para nosso mundo, que extrapola as questões singulares do Oriente Médio. Em Darwich encontramos uma força que pode nos salvar da onda derradeira.

LIVRO: DA PRESENÇA DA AUSÊNCIA, tradução de Marco Calil

saudade de começos, do modo como a chave fechava a porta. da visão que vê seus objetivos, seus fins. escolher o lugar e a música da noite com artificiosa naturalidade. isto é o exercício passional de medir o pulso do Ser. disto, isto é, desta saudade, trata-se de recapitular o mais belo capítulo do conto: o primeiro, improvisado com destreza de prelúdios. assim nasceu a saudade de todo e cada acidente belo, não de chagas. que saudade não é memória. Saudade é seletiva como um bom jardineiro; ela é repetição de memórias quando suas ervas daninhas fossem removidas. saudade tem efeitos colaterais: viciada em olhar para trás, reservada por não ter deferências para com o possível, mortalmente orientada por transubstanciar presente em passado, mesmo com o amor: vem para fazer da noite um passado comum — diz o doente de saudade. virei contigo para fazermos um amanhã comum — diz a ferida de amor. ela não ama o passado e quer esquecer o fim da guerra. Ele tem medo do amanhã porque a guerra não acabou, porque não quer ficar mais velho. saudade é uma cicatriz no coração, uma digital da terra no corpo. mas não se sente saudade de feridas, não se sente saudade de dores e de pesadelos, senão do que já era antes, de um tempo sem dores senão os prazeres básicos que derretem o tempo, como cubos de açúcar em xícaras de chá, saudade de um tempo de conceitos paradisíacos. ela é um mal sazonal, não contagioso nem letal, mesmo se atingir o corpo em grau de epidemia. saudade é o chamado flauta a flauta, para reorientar os cascos dos cavalos da montaria. ela é o convite para passar a noite com solitários, uma desculpa para não estar a par do passo dos passageiros nos trens, sabidos de seus endereços de destino. é ela que recolhe, para os forasteiros sonharem, a matéria translúcida de lindos nadas, e ainda lhes torra o café do despertar. e ela quase nunca chega cedo. e ela quase nunca interrompe conversas pedestres com taxistas, quase nunca faz comentários em conferências, nem em primeiros encontros entre homens e mulheres… ela é a visita da noite, que chega quando procuras teus traços no que te circunda sem que consigas encontrá-los, e quando o pardal pousa na varanda, isto parece ser o anúncio de uma terra que não amavas tanto quanto a amas agora que ela te habita. ela dava em árvores, pedras, feita remetentes de almas, ideias, brasa na língua. era ar, terra, água, feita então poema. saudade é gemer pelos direitos dos incapazes de reivindicar a força do direito perante a força de expressão… gemer de casas enterradas em assentamentos que o ausente relegou ao ausente, que o presente relegou ao ausente, como a gota primeira do exílio e dos campos de refugiados. saudade é o som de seda que sobe da amoreira, em gemidos mútuos, para quem dela sente saudade. é a convergência do que se tem ciência e do que nada se sabe(rá)… é o protesto do tempo perdido pelo sadismo do presente. saudade é dor que não sente saudade da dor. é dor que o ar fresco causa vindo de morros distantes, dor da busca da alegria perdida. mas é uma dor saudável, pois ela nos lembra que sofremos de esperança… por paixões!

LIVRO: ONZE ASTROS, tradução de Michel Sleiman

 … Rita vai partir em breve, vai deixar sua sombra

como cela branca. Onde nos encontraremos?,

suas mãos perguntaram, olhei para longe,

o mar atrás da porta, o deserto atrás do mar,

beije-me nos lábios, ela disse, e eu disse: Rita, saio de novo enquanto

tenho uva e lembrança e as estações me deixam

murmurando entre o gesto e a palavra?

O que você diz?

Nada, Rita. Imito o cavaleiro de uma canção

que fala da maldição do amor retido nos espelhos…

Que fala de mim?

E de dois sonhos num travesseiro, desentendem-se, fogem, um

puxa a faca, o outro dá instruções à flauta.

Não sei o que significa, ela diz.

Nem eu, minha língua são farpas

como o sentido a que falta mulher. E cavalos suicidam-se

no final do campo…

LIVRO: MEMÓRIA PARA O ESQUECIMENTO, tradução de Safa Jubran

Três horas. Um amanhecer montado no fogo. Um pesadelo vindo do mar. Galos de metal. Fumaça. Ferro preparando um banquete para o Ferro-Mestre e uma alvorada que irrompe em todos os sentidos antes de romper. Um rugido me expulsa da cama e me joga neste corredor estreito. Nada quero e nada desejo. Não consigo ordenar meus membros neste tumulto. Não há tempo para a cautela, nem tempo para o tempo. Se eu soubesse… se eu soubesse como organizar o acúmulo desta morte derramada. Se ao menos eu soubesse como libertar o grito contido num corpo que não é mais meu corpo, de tanto esforço despendido para se salvar da perseguição do caos ininterrupto das bombas. “Chega”, sussurro apenas para verificar se ainda consigo fazer alguma coisa que me guie e aponte para o abismo aberto em seis direções. Não posso me render a tal destino. E não posso resistir a ele. Um ferro late; outro, para ele, uiva. A febre do metal é o cântico deste amanhecer. Que esse inferno faça uma pausa de cinco minutos… depois, seja o que for! Apenas cinco minutos! Eu quase digo: “Cinco minutos apenas. Para que eu possa preparar minha única ferramenta e, em seguida, organizar minha morte ou minha vida”. Mas será que cinco minutos são suficientes? Sim, bastam para eu me esgueirar por este corredor estreito que dá para o quarto de dormir, que dá para o escritório, que dá para o banheiro sem água, que dá para a cozinha, onde estou tentando chegar faz uma hora, mas não consigo, nunca consigo.

 

 

 

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Outono, o lago. Inverno, as pedras – Ensaio Palavra-Imagem com Nazik Armenakyan e Anna Davtian https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/outono-o-lago-inverno-as-pedras-ensaio-palavra-imagem-com-nazik-armenakyan-e-anna-davtian/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/outono-o-lago-inverno-as-pedras-ensaio-palavra-imagem-com-nazik-armenakyan-e-anna-davtian/#respond Sun, 03 Oct 2021 10:47:31 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/NazikArmenakyan_WhenPandemic_03-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22517 Para este Ensaio convidei as queridíssimas artistas Anna Davtian e Nazik Armenakyan para preencherem esse espaço com um dos meus temas preferidos: Armênia. Anna é escritora, tradutora e fotógrafa, além de ter sido a musa do meu novo filme “Cantos de um Livro Sagrado”, com Cesar Gananian na codireção. Anna é autora do livro de poesia bilíngue armênio-inglês “Livro da Gratidão”, 2012 e do romance “Khanna”, lançado em 2020. Nazik é fotógrafa e uma das fundadoras do coletivo “4Plus” que visa empoderar as mulheres por meio da fotografia. Ela ganhou alguns prêmios e participou de muitas coletivas ao redor do mundo, tendo publicado dois livros. Minha relação com as duas começou em 2014 quando decidi passar uma temporada no Cáucaso, conhecendo e retratando mulheres contemporâneas do país. Hoje estamos sempre nos cruzando e atravessando nossos caminhos em diferentes projetos relacionados à Armênia. O texto de Anna Davtian a seguir foi escrito originalmente em armênio e foi traduzido para o português para o entretempos.

Outono: o lago

Ele apenas se senta,

coloca o carro em P,

e eu olho por muito tempo em seus olhos,

então estou olhando para o lago por cima de seu ombro.

Um vislumbre atinge a escuridão.

Noite velha.

Ele diz: Prenda o cabelo para a estrada.

As duas margens do lago onde nada se reflete.

Seu fundo miserável sob o abdômen amarelado das águas.

O que devo dar para continuar?

O clima branco do final do outono. Ele diz, Ann, segure-se em mim,

para que o inverno não despenque entre as árvores.

As árvores vão se curvar sob a neve que o sol leva.

As horas caem no lago, ao longo da noite.

Um sonho se acumula ao longo dos anos.

Para que tudo isso pode ser usado?

Amar? Mesmo?

Olha, embora

Meus braços minhas mãos

ocioso,

A neve é engolida pelo lago.

A escuridão fere o lago.

Inverno: as pedras

A ausência de neve desce calmamente entre as árvores.

E eles ficam nus, inspecionando a estrada.

Um pensamento fala por si mesmo sem fim.

Como podemos nomear o que aconteceu?

Amar? Mesmo?

Uma palavra que você não me deixa pronunciar,

mas eu digo, Pain.

As cenas de uma cidade,

uma cidade de pedra negra,

mais enegrecido pela chuva.

Na estrada, um bando de juncos

desgastado pela poeira do sol.

À distância, ali, o pássaro preto das asas da ponte

contra o horizonte sem luz.

Uma mão corta lentamente a costura

do meu corpo e o seu à parte.

Para lá, a neve subiu,

de onde as estrelas espanam seus corpos.

Os arredores são um grande negócio,

Quando eu olho do ponto de vista da dúvida, por dentro:

Ele entende ou não?

A cidade respira o carvão negro do inverno,

curva sua face de granito para baixo para as estradas de ladrilhos.

Seu rosto voa para a umidade,

o que aconteceu é mais leve do que a poluição.

Existem campos aqui, onde jazem pedras nuas,

e as pedras são meu amor por você,

a terra nua é meu amor por você,

a estrada desgastada segue adiante,

a sensação de desejo para o cascalho e asfalto da estrada.

Aldeias por todos os lados,

sob as mandíbulas abertas do céu,

ameaçando uma chuva torrencial de neve,

em vez de enviar mudez.

Estou mudo, meu amor,

não sei como te falar sobre

o que vem de você.

Minha voz cai na noite

pertencente ao quintal da lua.

O carro continua com rodas de seda,

um pensamento de você. Eu olho para você

sobre as pedras da montanha

de onde sopra o horizonte aquoso.

Não é segredo.

O horizonte é uma cor,

manchado no pescoço das nuvens.

Uma rua vazia,

Eu digo seu nome para cada esquina,

Falo da saudade de seus olhos, de suas mãos,

suas roupas macias

Você provavelmente sorri com os olhos arregalados,

colocando a resposta na palma da minha mão.

Amando você esta noite,

Pressa!

Eu aceno um adeus.

Eu faço como se eu fosse alguém que parece

no mundo com calma.

O amor é uma varanda de vidro,

descansando no peito

de uma casa em ruínas

onde as pedras caem.

A água arde nos pés das árvores.

O vento aparece através da água.

O abismo sem fundo do amor está sob meus pés.

Os fios e postes chiam.

Ele não ama, ele não ama!

Enquanto isso, você pode ver o amor do lado, veloz,

Eu falo hesitantemente.

As casas negras podem ser vistas à distância.

Um tapete de pedra, colocado na liberdade das pessoas,

como uma hera forjada.

O lago brilha por trás das árvores sem neve.

Encontre uma maneira de falar, diz ele. Há um.

Carros rugem na cidade

correndo atrás de suas próprias luzes

pelas estradas de terra.

Gyumri, meu amante.

Em vez de neve, o tempo cai do céu,

O amor passa despercebidamente por todos os relógios.

A verdade vem de dois lados:

Um de mim,

o outro de você.

Eu não sei onde eles deveriam se encontrar.

Padrões no rosto da cidade.

Desejo de amor nas profundezas da cidade,

Estou indo para você, vibrando.

Porque quando alguém parte para o sonho,

o retorno se torna difícil.

Uma árvore solitária pende da lua.

Não está certo dizer,

mas há muito sexo reprimido aqui,

o orvalho está sob a pedra.

Isso me deixa louco.

Sentado na minha frente, há crianças

Eu provavelmente oro por.

O coração continua pulando de um segundo para o outro,

pardais cruzam o céu,

mas você não sabe porque,

é fevereiro.

A casa

Pessoas moravam aqui,

seus passos são ouvidos em todos os lugares,

uma mulher sem cabeça assiste

por trás do painel alto da janela.

A quarta janela do meu quarto é uma mensagem:

Ver você ainda está por vir.

Paredes brancas entre sussurros e portas,

fora do final do inverno

sob os carros sem neve.

O ninho das formigas fica na cozinha,

e eles carregam a árvore seca para dentro.

Uma casa branca, sem lacunas.

O som prateado do cascalho é ouvido do quintal.

Não é você.

O vento sopra a casa para o lago invisível.

Աշուն. լիճը

 

Նա պարզապես նստեց,

Մեքենան դրեց P,

Ու ես երկար նայեցի նրա աչքերի մեջ,

Հետո նրա ուսի վրայով նայում էի լճին.

 

լիճն աստղիկներով կծմծում էր մութը:

 

Հին գիշեր:

Նա ասաց՝ ճանապարհի համար կապիր մազերդ:

 

Երկու ափերը լճի, որում ոչինչ չի արտացոլվում:

Ողորմելի հատակը՝ ջրերի դեղնած փորի տակ:

Ես շարունակության համար ի՞նչ ունեմ տալու:

 

Ուշ աշնան սպիտակ եղանակ: Նա ասաց՝ Ան, բռնվիր ինձնից, որ ձմեռը փուլ չգա ծառերի միջով: Արեւից մաշված ձյուներով ճկվելու են ծառերը:

Ժամերն ընկնում են սառած լիճը՝ գիշերվա երկայնքով:

 

Տարիների հավաքած երազ մը:

 

Ի՞նչ գործածել այս ամենի համար.

Սե՞ր: Մի՞թե:

 

Տես, բայց,

Ձեռքերս ու թեւերս

Պառկած են պարապ:

 

Ձյունը կուլ է գնում լճին:

 

Մութը դաղում է լիճը:

 

 

Ձմեռ. քարերը

 

Ծառերի արանքից հանդարտ իջնում է ձյան բացակայությունը,

Ու նրանք կանգնում են մերկ՝ հսկելով ճանապարհը։

Մի միտք է խոսում անընդհատ՝

Ինչպե՞ս անվանել եղածը,

Սե՞ր, մի՞թե։

Բառ, որը չես թողնում արտաբերել,

Բայց ես ասում եմ՝ ցավ։

 

Հետո քաղաքի տեսարաններ,

Սեւ քարով քաղաքի՝

Ավելի սեւացած անձրեւից։

Ճանապարհին՝ եղեգների փոքրիկ երամ՝

խունացած արեւի փոշուց։

Հեռվում թեւում է սեւամած կամրջի թռչունը

Անլույս հորիզոնի վրա։

 

Մի ձեռք է հատում դանդաղ

մարմնիս ու մարմնիդ կարը։

 

Ձյունը վեր է ելել այնտեղ,

Որտեղից ցած է թափվում աստղերի փոշին։

 

Տարածությունն հսկա զբաղմունք է,

Երբ նայում եմ կասկածանքի միջից՝ հասկանու՞մ է, թե՞ չէ։

 

Քաղաքը շնչում է սեւ ածխաքարը ձմռան

Ու հակում է սալարկած փողոցներին իր բազալտե երեսը։

 

Քո դեմքը դուրս է լողում թացության մեջ,

Եղածն ավելի է թեթեւ, քան մառախուղը։

 

Այստեղ կան դաշտեր, որտեղ պառկած են մերկ քարեր,

Ու պառկած քարերն իմ սերն են քո հանդեպ,

Լերկ տարածությունն իմ սերն է քո հանդեպ։

Դիմացից գնում է ծոպավոր ճանապարհը,

Ցանկալիի զգացումը՝ ճանապարհի խճին ու ասֆալտին։

 

Գյուղեր ամեն կողմ՝

Երկնքի բաց երախի տակ, որ սպառնում է ձյուն ցած թափել,

Փոխարենն ուղարկում է համրություն։

Համր եմ, իմ սեր,

Չգիտեմ քեզ ինչպես ասել բանը,

Որ քեզանից է գալիս։

Ձայնս ընկնում է գիշերվա մեջ, որ լուսնի բակին է պատկանում։

 

Մեքենան գնում է մետաքսե ակներով,

միտք քո մասին,

Քո կողմն եմ նայում լեռան քարերի վրայով,

Որտեղից փչում է շունչը ջրոտ հորիզոնի։

 

Գաղտնիք չէ:

 

Հորիզոնը գույն է՝

Քսված ամպերի պարանոցին։

 

Դատարկ փողոց,

Ամբողջ երկայնքով քո անունն եմ ասում։

 

Ես խոսում եմ աչքերիդ, ձեռքերիդ կարոտից,

Փափուկ շորերիցդ,

Դու ժպտում ես հավանաբար լայն աչքերով՝

Պատասխանը դնելով ափիս մեջ։

 

Քեզ սիրելն այս գիշեր։

Շտապիր։

 

Ես ձեռքով եմ անում հրաժեշտին,

Ես ձեւացնում եմ, թե մեկն եմ, ով աշխարհին հանգիստ է նայում։

Սերը ապակյա պատշգամբ է,

Հենված խարխուլ տան կրծքին, որից քարեր են թափվում։

 

Ջուրը դաղում է ծառերի ոտքերը։

Քամին երեւում է ջրի միջով։

Անհատակ վիհը սիրո՝ ոտքերիս տակ է։

 

Լարերն ու էլեկտրասյուները ֆշշացնում են՝

Չի սիրում, չի սիրում, չի սիրում։

 

Իսկ դու կարող ես տեսնել սերը կողքից, արագի մեջ,

Ես հապաղելով եմ խոսում։

 

Հեռվից երեւում են քաղաքի սեւ տները՝

քարե գորգ,

Դրված մարդկանց ազատության վրա՝ ինչպես դարբնած բաղեղ։

Լիճը կայծկլտում է անձյուն ծառերի հետեւում։

Հնար գտեք խոսելու` ասում է։ Կա։

 

Քաղաքի մեջ վնգում են մեքենաները՝

վազելով իրենց լույսի հետեւից՝ նեոնե ճամփաներով։

Գյումրի՝ իմ սիրեցյալ։

 

Ժամանակն իջնում է երկնքից՝ ձյան փոխարեն,

Բոլոր ժամացույցների միջով աննկատ սահում է սերը:

 

Ճշմարտությունը գալիս է երկու կողմից.

Մեկը ինձնից,

Մյուսը քեզնից,

Չգիտեմ` որտեղ են նրանք հանդիպելու։

 

Քաղաքի երեսին` նախշեր,

Քաղաքի խորքում` սիրո տարփանք,

Ես տրոփելով եմ գալիս քեզ մոտ:

 

Քանի որ երբ մեկն այդքան հեռանում է դեպի իր երազը,

Վերադարձը դառնում է դժվար:

Լուսնից կախված է միայնակ ծառը:

 

Պետք չէ ասել,

Բայց շատ ճնշված սեռ կա այստեղ,

Շաղը քարի տակ է:

Ինձ հանում է հունից:

Երեխաներ են նստած իմ առջեւ,

Ում համար ես գուցե աղոթում եմ:

 

Սիրտը շարունակում է ցատկել մի վայրկյանից դեպի մյուսը,

Երկնքով ծիծեռնակներ են անցնում,

Բայց, չգիտես ինչու, փետրվար է:

 

Տունը

 

Այստեղ մարդիկ են ապրել,

Ամենուր լսվում են նրանց ոտնաձայները,

Անգլուխ մի կին է նայում պատուհանի երկար փեղկից այնկողմ:

 

Իմ սենյակի չորրոդ պատուհանը հաղորդագրություն է՝

Շատ երկար է իմ գալը քեզ մոտ:

 

Սպիտակ պատեր՝ շշուկների արանքում, ու դռներ:

Դրսում մեքենաների տակ սպառվում է ձմեռը՝ առանց ձյան:

 

Խոհանոցում մրջյունների բույնն է,

Որ ներս են կրում դրսի չորացած ծառը:

 

Սպիտակ տուն՝ առանց թերությունների:

Բակից լսվում է խճի արծաթե ձայնը:

Դու չես:

Քամին քշում է տունը դեպի չերեւացող լիճը:

 

Գյումրի, 2018

 

 

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Incandescência poética – Ensaio Palavra-Imagem com Juliano Garcia Pessanha e Hiroshi Sugimoto https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/19/incandescencia-poetica-ensaio-palavra-imagem-com-juliano-garcia-pessanha-e-hiroshi-sugimoto/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/19/incandescencia-poetica-ensaio-palavra-imagem-com-juliano-garcia-pessanha-e-hiroshi-sugimoto/#respond Sun, 19 Sep 2021 10:00:08 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/059bb15c4a1a8c5644e16430a48a4032-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22475 Para esta edição do Ensaio, convidei Juliano Garcia Pessanha para estampar esta página com um trecho de seu mais novo livro “O filósofo no porta-luvas”, lançado na última semana pela Editora Todavia. Formado em filosofia pela USP, ele é autor da tetralogia “Testemunho Transiente”além de “Recusa do não-lugar”(2018), dois livros que me acompanharam nos últimos anos. Eu sabia que queria as palavras de Pessanha neste domingo, mas ainda não tinha as imagens para estampá-las – encontrar as imagens certas é sempre um caminho complexo a se trilhar. Eu mergulhei em seu novo romance, um híbrido que mistura melancolia, humor, uma certa fabulação e a observação das paixões humanas com as maiores discussões da filosofia. Com o trecho que escolhi, só conseguia pensar nas polaroids coloridas do genial artista Hiroshi Sugimoto – mestre do preto e branco – impressas em lenços da marca Hermés, no festival de fotografia “Les Rencontres d’Arles”. Entre fim de 2009 e começo de 2010, durante o inverno no hemisfério norte, ele acordou todos os dias às 5h30 para observar os primeiros raios de sol e se inundar da metamorfose das cores. “Depois de passar pelo espaço negro vazio, a luz do sol atinge e se submete ao meu prisma, refratando-se em um contínuo infinito de cores”. A combinação inusitada entre os dois sugere um portal para diferentes reflexões de uma vida toda.

Numa sexta-feira em que não haveria corrida para Santos, ele foi até o Caps. O psiquiatra havia preparado uma sala para ele. Sentaram-se uns quinze usuários do sistema, duas terapeutas ocupacionais, uma psicanalista e dois psiquiatras. Frederico começou:

“Boa tarde a todos, estou honrado com o convite. Escutei certa vez de uma sereia que eu era um doutor em condição humana. Talvez ela tenha exagerado, mas não há razão para eu não me autorizar a falar. O que vou lhes dizer é o mantra cansado que não cesso de repetir. O ser humano é um camaleão. Em geral ele gosta de tomar a coloração das coisas do mundo, pois isso lhe dá um pouco de sossego. Quando ele está esverdeado perto da folha de uma árvore, assistimos ao camaleão descansar e fechar os olhos. Não é agradável quando encontramos um camaleão tranquilo ou uma pessoa que coincide com ela mesma? Nada é melhor que tomar a cor do mundo e falar seu idioma. Caso contrário, quando não está encostado em nada, o camaleão fica exposto. Zanza sem saber quem é e fala em línguas exaltadas. O Gregório era assim. Ele proclamava: ‘Estou fora dos mapas. Sou um homem antigo. Tudo me confessa!’. “Eu achava lindo o Gregório ser um clandestino. Eu o admirava por ele não estar vestido com o uniforme dos regimes culturais. Ele escapava das coerções discursivas e não tomava parte na cena do mundo. A máquina de embalsamar esquizofrênicos não o pegava. Eu não entendia nada do humano e das suas imunizações. Nada da metamorfose dos camaleões. Para saber algo disso, é preciso partir de uma diferença. Há os camaleões que dizem sim e os que dizem não. No primeiro grupo, a sentença ‘Ah, sim, eu aceito tomar a cor desta flor ou deste tronco’ é dita sem solavanco. O aroma da flor ocupou e preencheu tanto o camaleão que ele mergulhou na sua cor. Já o que se retrai diz: ‘Eu não vou me colorir no mundo. Prefiro ficar suspenso e indeterminado. Pertenço ao nada e ao abismo’. O Gregório era do segundo grupo. No dia em que se apresentou na oficina, ele disse: ‘Dizem que sou pai-de-deus. Desde menino eu via animais em sonhos, antes mesmo de tê-los visto pessoalmente ou em fotografias’. O pai-de-deus era tão exposto e aberto que espelhava a totalidade do real. E, sem nada dentro de si, anotava o ditado das coisas. Mas o Gregório queria aterrissar e ganhar interioridade. Sei disso porque o pai-de-deus me contou que queria misturar-se com uma mulher. Ele estava apaixonado e ansiava abandonar a via negativa. O camaleão queria ganhar cor, inventando uma mulher existente. Na imagem que faço do camaleão, ele não é mera adaptação, pega a cor daquilo que torna seu. Mas a mulher tinha partido e era preciso atravessar o uivo daquele corpo desabitado. Eu me aproximei dele, publiquei seus poemas, tomávamos suco de manga na Paulista, mas eu não mergulhei na sua dor. Eu só a vesti com roupagens filosóficas. Estetizei o Gregório e, em vez de caminhar com ele no interior do grande vazio, pintei o cabelo dele de azul. Eu estava enfeitiçado pela mania de pureza e achava que quem existe na lonjura está fora do circuito da alienação. Para mim, na condição de idiota teológico, Gregório e eu éramos a incandescência poética de singularidades livres da armação do mundo. Esta palestra, meus amigos, é um pedido de desculpas. Sorte a minha não ter morrido naqueles anos de arrogância. Sorte eu estar aqui com vocês participando e sendo visto. Sou agora apenas um olho a mais. Já não vivo na distância como meta-olho. Eu estava intoxicado pela teologia da dor, de Heidegger e de Adorno: de um lado, os que conheciam o sofrimento e sabiam soletrá-lo e do outro, no andar de baixo, os iludidos, os que deviam ser liberados. Ah, amigos, meu autismo filosófico foi corrigido pela visita do mundo. Meu nariz empinado desabou e tudo o que posso fazer agora é falar-lhes da linha onto-topológica e da metamorfose dos camaleões. Não posso falar do teorema de Gödel nem da estrela da manhã, mas posso descrever as posições de quem chegou e quem não chegou na casa do mundo.”

Quando Frederico terminou, foi aplaudido. Sentiu que estava imerso naquele lugar. De fato, o rato, o bolso vazio e o corpo doente tinham-no puxado para o mundo com toda a força. Despencou da redoma-consultório e espatifou no chão. Cessou o delírio de presunção.

 

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O artista mexicano Bosco Sodi e suas obras de terra com destino cósmico https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/o-artista-mexicano-bosco-sodi-e-suas-obras-de-terra-com-destino-cosmico/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/o-artista-mexicano-bosco-sodi-e-suas-obras-de-terra-com-destino-cosmico/#respond Fri, 17 Sep 2021 10:31:10 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/645170_df501e7a88ae440aa093d0b5f8fa9f5dmv2_d_4902_3268_s_4_2-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22442 “Esse tempo da dureza das pedras, esse litocronos, não pode se definir senão como o tempo ativo de um trabalho, um tempo que se dialetiza no esforço do trabalhador e na resistência da pedra; ele se manifesta como uma espécie de ritmo natural, de ritmo bem condicionado. E é por esse ritmo que o trabalho obtém ao mesmo tempo a sua eficácia objetiva e a sua tonicidade subjetiva.” Gaston Bachelard, A terra e os devaneios da vontade.

Bosco Sodi, 1970, o “homem da terra”. Mexicano, diagnosticado desde cedo com dislexia, mergulhou nas artes plásticas inspirado pela mãe para tentar driblar sua condição. Do pai engenheiro químico, veio a admiração pelos experimentos.

“Dislexia te dá um pouco mais de liberdade de pensar e entender o mundo em pequenos fragmentos, como haikais” disse ele em nossa conversa no último sábado, 11 de setembro, pelo telefone.

Conhecido por usar materiais naturais e crus e por se apropriar da intimidade das substâncias para criar pinturas e objetos em grande escala, sua obra carrega múltiplas camadas de tempo, nas quais o destaque está mais no processo do que no resultado A impermanência e os estados porosos de cada acontecimento são sua bússola. Aos 17 anos, com o livro Wabi sabi na cabeceira, iniciou sua busca na não-busca, na atração pela natureza e pela imperfeição, se deixando atravessar pelos acidentes e pelo acaso dos materiais e dos estados da matéria-duração, respeitando seus devires e suas derivas. Tudo é transitório, incompleto e imperfeito, a perfeição é impossível e a imperfeição é o estado natural de todas as coisas.

“Acredito muito na troca de energia entre os quadros e o material. Respeito a natureza e tento entender e intensificar essa troca constante.” Bosco

Quando se mudou para Barcelona em 2001, não tinha uma linguagem própria e era sempre atraído pela matéria e nem tanto pela cor. Ainda eram pinturas planas. A cor se separava da matéria. Alguns cafés com o artista catalão Antonie Tapies abriram seus caminhos para a junção das duas em suas explosões de texturas, sentimentos e percepções. “A matéria fala por si própria” dizia Tapies.

“Por que não juntar cor e matéria e incitar o estômago e as vibrações no corpo?” Questionava-se. E assim seguiu com seu mantra, acreditando que quando há um processo sólido, há tudo que é necessário para uma obra de arte. Nessa anarquia de texturas e materiais, o melhor exemplo é sua obra Pangea, de 2010, uma reflexão sobre este grande continente numa explosão de lava em um painel de 4×12 metros, criado para o museu do Bronx.

 

A influência do budismo aplicada em todas as suas obras, traz a não dualidade, a unicidade de cada fazer e se ausenta de toda e qualquer repetição possível. Sua obra é muito mais resultado de processos intensos do que de inspirações. Ele escolhe na maioria de seus trabalhos não dar título para não sugestionar o espectador. Definido por ele como um processo xamânico, sua busca vem muito da solidão e de atuar diretamente em cada etapa do processo.

Seu diálogo afinadíssimo com a essência da matéria-prima e seu espaço as preenche de memórias únicas. A qualidade de tempo na peça, o sol, a brisa, o vento…. isso dita o resultado e é a maior aliada de sua potência, com uma estética japonesa e expressionista. Seus quadros como paisagens inventadas/topografias. São pigmentos trazidos de diferentes partes do mundo e extraídos de infinitas pedras com as histórias de seus territórios.

Colecionador de pedras de todos os cantos – assim como eu – e sem limites para aumentar sua coleção, acredita que nós somos escolhidos por elas e na energia que pulsa em cada uma. E também nas marcas de história e de tempos que nelas se acumulam para a obra-vida.

Com diferentes casas espalhadas pelo mundo e pedras e mais pedras acumuladas, em sua terra natal, Oaxaca, Bosco mantém a fundação de arte filantrópica Casa Wabi, projetada por ninguém mais ninguém menos que o gênio do concreto, o arquiteto japonês Tadao Ando. Há três anos, abriu a Casa NaNo em Tóquio. Sua conexão com o mundo oriental é longa. E não só a dele. A conexão do Japão com o México também vem de longa data. No início do século XVII, lideranças do atual Japão enviaram o samurai Hasekura Tsunenaga para a Nova Espanha para ser uma espécie de diplomata nipônico no que hoje é o México. Bosco acredita que o silêncio da cultura japonesa com o ruído dos latino americanos fomentam uma relação. Contou-me que em uma de suas exposições no Japão, um monge budista foi como espectador e seu entendimento da obra foi uma das mais bonitas. “Acho que os orientais entendem mais minha obra do que nós, do Ocidente.”

Com um discurso de novos começos e de que tudo sempre há de recomeçar e renascer, sua obra-performance-instalação “Tabula Rasa” começou ao amanhecer na Washington Square Park, em Nova York, com a instalação de 439 esferas de argila em pequena escala, terminando mais tarde quando os passantes eram convidados a levar pra casa uma delas, como parte precisa da obra.

Estas esferas foram feitas à mão pelo artista, simbolizando um dia da duração da pandemia de Covid-19. Trazendo práticas agrícolas indígenas mexicanas para os Estados Unidos, são recipientes para uma nova vida, contendo dentro delas três tipos de sementes – milho, abóbora e feijão – que sustentam e nutrem umas às outras, fornecendo um sustento equilibrado. Metáfora potente para a necessidade de cooperação e assistência mútua, essas plantas simbióticas encorajam a reflexão sobre nossa própria interdependência e confiança mútua e, crucialmente, no mundo natural que habitamos.

 

Essa e todas as suas obras trazem à tona essa efemeridade dos materiais elementares, podendo ser lapidado pelo entorno, sempre. Água, ar, fogo e terra contêm em si a própria essência da vida. A escolha de Bosco pelo barro e por pigmentos naturais, numa relação integral entre arte e terra o mantém numa linha de pensamento do devir e de um destino cósmico.

 

 

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Também guardamos pedras aqui – Ensaio Palavra-Imagem com Luiza Romão https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/08/29/tambem-guardamos-pedras-aqui-ensaio-palavra-imagem-com-luiza-romao/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/08/29/tambem-guardamos-pedras-aqui-ensaio-palavra-imagem-com-luiza-romao/#respond Sun, 29 Aug 2021 13:42:51 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Captura-de-Tela-2021-08-29-às-10.39.21-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22419 Para esta edição do Ensaio Palavra-Imagem, convidei a poeta e atriz Luiza Romão para interagir com imagens que fiz na Armênia nos últimos 15 dias. A ideia de convidá-la surgiu quando vi o título de seu novo livro: “Também guardamos pedras aqui” (Editora Nós). Conversamos um pouco sobre pedras, ruínas e decidimos que as suas palavras com as minhas imagens recentes fariam sentido juntas. Ela também é autora de “Coquetel Motolove” e “Sangria” (ambas pelo selo Doburro) e investiga as fronteiras entre poesia, performance e cinema. Além disso, participou de antologias como “Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta” (Editora Planeta); “Antifa: Coleção Slam” (Autonomia Literária) e “29 poetas hoje” (Cia das Letras). Atualmente, Romão desenvolve mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP) estudando voz, poesia e slam. Quanto a mim, tenho uma pesquisa de anos sobre o território-Armênia e seus desdobramentos em cicatrizes, fronteiras, montanhas e ancestralidade. A união dos nossos trabalhos promove uma combinação de existências, de lugares, do Cáucaso ao Brasil, das pedras que guardamos aqui, com as pedras que nos guardam por lá.

 

epílogo

ditas as palavras todas ou alguma

sopro agarrado à glote com desejo

de voz suspensas as refregas borra

aparente no átimo da página virada

a cabeça pendida diminuta quimera

só elas restam elas rubras colossais 

 

herói algum lhe tocaria os cabelos

herói algum lhe encurralaria a noite

herói algum até que

 

medusa-górgone-mulher-animal-celenterado

 

sussurro através das lascas

ler na poeira os arquivos

do ontem aprender a quebrar

pedra com os olhos

 

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Aviso – Já voltamos! https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/08/09/aviso-ja-voltamos/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/08/09/aviso-ja-voltamos/#respond Mon, 09 Aug 2021 14:34:39 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/a-line-in-the-arctic-4_1920-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22412 O entretempos vai fazer uma pausa e volta no próximo dia 29.

Para quem quiser sugerir pautas e outros comentários, é só mandar um email para: blogentretempos@gmail.com

E siga o entretempos no instagram: entretempos.blog

Até breve.

 

 

 

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Brigando quando posso, ficando quieta quando preciso – Ensaio Palavra-Imagem com Noemi Jaffe e Hiroshi Sugimoto https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/06/27/brigando-quando-posso-ficando-quieta-quando-preciso-ensaio-palavra-imagem-com-noemi-jaffe-e-hiroshi-sugimoto/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/06/27/brigando-quando-posso-ficando-quieta-quando-preciso-ensaio-palavra-imagem-com-noemi-jaffe-e-hiroshi-sugimoto/#respond Sun, 27 Jun 2021 09:15:30 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/2001.272_ph_web-1-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22336 Para esta edição do Ensaio, decidi escolher alguns dos diários escritos pela Noemi Jaffe durante a pandemia, em seu facebook e instagram. Eles acompanham duas imagens do fotógrafo japonês Hiroshi Sugimoto, que casam com as palavras de Jaffe. Sei que os dois já estiveram por aqui, mas quando uma relação toca a gente mais de uma vez, por que não publicá-los novamente? Fora que a minha própria relação com a Noemi também mudou há cerca de 1 ano. Hoje faço parte do seu grupo de escrita da “Escrevedeira”e tenho mergulhado cada vez mais nas palavras. Autora de diversos livros, além de crítica, poeta, professora e sócia-diretora  da  “Escrevedeira”, Noemi Jaffe lançará seu novo livro “Lili” pela Companhia das Letras, em julho. Mais silencioso e pouco visual, este Ensaio chega potente, provocando reflexões importantes para os dias que habitamos.

20/06/2021
quinhentas mil escovas de dente com cerdas gastas. quinhentos mil travesseiros mais fundos no lugar da cabeça. quinhentas mil canetas com carga pela metade. quinhentos mil pares de meias com um furo na costura. quinhentas mil xícaras de onde não sai uma sujeirinha. quinhentas mil carteiras de identidade com o plástico amassado no canto. quinhentos mil jeitos de dizer bom dia. quinhentos mil nomes com apelidos. quinhentas mil fotografias que não saíram muito boas. quinhentos mil projetos sobre o que fazer nas férias. quinhentos mil emails apagados. quinhentas mil raivas que não puderam ser transmitidas. quinhentos mil erros gramaticais. quinhentas mil coceiras, micoses, barba por fazer, cabelos tingidos, sobrancelhas feitas, estojinhos de maquiagem, prestações a pagar, livros da faculdade, prateleiras com fotos, aquilo que não foi dito, o que ainda deveria ser. quinhentos mil silêncios sobre o que, de tanto ódio, não se consegue dizer mas que vai ser dito de algum jeito por quinhentas mil pessoas e mais quinhentas mil e mais quinhentas mil a cada vez que o genocida matar mais uma escova de dentes.
07/04/2021
sequei. daqui, hoje, não sai nada. só me sinto apta a receber: o que leio, frases do passado, notas em caderninhos, falas de quem admiro, receitas da internet, o pelo da mia, o rosto da samba. espremo, ensaio, anoto, apago, desisto. ontem naveguei em mares perigosos e balancei num barco em que as oscilações eram ora vida e ora morte, ora oração e ora descrença, ora acompanhamento e ora solidão. dormi sonos intranquilos e não acordei como um inseto monstruoso, não fui gregor samsa nem mersault. olhei no espelho e só tinha mesmo eu, estremunhada, os mesmos olhos ineptos. sonhei que morria muitas vezes, voltava e morria outra vez. de manhã soube da morte do professor alfredo bosi e lembrei da sua voz baixa, dos modos discretos, dele recitando dante inteiro de cor. mais uma palavra a menos, menos uma palavra a mais. hoje acordei na mesma pele. seca.
30/03/2021
o mundo está acabando ou o mundo está começando ou estamos todos sonhando ou nunca a realidade foi tão real ou é bobagem achar que sonho e realidade são coisas diferentes ou estamos todos doentes ou dizer isso é uma hipocrisia diante de quem está mesmo doente ou dizer isso é que é a maior sinceridade ou precisamos ajudar a todos ou somos nós que precisamos de ajuda ou por que fico falando nós se o problema sou eu ou por que fico me escondendo por trás desse nós ou eu é que não sei de nada ou finalmente eu disse eu ou era melhor ter ficado com o nós ou preciso de companhia ou não preciso de ninguém ou estou tão cansada ou foda-se meu cansaço ou nem estou tão cansada assim ou a melhor coisa do dia é a notícia da elidia estar melhor ou esse chinelo furado e velho que pensa nos governar não tem força nem pra dar golpe num boxeador aposentado e obeso ou amanhã mesmo haverá um golpe e não terei tempo de conversar com o sergio ou nada vai mudar ou tudo já está mudando.
18/03/2021
saca e ressaca é o movimento das ondas do mar, que vão e revão, vêm e revêm. a minha, de hoje, é pelo vinho que, como uma onda, avançou e retrocedeu pelos fluidos dentro de mim e acabou se manifestando nos olhos baços, o dia inteiro dormentes. leio sobre anjos e os debates medievais sobre se eles eram ou não incorpóreos como deus, se sentiam cheiros ou se eram feitos de fogo ou de ar e quero me dedicar somente a isso. ficar com os olhos semicerrados e pensar em anjos – como aquele que me foi diretamente designado e cuja única função é reservar vagas para estacionar. como os polvos soltam líquidos roxos e os moluscos expelem conchas, os humanos expelimos palavras, nossos ninhos feitos de sons, de espanto e de medo. do espanto nascem a arte e a ciência e do medo nasce o mal, que se traduz em falta de remédios para entubação, em mais de duas mil mortes por dia, em prisão de pessoas que estendem faixas e em negacionismo. o medo, aliado à palavra, mata, porque teme morrer.
17/03/2021
vou abrir uma importadora: a empresa vai importar só o que importa e não importar o que não importa. um rabino antigo me disse que, no casamento judaico, quebra-se um copo para que o casal sempre se lembre de não se importar com os copos, porque eles não importam e, na verdade, muitos casamentos terminam por causa deles e afins, como pastas de dentes e pias. sinto falta dos meus amigos, da padaria, de fazer não sei o quê na rua, de não saber o que vou fazer e acabar fazendo o que não imaginava. sinto falta de mim mesma. tive, talvez, o melhor aniversário de que me lembro em muito tempo, com tanto carinho e alegrias pequenas de amores vãos. tudo deve ser mais vão, mais à toa e sem necessidade. que a gente se encha de profusão, que haja mais perdularidade e exagero. exagerem, amigas e amigos, sejam mais prodigiosos e deem mais do que os outros precisam. abundem e sobrem, para que só reste o que não cabe mais.
27/02/2021
contar um sonho é traí-lo, porque, verbalizado, ele é obrigado a uma linearidade que não tem. nessa linearidade da sintaxe, somos forçados a preencher os vácuos, atribuindo um nexo de que o ouvinte precisa. e qual não é a frustração quando nem o ouvinte se interessou e nem o relato foi fiel? seria preciso inventar uma linguagem onírica e dizer: papagaios nasciam nos pés sem cor esmagado palavras cruzadas. sonhos são extratos moles da alma, como o fio das aranhas ou a tinta do polvo. é o líquido viscoso da mente em repouso, que expele fragmentos e cria aglomerações promissoras ou terríveis. é o cérebro na negativa do tempo arbitrário, reunindo passado, presente e futuro num único organismo. ao relembrá-los, de manhã, é tão bom permanecer no caos recém apagado. mas assim que sentimos a urgência de contá-lo, já o transformamos em símbolo e ele se dissipa, desobediente como todo diabinho
12/09/2020
parece que estamos na confluência de dois sistemas de signos e significados reprimidos, que, por forças diversas, eclodem de suas cavernas para a tona. por um lado, muito daquilo que a normatividade utilitarista reprimiu, como a loucura, a negritude, as diferentes formas de sexualidade, o feminino. e, por outro, e como resposta a esse primeiro, aquilo que a razão civilizatória e iluminista reprimiu também: a ignorância, a vulgaridade, a mentira, a vileza, tanto moral quanto estética. assistimos e fazemos parte, agora, de um confronto entre forças polares reprimidas, as duas muito fortes e, inclusive violentas, muito em função da violência com que foram subjugadas. o que fazer? apelar para aquilo que põe em jogo dialético os dois lados: a razão sensível, a poesia, o sonho, a luta inteligente. penso que é inevitável que os esforços assim chamados identitários acabem por vencer a briga contra os fantoches fascistoides que pululam, agora felizes, pelas ruas. o problema é quando e como. talvez não estejamos (eu, ao menos) mais por aqui. enquanto isso, preciso encontrar meu sentido: enlouquecendo, deslocando, desvirtuando e morrendo, para poder viver e ajudar a viver. brigando quando posso, ficando quieta quando preciso.
25/03/2020
hoje, medo. um que não tinha ainda sentido. de golpe militar, alguns minutos de pânico, talvez. certeza de que o apego ao celular, adição mesmo, precipitam a desproteção. a leda me diz pra me separar dele, se preocupa. deixo em outro ambiente, e retomo 2666, como escreve bem o filho da mãe do bolaño, mesmo sem empatia nenhuma com os personagens, quase desprezados por ele. ele desqualifica os intelectuais que descreve e eu, metida a intelectual, acabo concordando, mas me sinto mal. o João toca violão no quarto do lado e me emociono escutando quando tá escuro e ninguém te ouve, quando chega a noite, de um jeito que só ele sabe cantar. discutimos um pouco, fazemos as pazes sem falar nada, que é o melhor jeito. ouço a aula da Claudia Mello pelo youtube e me emociono de chorar, de amor por todas as possibilidades que existem.
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Trata-se de uma jornada que não se interrompe – Ensaio Palavra-Imagem com Ícaro Lira e Gabriel Bogossian https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/06/13/trata-se-de-uma-jornada-que-nao-se-interrompe-ensaio-palavra-imagem-com-icaro-lira-e-gabriel-bogossian/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/06/13/trata-se-de-uma-jornada-que-nao-se-interrompe-ensaio-palavra-imagem-com-icaro-lira-e-gabriel-bogossian/#respond Sun, 13 Jun 2021 12:29:55 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Icaro_Lira_2019_62_lecons-de-la-pierre_2019_Salle-Principale-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22298 Este Ensaio Palavra-Imagem chegou como aqueles acasos bonitos da vida. Na segunda-feira vi que o artista cearense Ícaro Lira (1986) estava com seu novo livro “Lições da Pedra”saindo do forno e na hora meu coração bateu forte. Eu tinha acabado de voltar do Ceará e sou completamente obcecada por pedras. Precisava ter aquele livro em mãos. Mandei uma mensagem e em meia hora o livro estava na minha casa. Em mais uma hora, pensamos no Ensaio deste domingo. Convidamos o curador e editor independente Gabriel Bogossian (1983) – descendente de armênios como eu – para mergulhar em palavras nas pedras de Lira. Em sua produção, Lira se debruça sobre algumas implicações contemporâneas de eventos da história brasileira, aproximando práticas arquivísticas, arqueológicas e ficcionais. Ele fez exposições individuais no Paço das Artes e na Galeria Jaqueline Martins, além de coletivas no Palais de Tokyo em Paris e no Instituto Tomie Ohtake. Bogossian foi curador adjunto da Associação Cultural Videobrasil (São Paulo, 2016-2020), curador convidado da 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil |Comunidades imaginadas (São Paulo) e da Screen City Biennial (Stavanger). O encontro entre os dois já tinha acontecido em 2018 e hoje transborda em um texto exclusivo para o blog, permeado por um fluxo poético e pelo porvir e devir. E eu estou feliz da vida com essa torrente de acasos…

 

 

As pedras

As imagens se encadeiam sem nenhum esforço. Como frames de um filme disperso, cujas sequências se abrem e se expandem no espaço, a documentação fotográfica das exposições de Ícaro Lira reunida no livro Lições da Pedraaponta para uma espécie de magia simpática aplicada indistintamente sobre manzuás, livros e cartões postais. Sob ela, os elementos de uma obra em processo tornam-se uma mesma matéria imagética, itens recolhidos por um arquivista impossível que tivesse, em uma só vida, reunido os despojos de Langsdorff e Euclides, Alexandre Rodrigues Ferreira, Rondon e os irmãos Villas-Bôas, testemunhando, a partir deles, a conquista de um território e de suas populações, nisso que hoje é o nosso país.

As imagens são parte de um mesmo fluxo, um mesmo tempo que atravessa séculos, ciclos econômicos, governos. Trata-se de uma jornada que não se interrompe, progredindo através da história rumo talvez à destruição, quem sabe à morte. Ao arquivista tampouco é dado parar, operando ora como objetiva, ora como coletor: por todo lado existem planos, indícios, recolhe-se uma informação relevante. Se um pensamento cinematográfico preside a tudo, é porque só uma imaginação forjada pelo cinema permitiria um encadeamento tão surpreendente de eventos e cenas, emendando bitolas e formatos, transpondo faixas de áudio de um personagem a outro, identificando cacoetes que se repetem aqui e ali, ainda que separados por décadas.

As imagens reaparecem em diferentes trajetos, assim como certas cenas se repetem em diferentes cidades, num rizoma de imagens-sintoma que liga passado e futuro. Trata-se de uma sequência bastante ampla, repleta de fantasmas, eles também insistentes, recorrentes. O Pacificador, sob cujo cavalo seguem oprimidos os miseráveis, não interrompe seu chamado à guerra, enquanto nos templos e nos covis falsos profetas repetem seus cantos de espoliação e riqueza e tiros perturbam outra vez a superfície das águas.

As imagens avançam desimpedidas, acompanhando o progresso que segue ora como um tropel de marcha, ora como tratores. Dão testemunho de uma fome impossível, quiçá insaciável, mas os testemunhos e os sinais se acumulam, mudos, sob os escombros, e pouco nos resta além de observar sua repetição nauseante e a fumaça. Fumaça, não névoa: a supressão do horizonte é um gesto estudado, um projeto, desejo de morte ou insídia, ele mesmo insistente. Diante dela, como de toda a destruição, restam as pedras, luminosos indícios de que um dia houve gente, rostos, um povo na beira do rio. As pedras – as pedras, como os fotogramas, chamuscadas pelo futuro, murmuram sua lição; não de quietismo, mas de ação: rumo ao porvir.

 

 

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Ficções Coloniais – Denilson Baniwa na nova edição da revista ZUM, do Instituto Moreira Salles https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/20/ficcoes-coloniais-denilson-baniwa-na-nova-edicao-da-revista-zum-do-instituto-moreira-salles/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/20/ficcoes-coloniais-denilson-baniwa-na-nova-edicao-da-revista-zum-do-instituto-moreira-salles/#respond Thu, 20 May 2021 11:33:35 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/ZUM20_Baniwa_01-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22276 A convite da ZUM, o artista Denilson Baniwa concebeu um trabalho inédito para a revista que será lançada hoje, (quinta-feira) em uma live às 18h, transmitida nos canais de YouTube e Facebook da ZUM. Haverá um debate com Allan Weber e Lita Cerqueira. Na série “Ficções coloniais, Baniwa faz intervenções irônicas em fotografias dos povos indígenas feitas por Theodor Koch-Grünberg no século XIX, inserindo ícones da cultura pop, como King Kong, E.T. e Alien. Numa inversão de perspectivas, o artista comenta os processos de expropriação das culturas nativas: “O mundo ocidental imagina ataques alienígenas que destroem gente e cidades porque foi isso que fez ao longo dos tempos e teme um revide histórico. Pois, para os diversos povos originários deste planeta, um dia os alienígenas foram o mundo ocidental.” 

Na semana passada, planejamos uma conversa que no final acabou virando um minipapo, quando sugeri a ele que escrevesse em um texto corrido sobre esse novo ensaio feito para a ZUM partindo de algumas palavras e sentimentos: pop x tradição, expectativa x realidade, alienígenas x humanos, fotografia como janela da alma, fotografia x cinema, memória x futuro, tempo-espaço-hoje, terminando com a frase: “como você está hoje, no meio de tudo que vivemos, sonhamos, lutamos e acreditamos?”

Ficções Coloniais, de Denilson Baniwa

Denilson:

Quando o Thyago Nogueira, editor da Zum! me convidou para participar do projeto, senti uma continuidade das conversas que já havíamos feito em outros momentos, a exemplo do convite para o Projeto IMS Convida, onde tecemos assuntos como imagética e povos indígenas e surgiu a ideia de trabalhar com os registros fotográficos do Theodor Koch-Grünberg, etnólogo e fotógrafo alemão. Não por acaso, eu escolhi trabalhar com estes registros, Koch-Grünberg tem uma importância muito grande para o território onde eu nasci, região do Rio Negro, interior do Amazonas.

Dentre as centenas de registros fonográfico, fotográficos, gravuras, diários e entrevistas, uma se destaca e que de certa forma mudou o Brasil: o diário de Koch-Grünberg onde Mário de Andrade retirou as anotações para criar a personagem Macunaíma, que acabou virando o famoso livro e posteriormente filme, que ainda hoje repercutem em lugares tão distantes tanto nas mesas de um boteco no Rio de Janeiro quanto nas salas de aulas da USP.

Trabalhar com as fotografias deste etnólogo alemão é dialogar e navegar em dois aspectos caros a mim: o Eu pertencente ao milenar povo Baniwa e o Eu urbanoide que ama cinema, quadrinhos e fotografia.

Sou de uma geração de indígenas que viram o surgimento do Brasil Novo, da Constituição Cidadã, da abertura do país. Da geração que viu a chegada de aparelhos tecnológicos e que teve acesso a educação formal, fora da educação católica violenta dos Internatos Salesianos no Rio Negro.

Junto com outros da minha idade, também fomos os que tiveram contato com uma educação que retroalimentava a ficção colonial, o que chamo de lavagem cerebral do Estado. Eu cresci aprendendo com os mesmos livros escolares que alunos do Sul ou Nordeste acessavam. Fui convencido que Pedro Alvares Cabral descobriu o Brasil e os índios precisavam sem integrados à sociedade para que virassem de cidadãos reais.

Coisas da construção de um país de massa homogênea e segregada, onde cabe o discurso das “três raças que construíram o Brasil”, onde não cabe as identidades próprias destas “raças”.

O trabalho “Ficções Coloniais” bebe basicamente na metáfora e no sarcasmo. Essa tem sido minha resposta ao mundo da arte, da Academia e ao Estado. Ser cínico, irônico, malicioso e cheio de mágoa transmuta tons de humor em verdades que são duras demais pra dizer seriamente sem perder a compostura.

Indígena significa pelo dicionário, aquele que é originário do lugar, o nativo; seu antônimo é alienígena, aquele que é estranho ao lugar, forasteiro. Trazer para o Sci-Fi foi o modo de desumanizar o invasor e ao mesmo tempo disparar no citadino algo que fosse um gatilho emocional. Todos nós crescemos com dois criadores de ficções: a educação ocidental e a televisão. Transformar o descobrimento do Brasil em invasão alienígena, foi o modo que encontrei de contar a construção colonial deste país.

Noutro tempo fiz uma série de trabalhos chamados “ídolos profanados” uma espécie de iconoclastia quando percebi que as pessoas que eu admirava na juventude não eram da minha comunidade ou povo indígena, e sim atores e atrizes de Hollywood. Pra mim pegar este meu lado-branco e rasurar, também é um modo de reafirmar quem eu sou: indígena e amazônida. Foi o momento em que me percebi como metade Baniwa e metade criação colonial.

Eu não vou deixar de amar o cinema ou a fotografia. Mas, posso fazer esse trabalho iconoclasta com esta parte minha. E como roteirista da minha própria ficção juntar os dois mundos, como Makunaima ou Ajuricaba, que viveram também nos dois mundos.

Já que não posso apagar do cérebro Koch-Grünberg, George Lucas, Spielberg etc. Posso pegar essa bagagem da cultura pop e indigenizar por meio de metáforas e a partir daí fazer quase remakes do Lugar de onde eu olho as coisas. É o roubo do roubo, o pastiche, a sátira onde o “descobridor do Brasil” é o cara que escraviza o King Kong dentro de sua própria ilha e depois leva pra exibição como aberração do “Novo Mundo”, como fizeram com os Tupinambás em 1562.

Ao mesmo tempo que jogo com a provocação ao mundo, me coloco neste lugar do indígena crescido com a televisão como co-educadora. É uma forma de dizer: reconheço a minha parte colonizada e tudo bem, este é o indígena do Séc XXI. E que sorte que ainda consigo contar histórias do meu povo ao mesmo tempo que posso contar como é viver no mundo fora da aldeia.

 

Ficções Coloniais, de Denilson Baniwa
Ficções Coloniais, de Denilson Baniwa

 

 

 

 

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