Entretempos https://entretempos.blogfolha.uol.com.br Artes visuais diluídas em diferentes suportes, no Brasil e pelo mundo Sun, 28 Nov 2021 14:42:12 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O corpo feminino e seu direito – Ensaio Palavra-Imagem com Rachid Al-Daif e Mireille Honein https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/11/28/o-corpo-feminino-e-seu-direito-ensaio-palavra-imagem-com-rachid-al-daif-e-mireille-honein/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/11/28/o-corpo-feminino-e-seu-direito-ensaio-palavra-imagem-com-rachid-al-daif-e-mireille-honein/#respond Sun, 28 Nov 2021 14:40:15 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/e96bcfad-d9c9-4ed1-b352-86d093e6da3f-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22597 O Ensaio desta semana busca pontos de contato entre a obra de dois artistas libaneses: a ativista Mireille Honein e o escritor Rachid Al-Daif, autor do romance “E quem é Meryl Streep?” (Editora Tabla, 2021, trad. Felipe Benjamin Francisco). O livro toca em tabus da sociedade libanesa ao lançar luz sobre a intimidade de um jovem casal na Beirute dos anos 1990. A narrativa traz cenas de sexo explícito que instituem a cama como o campo de batalha onde homem e mulher disputam o controle sobre o corpo feminino. O romance – que já foi proibido diversos países árabes – é uma crítica à hipocrisia da sociedade patriarcal e uma defesa da emancipação feminina, abordando entre outros temas o sexo antes do casamento, o divórcio, a virgindade e o machismo. Em meados de 2017,  ativistas apoiados pela “Abaad – Uma associação civil independente que visa alcançar a igualdade de gênero no Oriente Médio e Norte da África – conseguiram fazer com que o parlamento libanês chegasse a  um acordo sobre um projeto de lei para abolir o polêmico artigo 522 do código penal, que permite que estupradores escapem da prisão casando-se com suas vítimas. Numa tentativa de pressionar o parlamento a abolir totalmente esta lei, Mireille Honein criou uma instalação com  31 vestidos de papel balançando entre as palmeiras em Ain El Mraysseh,  para apoiar a ONG e escancarar a injustiça.  Ainda há muito o que acontecer para valorizar a mulher. Mas cada passo é gigante. O Oriente Médio foi, por muitas vezes, retratado como uma mulher indefesa e em perigo a ser salva pelos homens brancos ocidentais. Faz tempo que as mulheres orientais dão provas que são donas de seus próprios destinos e protagonistas das suas histórias. Se houver uma reconstrução possível para o Líbano, essa reconstrução é feminina.

Sinopse do livro (site da editora)

E quem é Meryl Streep?” é um romance desafiador do polêmico autor libanês, Rachid Al-Daif. Como em outros livros seus, ele batiza o protagonista e narrador do romance com seu próprio nome. Rachid, o personagem, é um libanês recém-casado que se vê ameaçado pela ideia da emancipação feminina.

Ao se dar conta de que sua esposa usa a presença da TV na casa dos pais como desculpa para ficar longe de casa, Rachid compra uma televisão na esperança de atraí-la, mas à medida que o laço frágil que une o casal se desintegra, a televisão passa a ocupar um lugar cada vez maior na sua vida.

Numa cena crucial, ele se vê sozinho assistindo ao filme “Kramer versus Kramer”. Na ausência de legendas, Rachid se esforça para entender o que se passa no filme e projeta o comportamento de sua esposa na personagem vivida por Meryl Streep, que ao mesmo tempo que o cativa, também o apavora por representar um esforço de libertação das mulheres que ele considera inaceitável.

Rachid Al-Daif constrói um personagem reacionário, por vezes repulsivo, e não tem medo de mergulhar na mente desse indivíduo e descrever nua e cruamente sua mentalidade, inclusive sua vida sexual, real ou imaginada. O livro foi considerado pornográfico no mundo árabe e obteve um enorme sucesso tanto no idioma original, como em outros idiomas.

Trechos do Livro “E quem é Meryl Streep?”

No final das contas, ela concordou em definir a data do casamento, sem que ninguém a obrigasse. Fui franco ao extremo com ela e lhe pedi que, se não quisesse mais se casar, anunciasse isso para seus pais, minha mãe, minha tia e os parentes. Então ela respondeu de forma enfática que queria se casar, sim. No entanto, às vezes, quando saíamos juntos, ela me pedia para não ter pressa com esse assunto. Era estranho como ela se sentia forte quando estávamos só nós dois. Ela me dominava quando estava sozinha comigo, por isso eu sempre procurava fazer com que declarasse seu compromisso com algo importante diante de todos os parentes e, sobretudo, na presença da mãe, para que esta dificultasse as coisas se ela se arrependesse mais tarde. Havia momentos em que eu a constrangia, com o objetivo de fazê-la manifestar publicamente uma opinião que ela disfarçava, como acerca de ter um filho logo, já que seu desejo era adiar a gravidez para “a hora certa”. Assim, eu iniciava de propósito esse tipo de conversa diante de todos, para que, caso ela expressasse sua opinião, as pessoas a repreendessem! (pp.96-97).

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Há coisas que permanecem imutáveis por mais que o ser humano progrida e por mais que os tempos e o lugar mudem; contudo, o importante é que saibamos contemplá-las bem e não as tomemos pelas aparências. O respeito à mulher é um dever indiscutível, assim como o fato de o marido desfrutar da esposa e a esposa do marido também é algo indiscutível, mas dentro dos limites estabelecidos que só enxerga bem aquele que quer ver. Se o homem e a mulher estiverem em harmonia, é um direito dos dois desfrutar do que quiserem, onde quiserem, como quiserem etc.; mesmo assim o olho deve permanecer atento aos limites estabelecidos — e ainda que esses limites não sejam respeitados, pelo menos o ser humano deve saber o que aconteceu com eles, o quanto se afastou e o quanto se aproximou deles. Por mais que os novos tempos mudem e os costumes e as tradições ocupem outro lugar, o homem permanecerá homem e a mu- lher, mulher. A mulher deve sempre, em toda circunstância, responder ao marido quando ele a chamar, e deve a ele obedecer nos momentos decisivos, mesmo que essa obediência a sobrecarregue psicologicamente, pois essa sobrecarga psicológica é recompensada depressa, assim que a mulher vê que seu marido retoma a calma, a compaixão e a castidade. Ele necessariamente as retomará. O fato de ela pular sobre ele como uma louca para se vingar, derramando na boca dele o que ele depositou na sua boca — à força e com ódio — é realmente inaceitável. (pp. 180 e 181).

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As cenas continuavam passando diante de mim, subjugando-me, até que meu desejo foi aumentando de um modo como nunca acontecera. Certa vez minha esposa me disse que filme pornô é como fertilizante químico: acelera o crescimento do fruto, aumenta seu tamanho ao máximo, porém faz perder o mais importante, o gosto e o sabor! Onde ela teria aprendido aquilo? Sempre que me via espantado com algo que havia dito, ou quando conseguia ler a desconfiança e a dúvida nos meus olhos, minha esposa dizia que lera aquilo numa revista em inglês. (p.65).

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Puseram certos tipos de propaganda em vias e lugares públicos, chocantes para nossos costumes e tradições. Nós somos uma sociedade conservadora. Para nós, a honra ainda é o valor mais elevado. Todo dia lemos nos nossos jornais alguma notícia sobre o assassinato de uma jovem para lavar a honra, ou seja, por causa do seu relacionamento com um homem. O irmão mais novo a mata, quando não o mais velho, o pai também pode matá-la, ou mesmo o filho, caso tenha um. Ontem mesmo um irmão matou a irmã porque esta fugiu para se casar às escondidas com o homem que amava, indo contra a vontade do irmão de casá-la com outro homem. Depois de tudo isso, ainda mostram os métodos de prevenção da Aids, liderados pelo uso do preservativo, em anúncios por todos os cantos das avenidas principais. É como se tivessem decidido desatar o sexo dos laços do matrimônio. Não sou puritano, porém estou do lado do pudor e da vergonha, uma vez que esse pessoal está agindo como se o espaço público fosse algo diferente do interior dos lares. Veiculam na televisão propagandas de incentivo ao uso do “preserva- tivo” (é assim que se chama!) para quando o parceiro estiver inseguro quanto à parceira. Eu não faço ideia de qual é a diferença entre a tela da televisão e o quarto do casal (p.112).

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Para minha mãe, uma situação imprópria era um homem pôr a mão sobre o ombro da mulher no meio da rua, ou então entrelaçar sua mão na dela. “Ninguém mais teme a Deus!”, costumava dizer. Ela sentia falta de ver meninos e meninas juntos durante o período em que pensava que eu era homossexual e, ainda por cima, um homossexual afeminado, isto é, não era o macho ativo, e sim a fêmea passiva. Depois, sua imaginação a fez lembrar de que, quando eu jogava futebol com meus amigos, só gostava de ser o goleiro! Minha tia deu muita risada quando minha mãe lhe contou isso, porque não entendeu exatamente o que ela queria dizer. Só muito mais tarde é que ela foi entender. Na cabeça da minha mãe, o que iguala o goleiro à fêmea é que os dois são o alvo, nos dois entra alguma coisa e os dois ficam parados à espera de que os outros corram atrás deles! (p.87)

 

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Chegando aos poucos – Ensaio Palavra-Imagem com Iman Humaydan https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/11/15/chegando-aos-poucos-ensaio-palavra-imagem-com-iman-humaydan/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/11/15/chegando-aos-poucos-ensaio-palavra-imagem-com-iman-humaydan/#respond Mon, 15 Nov 2021 12:53:11 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/Captura-de-Tela-2021-11-15-às-09.29.54-320x213.png https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22591 Seguindo com nosso especial sobre o Oriente Médio, temos a importante romancista libanesa Iman Humaydan na palavra e na imagem. Diferente dos outros dois Ensaios, este não traz trechos de seu livro, mas um texto e um vídeo com os quais participa de uma exposição de arte em Basel, Suíça, que segue até 21 de novembro. Ela, que certa vez descreveu Beirute como “a cidade que dança sobre suas feridas”, além de ser a organizadora da antologia “Beirute Noir” publicada pela Tabla, é também professora de escrita criativa na Universidade de Paris 8 Vincennes-Saint-Denis, é Fundadora e presidente da Associação PEN no Líbano. “Beirute Noir” reúne 15 contos de 14 autores libaneses e um palestino nascido e criado em Beirute, formando um mosaico de perspectivas muito diferentes sobre a mesma cidade. O rótulo noir encontra uma diversidade de formas, mas há algo em comum entre essas histórias: todas evocam a guerra civil (1975-1990). Esta coleção de contos é parte de um registro vibrante e vivo de Beirute. Durante a pandemia de Covid-19, o trabalho de Humaydan foi um pouco além da escrita, criando performances audiovisuais,  “talvez como uma boa consequência do isolamento”, reflete ela. Enquanto Beirute segue enfrentando desafios cada vez mais complexos, seu povo – e sobretudo seus artistas – continuam a criar inspirados nesta que é uma das capitais culturais do mundo. Beirute será reconstruída pelo seu povo. E os arquitetos desta reconstrução serão seus artistas.

Chegando aos poucos: fragmentos da jornada de uma vida

Iman Humaydan

I

Chegar aos poucos é como um pássaro se aproximando da minha janela de manhã cedo. É como relembrar uma memória sutil, a lembrança de alguém querido que partiu – podendo sentir a presença dele ou dela –, ou ainda a lembrança de um lugar onde vivemos e deixamos para outra pessoa. É um sentimento de pertencer a um momento, a um lugar, a uma memória doce ou triste. Poderia ser chegar de uma experiência de dor… dor nua.

Mudar de casa é uma forma de domar a dor. Isso ajuda com que a dor e eu consigamos viver juntos no amanhã.

A própria vida é uma história. Ela vem em diferentes ritmos, lenta, rápida; às vezes passa e ninguém dá a mínima. Ela vem chegando pela história de alguém, fragmentos de uma história, um lugar, um momento, um sentimento, um vislumbre. Com cada fragmento de história se dá um passo adiante.

II

Nós chegamos de várias partes do mundo para a nossa reunião familiar na Califórnia. Irmãos, irmãs, esposas, maridos, sobrinhas, sobrinhos e netos.

Em nossa reunião familiar, contamos histórias da infância. Essa era a maneira mais forte de nos curarmos da separação.

Nós tentamos transmitir essas memórias aos nossos filhos. Transmitir nossas histórias foi difícil, mas nunca desistimos. Nos abrigar nas memórias nos unia, e contar histórias ainda é um presente. É dar uma memória embrulhada em amor e compaixão mesmo que possa evocar dor.

É a lembrança de nossa mãe que nos deixou aos poucos, ao longo dos anos de doença. Mesmo lenta, a separação continua uma experiência dramática. Separar-se dela, cuja a vida foi marcada pelo silêncio.

Por anos, eu herdei esse seu silêncio, até que o feitiço foi quebrado pela escrita.

Todos nós partimos, um depois do outro…

III

Nós estamos espalhados. Nossas jornadas estão espalhadas. O esquecimento nos acompanha. Mudar de endereço e esquecer são duas coisas conectadas.

Eu tinha dois anos de idade quando um de meus vários irmãos se mudou para os Estados Unidos. Ele voltou ao Líbano para uma visita no verão de 1969. Minha mãe, que estava então muito doente, não reconheceu o filho. Ela cobriu sua cabeça com um longo tecido branco e fino como fazem as mulheres drusas quando um homem estranho entra em casa. Ele disse a ela com os braços abertos “mama, sou eu Anees, seu filho”. Minha mãe o abraçou e chorou. Ele levou tanto tempo para “voltar”.

Ir embora e esquecer os lugares de dor foi sua maneira de curar-se.

Assim como para mim, lembrar e escrever a dor foi minha maneira de curar-me.

IV

Anos se passaram antes que eu aprendesse a ser mãe. Eu aprendi tarde, depois de ter três filhos. A maternidade me alcançou depois de uma jornada longa e difícil.

Eu tinha 18 meses quando minha mãe foi internada num hospital psiquiátrico. Ela teve um colapso nervoso. Começou quando alguém disse a ela que um dos seus filhos havia sido morto por um policial. Era maio de 1958, logo após o Líbano ser tomado por distúrbios sócio-políticos.

Durante a doença de minha mãe, eu e meu irmão – que era dois anos mais velho – ficamos aos cuidados da minha irmã, que era casada e tinha um bebê alguns meses mais novo que eu. Ela cuidou de nós.

A doença de minha mãe foi o começo de uma vida triste e dolorosa pela qual teve que passar, assim como seus filhos.

Isso afetou minha vida e fez com que tomasse um rumo diferente. Me privou de viver uma relação de mãe e filha. Me privou de testemunhar e aprender a maternidade a tempo. Mas nada pode ser a tempo. Eu estou numa jornada perpétua de aprendizagem, conhecimento e descoberta. Uma espécie de eterna discípula da vida.

V

A morte de minha mãe marcou uma partida significativa. Minha partida de ser uma criança para ser alguém que aprendeu a crescer por si mesma, alguém que aprendeu a ser mulher sozinha e que, mais tarde, na vida adulta, aprendeu por si mesma a ser mãe. Uma partida contínua com infinitas chegadas.

A memória que tenho de minha mãe é vaga. A mais forte foi o dia de seu funeral. Eles a trouxeram para casa num caixão. Ela parecia estar dormindo deitada, vestida com um longo vestido de seda branco. Ela morreu num hospital no último dia de 1970. Foi a primeira vez que eu encarei a morte. Era tão cedo para me tornar órfã.

Ela teve 14 crianças saudáveis, um aborto espontâneo e uma criança morta. Ela morreu aos 54 anos. É possível que ela nunca tenha visto sua menstruação.

Dizem que meninas aprendem muito cedo a ser mães. Não foi meu caso.

Eu aprendi que a morte precoce de uma mãe é algo cruel.

VI

Nos anos 50, dois de meus irmãos mais velhos viajaram para trabalhar no Kuwait. Depois uma das minhas irmãs partiu, depois outra, e outra e assim por diante. Algumas viajaram para os Estados Unidos para estudar. Eles partiram como os passarinhos que deixam o ninho, um depois do outro, como um cacho de uvas se despedaçando. Eu, que deixei o Líbano a passos lentos, me descobri escolhendo a Europa como segundo lar.

Ou foi a Europa que me escolheu.

Eu não lembro quando foi a primeira vez que meus irmãos foram embora de casa. Eu era muito jovem para lembrar. Eles me contam até hoje histórias de como eu me escondia em suas malas para ir com eles. Era minha avidez por sair, por me separar do lugar onde tinha nascido. Partir e chegar são parte de uma jornada, uma parte de mim, da minha identidade. Com a separação vem a chegada. É ir adotando um lugar novo atrás do outro. Todos são salas de uma grande casa. Para mim, Basileia é uma dessas salas.

 

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Esquecer, não lembrar e reimaginar – Ensaio Palavra-Imagem com Hoda Barakat, Joana Hadjithomas e Khalil Joreige https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/11/07/esquecer-nao-lembrar-e-reimaginar-ensaio-palavra-imagem-com-hoda-barakat-joana-hadjithomas-e-khalil-joreige/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/11/07/esquecer-nao-lembrar-e-reimaginar-ensaio-palavra-imagem-com-hoda-barakat-joana-hadjithomas-e-khalil-joreige/#respond Sun, 07 Nov 2021 10:22:31 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/Captura-de-Tela-2021-11-03-às-14.20.47-320x213.png https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22577 Neste Ensaio, seguindo o especial Oriente Médio, proponho o diálogo entre as palavras da escritora libanesa Hoda Barakat, com a dupla Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (ambos nascidos em Beirute em 1969). Cartas de 6 personagens do livro “Correio Noturno”, de Barakat conversam com as fotografias do projeto  “Wonder Beirut” da dupla. Cartas que nunca chegam ao seu destino, nem sequer são enviadas… mas se conectam e se costuram umas às outras na formação deste impactante romance.

#21 Beaches in Beirut

Notas sobre “Correio Noturno”, de Hoda Barakat

Por Geraldo Adriano Campos (Coordenador do Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Federal de Sergipe)

Hoda Barakat é uma escritora libanesa, nascida em Beirute, em 1952. Desde o final da década de 1980 vive em Paris, mas mantém o árabe como a língua com a qual produz suas obras. Além de romances, publicou peças, um livro de contos e um livro de memórias. Seu livro “Correio Noturno”, lançado em 2017 e premiado com o “International Prize for Arabic Fiction”, foi publicado no Brasil em 2020 pela Editora Tabla, com tradução da professora Safa Jubran.

O livro é composto de seis cartas, cujos autores e autoras estão, cada um à sua maneira, buscando diferentes tipos de refúgio. O entrelaçamento entre as cartas põe em evidência subjetividades ativadas no contato com fragmentos da memória alheia. Por isso, ainda que as missivas dos personagens de Barakat nunca atinjam seus reais destinatários, produzem naqueles que as encontram o desejo de escrever, criando uma continuidade narrativa pela costura de traumas individuais e coletivos de migrantes e refugiados do mundo árabe contemporâneo.

Entre diversos outros aspectos, a obra nos convoca a refletir sobre o limiar do que um corpo é capaz de suportar. Não é, afinal, um livro sobre lugares, mas sobre corpos e experiências.

A indeterminação de países de origem e destino dos personagens não é, de tal modo, aleatória. Sabemos apenas que os narradores são árabes, o que parece ser suficiente para situá-los na atmosfera de deslocamento que a autora nos oferece. As forças políticas, econômicas, sociais que impulsionam os deslocamentos de imigrantes e refugiados na região estão presentes no livro, mas não como elemento literário central.

Os personagens de “Correio Noturno” transitam por fétidos quartos de hotel, porões de tortura, bordéis, campos de refugiados, aeroportos. São pessoas que vivem nas ruas ou em condições de solidão e vulnerabilidade em países estrangeiros. Há sempre uma espera que se aproxima com a noite, seja a expectativa de um encontro ou de uma possibilidade qualquer de redenção, que não se realiza.

O tom confessional das cartas é atravessado por torturas realizadas pelo Estado, abandono, estupros, assassinatos, guerra, homofobia. Em cada descrição, é nítido que a experiência do corpo estrangeiro é produzida em suas articulações de gênero, como já recordara a historiadora Margot Badran em seu texto “Foreign Bodies: Engendering Them and Us” (2003). Os relatos sobrepõem diferentes formas de violência relacionadas a gênero e sexualidade, que se expressam nos vínculos estabelecidos com sistemas patriarcais e na proliferação de corpos violados. Assim, lidas em conjunto, as cartas compõem um mosaico de experiências de corpos que se deslocam entre fronteiras, físicas e simbólicas.

Diante da possibilidade de narrar essas experiências, chama a atenção o fato de que as cartas são elaboradas em “não-lugares” (para usar um termo do antropólogo Marc Augé) – o hotel, o aeroporto, o campo de refugiados – locais pensados como pontos de passagem e não de permanência, logo, incapazes de produzir identidades.

As narrativas do livro não comportam, portanto, apenas histórias de vidas dilaceradas. É, sobretudo, a relação com o espaço que está fraturada (os dramas dos personagens árabes imigrantes indocumentados em países europeus são exemplos disso).

Convém lembrar também a importância do gênero epistolar para os estudos migratórios e para a produção artística relativa ao tema, dada a característica da carta como documento privado que sugere uma aproximação particular entre a esfera íntima do cotidiano e a História.

O ato de falar a partir dos fragmentos de memórias alheias (mesmo que seja de personagens ficcionais), como esforço de produção de sentido histórico face a grandes tragédias, é um tema familiar à produção estética contemporânea do Líbano. As interrupções e ruínas que fizeram emergir os mecanismos políticos de produção da amnésia social no Líbano após a Guerra Civil são parte importante da trajetória da geração que desenvolve seus trabalhos a partir dos anos 1990. São artistas-pensadores cuja reflexão é marcada por uma ênfase na problemática relação entre arquivos, imagens, desaparecimento e memória coletiva. Na lista de obras de artistas libaneses que se organizam ao redor da potência subversiva de conectar-se com as memórias alheias podemos pensar em “Wonder Beirut” (1997-2006) de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (ambos nascidos em Beirute em 1969), no projeto do “Atlas Group” (1989-2004) de Walid Raad (nascido em Chbanieh em 1967) e no filme “Yamo” (2011), de Rami Nihawi (nascido em Beirute em 1982), entre muitos outros exemplos.

Por um lado, o livro de Hoda Barakat nos convida a observar como a narração do trauma pela escrita pode se tornar um refúgio para personagens deslocados e marginais em busca de alguma redenção possível. Por outro lado, faz-nos pensar no belíssimo ensaio “Atlas” (2012), de Antonio Tabucchi, quando o escritor nos recorda que as representações espaciais sempre podem mudar, assim como as fronteiras entre países. As únicas fronteiras que não mudam, diz ele, são “as do corpo humano e o que este sente quando são violadas”. Por isso, tomo emprestado o fragmento do poema “Torturas” de Wislawa Szymborska, que Tabucchi usa para concluir seu ensaio.

“Nada mudou./O corpo é doloroso,/ tem que comer e respirar, e dormir,/tem uma pele fina e, logo abaixo, sangue;/ tem uma considerável quantidade de dentes e unhas,/seus ossos são frágeis, suas articulações maleáveis./ Nas torturas, se descobre tudo isso.”

#10 Sea Shore
#6 Rivoli Square

Trechos das cartas interpretados em árabe por Safa Jubran com tradução em português:

Carta 1 – Um imigrante ilegal escreve para sua amante em um pequeno apartamento.

“Aquele anoitecer ficou na minha mente, não importa que horas eram do dia. Era igual ao anoitecer quando o sol desaparece no horizonte, quando todas as criancinhas choram, todos os bons românticos ficam melancólicos, de Ihsán Abdel-Quddus a Rilke. Uma tristeza inexplicável que envolve as delicadas e belas criaturas.”

https://www.youtube.com/shorts/M_gkPLyT0yM

Carta 2 – Uma mulher madura redige sua carta enquanto espera um antigo amor em um quarto de hotel.

“Não estou aqui, neste quarto, para voltar para trás nem para vê-lo ou ver com você como eu era jovem ou o quanto a primavera era bonita e intensa no país. O país que já era, que caiu e quebrou como um grande vaso de vidro. Seria trágico, pura tristeza e grande amargura.”

https://www.youtube.com/shorts/zKtmueoXZqQ

Carta 3 –  Um ex-torturador em fuga escreve para a mãe.

“Esse é também um homem sacrificado pelo destino, a quem nem Deus nem os homens perdoarão.” “Eu… acho que ainda vou pensar sobre essa carta, se envio para você ou entrego em mãos, ou se devo destruir tudo o que escrevi porque contém confissões sinceras que podem me levar à forca ou à prisão perpétua. Amanhã decido.”

https://www.youtube.com/shorts/rBvIiY3-CbU

Carta 4 –  Uma mulher escreve ao irmão para falar sobre a morte da mãe.
“Eu vou para a cozinha, preparo uma xícara de chá, paro na janela e olho para a noite, uma noite de estranha atmosfera, sem pertencer a nenhum lugar. Uma noite densa de alcatrão viscoso que gruda nas pálpebras e nas mãos. Esta não é minha vida.”
Carta 5 –  Um jovem escreve ao pai doente com quem tem uma relação complicada.
“Ninguém pode se colocar no lugar de ninguém, quero dizer, completamente no lugar do outro, até porque há um detalhe importante: meu corpo, reflexo da minha alma profunda, é diferente do seu corpo, e isso, você considera uma traição a você.”
#15 Rivoli Square
#13
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A catástrofe se move pelas ondas – Ensaio Palavra-Imagem com Mahmud Darwich e Abdulrahman Katanani https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/31/a-catastrofe-se-move-pela-ondas-ensaio-palavra-imagem-com-mahmud-darwich-e-abdulrahman-katanani/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/31/a-catastrofe-se-move-pela-ondas-ensaio-palavra-imagem-com-mahmud-darwich-e-abdulrahman-katanani/#respond Sun, 31 Oct 2021 10:00:34 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/selections-arts-katanani-the-wave-feature-1170x600-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22564 Neste mês de novembro, o Entretempos se dedicará ao Oriente Médio. Os Ensaios serão tomados pelas literaturas do mundo árabe, a partir de escritores traduzidos e publicados pela incrível Editora Tabla, da qual sou fã. Ela tem como foco a publicação de livros referentes às culturas de Oriente Médio e Norte da África e seus ecos no Ocidente. Com o objetivo de ressaltar os pontos de contato, percorrendo e construindo pontes culturais, a Tabla deseja apresentar e representar essas culturas de forma autêntica e longe de estereótipos. Numa parceria alinhada, será um mês com obras de arte palestinas, libanesas e sírias permeadas pelas palavras de tais territórios. Que alegria anunciar esse encontro!

Junto com a Tabla, vem o Geraldo Adriano Campos, Coordenador do Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Federal de Sergipe, que apresentará todos os domingos um dos autores escolhidos, além de me dar uma mão essencial para navegar entre os nomes da arte contemporânea daquela região. É um longo caminho a percorrer, mas também é um convite para mergulhar nesse universo ainda mal explorado em terras brasileiras que tanto tem de Oriente Médio, ainda que pouco conhecido.

A CATÁSTROFE SE MOVE PELAS ONDAS

Por Geraldo Adriano Campos

“O matador mata, o combatente combate e o pássaro gorjeia. Quanto a mim, encerro a busca por linguagem figurativa. Paro completamente minha procura por interpretação, pois a essência da guerra é degradar os símbolos e levar as relações humanas, o espaço, o tempo e os elementos de volta a um estado primordial”.

Com essas palavras, o poeta palestino Mahmud Darwich expõe as tensões do escritor nos escombros da guerra. Além da devastação material, dos corpos despedaçados, da cidade em ruínas, Darwich nos lembra que a guerra degrada os símbolos. O que resta ao poeta? O que pode a linguagem, face à eloquência das bombas?

“Memória para o esquecimento” apareceu inicialmente como texto em 1986 e acaba de ser lançado no Brasil pela Editora Tabla, com tradução do árabe ao português da Profa. Safa Jubran. É o relato dos acontecimentos de um dia em agosto de 1982, durante o cerco israelense a Beirute. Objetivava-se, com o forte bombardeio, impor mais um capítulo de exílio aos palestinos, cujas lideranças encontravam-se no Líbano naquele momento. Um exílio que não cessa de ser renovado desde a limpeza étnica de 1948 e a expulsão de cerca de 800.000 palestinos de suas terras, na Nakba (catástrofe).

Aos herdeiros do desterro a experiência do estado de sítio não é estranha.

Por isso, no mergulho do poeta no estado primordial em busca de uma linguagem, adquirem força gestos triviais como a preparação de um café, convidando-nos a refletir sobre a peculiaridade da produção estética palestina.

Em uma entrevista ao poeta libanês Abbas Beydoun, em 1995, Darwich dizia que os poetas palestinos se encontravam em um “lugar híbrido, em um ponto médio entre o histórico e o mítico”. Seu lirismo transitaria, assim, entre “o alcance da voz de um mito consumado, definitivo e consagrado” e a “estética do cotidiano”. Na obra de Darwich, a ressonância épica é transposta à esfera do prosaico, como possibilidade de afirmação da vida diante da iminência do fim.

Vivenciar o exílio imposto por Israel desde 1948 é também a experiência do “cerco dentro do cerco”, condição compartilhada pelos palestinos que habitam a paradoxal temporalidade do provisório-permanente nos campos de refugiados no Líbano, como o artista Abdulrahman Katanani, nascido em Sabra, após seus avós terem sido expulsos pelos sionistas da Palestina. Katanani nasceu nove meses após o massacre de setembro de 1982, mesmo ano em que transcorrem os acontecimentos descritos por Darwich em “Memória para o esquecimento”. No massacre, os campos de Sabra e Chatila também estavam cercados pelos israelenses, o que permitiu que as milícias falangistas libanesas perpetrassem uma das maiores atrocidades do século XX. “Para que as pessoas não acordassem com o som dos tiros, parte do massacre foi realizado com machadinhas, inclusive de crianças e mulheres grávidas”, contava-me um sobrevivente, em uma conversa em Chatila, em 2016.

Uma onda do mar. Eu a reconheço e a sigo com apreensão. Vejo-a se cansar antes de alcançar Haifa ou Alandalus. Ela se cansa e então descansa nas margens da ilha de Chipre. Uma onda do mar. Ela não será eu. E eu, eu não serei uma onda do mar.”

O narrador do livro “Memória para o esquecimento” nos alerta nesse trecho que a catástrofe se espalha com o mar, espaço simbólico em que se fundem esperança e ameaça, atingindo outros portos e cruzando-se com memórias alheias. Se no livro de Darwich “o mar se transforma em terra firme e se aproxima”, na escultura “Onda” (2016) de Katanani, o mar se materializa em arame farpado. Uma imensa onda prestes a engolir-nos. Uma onda coesa a recostar sua intimidante parede, dobrando-se em uma espuma irregular de pontas de arame farpado. Suspensa no momento em que antecede a quebra, a iminência do acontecimento é reforçada pela antecipação da ferida anunciada pelo material que rasga a carne. Com seu irmão, Katanani produziu em Sabra uma máquina de tecer grandes chapas de arame farpado e desenvolveu técnicas para trabalhar com esse material. Não se trata de matéria qualquer. Se a ruína é expressão material emblemática da modernidade, o arame farpado também o é.

O filme “O mar à frente” (2021), do jovem diretor libanês Ely Dagher (atualmente em exibição na Mostra Internacional de Cinema) também oferece a imagem do mar como ameaça. A obra conta a história de Jana, uma libanesa que retorna a Beirute, após um período na Europa. Em uma atmosfera profundamente melancólica, nos deparamos com uma geração que não consegue enxergar possibilidades no trágico contexto do Líbano contemporâneo. Na ausência de horizontes, persiste a espera pela grande onda, a derradeira. Jana procura o mar da varanda do apartamento de seus pais, como quem busca qualquer resquício de um futuro viável. “A grande onda está chegando”, diz Adam, seu namorado, em certo momento. Os personagens falam sobre a provável vinda de um tsunami, que nunca chega.

O mar de Darwich, de Katanani e de Dagher é o da iminência. Do momento definitivo, que tudo engolirá. Há também uma esperança, que exigirá que nos tornemos os donos do tempo, como sugere Darwich: “Haverá tempo para enterrarmos os mortos. Haverá tempo para as armas. E haverá tempo para que o tempo passe conforme desejamos, para que este heroísmo possa continuar, porque, agora, nós somos os donos do tempo…” .

O poeta palestino nos oferece, de tal modo, uma metáfora potente para nosso mundo, que extrapola as questões singulares do Oriente Médio. Em Darwich encontramos uma força que pode nos salvar da onda derradeira.

LIVRO: DA PRESENÇA DA AUSÊNCIA, tradução de Marco Calil

saudade de começos, do modo como a chave fechava a porta. da visão que vê seus objetivos, seus fins. escolher o lugar e a música da noite com artificiosa naturalidade. isto é o exercício passional de medir o pulso do Ser. disto, isto é, desta saudade, trata-se de recapitular o mais belo capítulo do conto: o primeiro, improvisado com destreza de prelúdios. assim nasceu a saudade de todo e cada acidente belo, não de chagas. que saudade não é memória. Saudade é seletiva como um bom jardineiro; ela é repetição de memórias quando suas ervas daninhas fossem removidas. saudade tem efeitos colaterais: viciada em olhar para trás, reservada por não ter deferências para com o possível, mortalmente orientada por transubstanciar presente em passado, mesmo com o amor: vem para fazer da noite um passado comum — diz o doente de saudade. virei contigo para fazermos um amanhã comum — diz a ferida de amor. ela não ama o passado e quer esquecer o fim da guerra. Ele tem medo do amanhã porque a guerra não acabou, porque não quer ficar mais velho. saudade é uma cicatriz no coração, uma digital da terra no corpo. mas não se sente saudade de feridas, não se sente saudade de dores e de pesadelos, senão do que já era antes, de um tempo sem dores senão os prazeres básicos que derretem o tempo, como cubos de açúcar em xícaras de chá, saudade de um tempo de conceitos paradisíacos. ela é um mal sazonal, não contagioso nem letal, mesmo se atingir o corpo em grau de epidemia. saudade é o chamado flauta a flauta, para reorientar os cascos dos cavalos da montaria. ela é o convite para passar a noite com solitários, uma desculpa para não estar a par do passo dos passageiros nos trens, sabidos de seus endereços de destino. é ela que recolhe, para os forasteiros sonharem, a matéria translúcida de lindos nadas, e ainda lhes torra o café do despertar. e ela quase nunca chega cedo. e ela quase nunca interrompe conversas pedestres com taxistas, quase nunca faz comentários em conferências, nem em primeiros encontros entre homens e mulheres… ela é a visita da noite, que chega quando procuras teus traços no que te circunda sem que consigas encontrá-los, e quando o pardal pousa na varanda, isto parece ser o anúncio de uma terra que não amavas tanto quanto a amas agora que ela te habita. ela dava em árvores, pedras, feita remetentes de almas, ideias, brasa na língua. era ar, terra, água, feita então poema. saudade é gemer pelos direitos dos incapazes de reivindicar a força do direito perante a força de expressão… gemer de casas enterradas em assentamentos que o ausente relegou ao ausente, que o presente relegou ao ausente, como a gota primeira do exílio e dos campos de refugiados. saudade é o som de seda que sobe da amoreira, em gemidos mútuos, para quem dela sente saudade. é a convergência do que se tem ciência e do que nada se sabe(rá)… é o protesto do tempo perdido pelo sadismo do presente. saudade é dor que não sente saudade da dor. é dor que o ar fresco causa vindo de morros distantes, dor da busca da alegria perdida. mas é uma dor saudável, pois ela nos lembra que sofremos de esperança… por paixões!

LIVRO: ONZE ASTROS, tradução de Michel Sleiman

 … Rita vai partir em breve, vai deixar sua sombra

como cela branca. Onde nos encontraremos?,

suas mãos perguntaram, olhei para longe,

o mar atrás da porta, o deserto atrás do mar,

beije-me nos lábios, ela disse, e eu disse: Rita, saio de novo enquanto

tenho uva e lembrança e as estações me deixam

murmurando entre o gesto e a palavra?

O que você diz?

Nada, Rita. Imito o cavaleiro de uma canção

que fala da maldição do amor retido nos espelhos…

Que fala de mim?

E de dois sonhos num travesseiro, desentendem-se, fogem, um

puxa a faca, o outro dá instruções à flauta.

Não sei o que significa, ela diz.

Nem eu, minha língua são farpas

como o sentido a que falta mulher. E cavalos suicidam-se

no final do campo…

LIVRO: MEMÓRIA PARA O ESQUECIMENTO, tradução de Safa Jubran

Três horas. Um amanhecer montado no fogo. Um pesadelo vindo do mar. Galos de metal. Fumaça. Ferro preparando um banquete para o Ferro-Mestre e uma alvorada que irrompe em todos os sentidos antes de romper. Um rugido me expulsa da cama e me joga neste corredor estreito. Nada quero e nada desejo. Não consigo ordenar meus membros neste tumulto. Não há tempo para a cautela, nem tempo para o tempo. Se eu soubesse… se eu soubesse como organizar o acúmulo desta morte derramada. Se ao menos eu soubesse como libertar o grito contido num corpo que não é mais meu corpo, de tanto esforço despendido para se salvar da perseguição do caos ininterrupto das bombas. “Chega”, sussurro apenas para verificar se ainda consigo fazer alguma coisa que me guie e aponte para o abismo aberto em seis direções. Não posso me render a tal destino. E não posso resistir a ele. Um ferro late; outro, para ele, uiva. A febre do metal é o cântico deste amanhecer. Que esse inferno faça uma pausa de cinco minutos… depois, seja o que for! Apenas cinco minutos! Eu quase digo: “Cinco minutos apenas. Para que eu possa preparar minha única ferramenta e, em seguida, organizar minha morte ou minha vida”. Mas será que cinco minutos são suficientes? Sim, bastam para eu me esgueirar por este corredor estreito que dá para o quarto de dormir, que dá para o escritório, que dá para o banheiro sem água, que dá para a cozinha, onde estou tentando chegar faz uma hora, mas não consigo, nunca consigo.

 

 

 

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Constelação Clarice – Ensaio Palavra-Imagem com Clarice Lispector https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/24/constelacao-clarice-ensaio-palavra-imagem-com-clarice-lispector/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/24/constelacao-clarice-ensaio-palavra-imagem-com-clarice-lispector/#respond Sun, 24 Oct 2021 12:09:59 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/Autoria-desconhecida-sem-data.-Acervo-Clarice-Lispector-Acervo-IMS-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22546 Que Ensaio especial! Sim, todos são, mas essa exposição “Constelação Clarice” que o Instituto Moreira Salles criou é de uma lindeza sem fim. Clarice Lispector – que dispensa qualquer apresentação – e suas palavras, com trechos de muitos de seus livros e imagens de artistas contemporâneos a ela, em um diálogo afinado e poético. Um atravessamento de poesia, feminilidade e muita matéria bela. A exposição abriu ontem, 23, no IMS Paulista e fica até o fim de fevereiro. Por tudo, vale a visita. 

Um sopro de vida, de Clarice Lispector

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.” A HORA DA ESTRELA.

A hora da estrela, de Clarice Lispector
“Quando entrou com seus olhos, por um momento tive um erro de visão: a sala era essa mulher, essa mulher era a sala. Ambas se confundiam como águas da mesma cascata. Esta senhora de olhos azuis extravasados, assim como a salinha – conseguia fechá-los para dormir. E a sala? onde guardaria toda a sua claridade para dormir? Se pudéssemos por um instante desligar a sala – que sucederia? Que grande escuridão, feita de trevas mortas, se seguiria. Mas a sala não tinha onde guardar a sua claridade. Porque esqueci de dizer: o aposento tinha tal nudez, apesar dos objetos, dos móveis, das pessoas. Nesta sala: impossível esconder-se. A pessoa estava exposta.”
A BRAVATA.
Vera Chaves Barcellos (Foto: Everton Ballardin)
(Foto:Erico Verissimo)
“Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?”

A HORA DA ESTRELA

“Se a gente ficasse em silêncio – de repente nasce um ovo. Ovo alquímico. E eu nasço e estou partindo com meu belo bico a casca seca do ovo. Nasci! Nasci! Nasci!

UM SOPRO DE VIDA

Ninhos, de Celeida Tostes (Foto: Vicente de Mello)

“Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.”

A HORA DA ESTRELA

Wilma Martins

“Se me viesse de noite uma mulher. Se ela segurasse no colo o filho. E dissesse: cure meu filho. Eu diria: como é que se faz? Ela responderia: cure meu filho. Eu diria: também não sei. Ela responderia: cure meu filho. Então – então porque não sei fazer nada e porque não me lembro de nada e porque é de noite – então estendo a mão e salvo uma criança.”

A LEGIÃO ESTRANGEIRA

“Quem sou eu? perguntou-se em grande perigo. E o cheiro do jasmineiro respondeu: eu sou o meu perfume.”

UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES

Lygia Clark (Foto: Everton Ballardin)

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.”

ÁGUA VIVA.

Maria Martins (Foto: Everton Ballardin)

“Eu me dou melhor com os bichos do que com gente. Quando vejo o meu cavalo livre e solto no prado – tenho vontade de encostar meu rosto no seu vigoroso e aveludado pescoço e contar-lhe a minha vida. E quando acaricio a cabeça de meu cão – sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique.”

A HORA DA ESTRELA

Amassadinhos, de Celeida Tostes (Foto: Vicente de Mello)

“Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido.

Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo.

Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.”

O OVO E A GALINHA

Constelação Clarice
Abertura: 23 de outubro de 2021
Visitação: até 27 de fevereiro de 2022
IMS Paulista
Entrada gratuita

Para visitar a mostra, é preciso realizar agendamento prévio no seguinte site:
www.sympla.com.br/imspaulista

 

 

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Costurar a memória – Ensaio Palavra-Imagem com Pedroluiss https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/17/costurar-a-memoria-ensaio-palavra-imagem-com-pedroluiss/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/17/costurar-a-memoria-ensaio-palavra-imagem-com-pedroluiss/#respond Sun, 17 Oct 2021 10:53:01 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/IMG_2234-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22532 Para esta edição do Ensaio, convidei o artista plástico Pedro Luis, mais conhecido como “pedroluiss”, para ser a palavra e a imagem. Seus trabalhos com colagens, pinturas e desenho me chamam a atenção faz algum tempo. Indo além do curso de Artes Plásticas, ele decidiu aprender a bordar e isso virou a marca registrada de suas obras. Desde sempre, coleciona memórias e tudo o que de alguma forma o marcava na vida. Na tentativa de materializar alguns desses sentimentos, pedroluiss criou esta série com trabalhos autobiográficos com a memória alheia. A partir de registros da vida de outras pessoas, ele conta sua própria história, sempre rasurando os olhos para indicar que aquela fotografia já não conta mais a história que contava. A pessoa retratada se torna personagem da história que ele quer contar. E as histórias que ele conta? São múltiplas: dele, sua e minha. Depende do espaço-tempo que a gente esteja habitando neste momento.

 

 

 

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Outono, o lago. Inverno, as pedras – Ensaio Palavra-Imagem com Nazik Armenakyan e Anna Davtian https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/outono-o-lago-inverno-as-pedras-ensaio-palavra-imagem-com-nazik-armenakyan-e-anna-davtian/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/03/outono-o-lago-inverno-as-pedras-ensaio-palavra-imagem-com-nazik-armenakyan-e-anna-davtian/#respond Sun, 03 Oct 2021 10:47:31 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/NazikArmenakyan_WhenPandemic_03-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22517 Para este Ensaio convidei as queridíssimas artistas Anna Davtian e Nazik Armenakyan para preencherem esse espaço com um dos meus temas preferidos: Armênia. Anna é escritora, tradutora e fotógrafa, além de ter sido a musa do meu novo filme “Cantos de um Livro Sagrado”, com Cesar Gananian na codireção. Anna é autora do livro de poesia bilíngue armênio-inglês “Livro da Gratidão”, 2012 e do romance “Khanna”, lançado em 2020. Nazik é fotógrafa e uma das fundadoras do coletivo “4Plus” que visa empoderar as mulheres por meio da fotografia. Ela ganhou alguns prêmios e participou de muitas coletivas ao redor do mundo, tendo publicado dois livros. Minha relação com as duas começou em 2014 quando decidi passar uma temporada no Cáucaso, conhecendo e retratando mulheres contemporâneas do país. Hoje estamos sempre nos cruzando e atravessando nossos caminhos em diferentes projetos relacionados à Armênia. O texto de Anna Davtian a seguir foi escrito originalmente em armênio e foi traduzido para o português para o entretempos.

Outono: o lago

Ele apenas se senta,

coloca o carro em P,

e eu olho por muito tempo em seus olhos,

então estou olhando para o lago por cima de seu ombro.

Um vislumbre atinge a escuridão.

Noite velha.

Ele diz: Prenda o cabelo para a estrada.

As duas margens do lago onde nada se reflete.

Seu fundo miserável sob o abdômen amarelado das águas.

O que devo dar para continuar?

O clima branco do final do outono. Ele diz, Ann, segure-se em mim,

para que o inverno não despenque entre as árvores.

As árvores vão se curvar sob a neve que o sol leva.

As horas caem no lago, ao longo da noite.

Um sonho se acumula ao longo dos anos.

Para que tudo isso pode ser usado?

Amar? Mesmo?

Olha, embora

Meus braços minhas mãos

ocioso,

A neve é engolida pelo lago.

A escuridão fere o lago.

Inverno: as pedras

A ausência de neve desce calmamente entre as árvores.

E eles ficam nus, inspecionando a estrada.

Um pensamento fala por si mesmo sem fim.

Como podemos nomear o que aconteceu?

Amar? Mesmo?

Uma palavra que você não me deixa pronunciar,

mas eu digo, Pain.

As cenas de uma cidade,

uma cidade de pedra negra,

mais enegrecido pela chuva.

Na estrada, um bando de juncos

desgastado pela poeira do sol.

À distância, ali, o pássaro preto das asas da ponte

contra o horizonte sem luz.

Uma mão corta lentamente a costura

do meu corpo e o seu à parte.

Para lá, a neve subiu,

de onde as estrelas espanam seus corpos.

Os arredores são um grande negócio,

Quando eu olho do ponto de vista da dúvida, por dentro:

Ele entende ou não?

A cidade respira o carvão negro do inverno,

curva sua face de granito para baixo para as estradas de ladrilhos.

Seu rosto voa para a umidade,

o que aconteceu é mais leve do que a poluição.

Existem campos aqui, onde jazem pedras nuas,

e as pedras são meu amor por você,

a terra nua é meu amor por você,

a estrada desgastada segue adiante,

a sensação de desejo para o cascalho e asfalto da estrada.

Aldeias por todos os lados,

sob as mandíbulas abertas do céu,

ameaçando uma chuva torrencial de neve,

em vez de enviar mudez.

Estou mudo, meu amor,

não sei como te falar sobre

o que vem de você.

Minha voz cai na noite

pertencente ao quintal da lua.

O carro continua com rodas de seda,

um pensamento de você. Eu olho para você

sobre as pedras da montanha

de onde sopra o horizonte aquoso.

Não é segredo.

O horizonte é uma cor,

manchado no pescoço das nuvens.

Uma rua vazia,

Eu digo seu nome para cada esquina,

Falo da saudade de seus olhos, de suas mãos,

suas roupas macias

Você provavelmente sorri com os olhos arregalados,

colocando a resposta na palma da minha mão.

Amando você esta noite,

Pressa!

Eu aceno um adeus.

Eu faço como se eu fosse alguém que parece

no mundo com calma.

O amor é uma varanda de vidro,

descansando no peito

de uma casa em ruínas

onde as pedras caem.

A água arde nos pés das árvores.

O vento aparece através da água.

O abismo sem fundo do amor está sob meus pés.

Os fios e postes chiam.

Ele não ama, ele não ama!

Enquanto isso, você pode ver o amor do lado, veloz,

Eu falo hesitantemente.

As casas negras podem ser vistas à distância.

Um tapete de pedra, colocado na liberdade das pessoas,

como uma hera forjada.

O lago brilha por trás das árvores sem neve.

Encontre uma maneira de falar, diz ele. Há um.

Carros rugem na cidade

correndo atrás de suas próprias luzes

pelas estradas de terra.

Gyumri, meu amante.

Em vez de neve, o tempo cai do céu,

O amor passa despercebidamente por todos os relógios.

A verdade vem de dois lados:

Um de mim,

o outro de você.

Eu não sei onde eles deveriam se encontrar.

Padrões no rosto da cidade.

Desejo de amor nas profundezas da cidade,

Estou indo para você, vibrando.

Porque quando alguém parte para o sonho,

o retorno se torna difícil.

Uma árvore solitária pende da lua.

Não está certo dizer,

mas há muito sexo reprimido aqui,

o orvalho está sob a pedra.

Isso me deixa louco.

Sentado na minha frente, há crianças

Eu provavelmente oro por.

O coração continua pulando de um segundo para o outro,

pardais cruzam o céu,

mas você não sabe porque,

é fevereiro.

A casa

Pessoas moravam aqui,

seus passos são ouvidos em todos os lugares,

uma mulher sem cabeça assiste

por trás do painel alto da janela.

A quarta janela do meu quarto é uma mensagem:

Ver você ainda está por vir.

Paredes brancas entre sussurros e portas,

fora do final do inverno

sob os carros sem neve.

O ninho das formigas fica na cozinha,

e eles carregam a árvore seca para dentro.

Uma casa branca, sem lacunas.

O som prateado do cascalho é ouvido do quintal.

Não é você.

O vento sopra a casa para o lago invisível.

Աշուն. լիճը

 

Նա պարզապես նստեց,

Մեքենան դրեց P,

Ու ես երկար նայեցի նրա աչքերի մեջ,

Հետո նրա ուսի վրայով նայում էի լճին.

 

լիճն աստղիկներով կծմծում էր մութը:

 

Հին գիշեր:

Նա ասաց՝ ճանապարհի համար կապիր մազերդ:

 

Երկու ափերը լճի, որում ոչինչ չի արտացոլվում:

Ողորմելի հատակը՝ ջրերի դեղնած փորի տակ:

Ես շարունակության համար ի՞նչ ունեմ տալու:

 

Ուշ աշնան սպիտակ եղանակ: Նա ասաց՝ Ան, բռնվիր ինձնից, որ ձմեռը փուլ չգա ծառերի միջով: Արեւից մաշված ձյուներով ճկվելու են ծառերը:

Ժամերն ընկնում են սառած լիճը՝ գիշերվա երկայնքով:

 

Տարիների հավաքած երազ մը:

 

Ի՞նչ գործածել այս ամենի համար.

Սե՞ր: Մի՞թե:

 

Տես, բայց,

Ձեռքերս ու թեւերս

Պառկած են պարապ:

 

Ձյունը կուլ է գնում լճին:

 

Մութը դաղում է լիճը:

 

 

Ձմեռ. քարերը

 

Ծառերի արանքից հանդարտ իջնում է ձյան բացակայությունը,

Ու նրանք կանգնում են մերկ՝ հսկելով ճանապարհը։

Մի միտք է խոսում անընդհատ՝

Ինչպե՞ս անվանել եղածը,

Սե՞ր, մի՞թե։

Բառ, որը չես թողնում արտաբերել,

Բայց ես ասում եմ՝ ցավ։

 

Հետո քաղաքի տեսարաններ,

Սեւ քարով քաղաքի՝

Ավելի սեւացած անձրեւից։

Ճանապարհին՝ եղեգների փոքրիկ երամ՝

խունացած արեւի փոշուց։

Հեռվում թեւում է սեւամած կամրջի թռչունը

Անլույս հորիզոնի վրա։

 

Մի ձեռք է հատում դանդաղ

մարմնիս ու մարմնիդ կարը։

 

Ձյունը վեր է ելել այնտեղ,

Որտեղից ցած է թափվում աստղերի փոշին։

 

Տարածությունն հսկա զբաղմունք է,

Երբ նայում եմ կասկածանքի միջից՝ հասկանու՞մ է, թե՞ չէ։

 

Քաղաքը շնչում է սեւ ածխաքարը ձմռան

Ու հակում է սալարկած փողոցներին իր բազալտե երեսը։

 

Քո դեմքը դուրս է լողում թացության մեջ,

Եղածն ավելի է թեթեւ, քան մառախուղը։

 

Այստեղ կան դաշտեր, որտեղ պառկած են մերկ քարեր,

Ու պառկած քարերն իմ սերն են քո հանդեպ,

Լերկ տարածությունն իմ սերն է քո հանդեպ։

Դիմացից գնում է ծոպավոր ճանապարհը,

Ցանկալիի զգացումը՝ ճանապարհի խճին ու ասֆալտին։

 

Գյուղեր ամեն կողմ՝

Երկնքի բաց երախի տակ, որ սպառնում է ձյուն ցած թափել,

Փոխարենն ուղարկում է համրություն։

Համր եմ, իմ սեր,

Չգիտեմ քեզ ինչպես ասել բանը,

Որ քեզանից է գալիս։

Ձայնս ընկնում է գիշերվա մեջ, որ լուսնի բակին է պատկանում։

 

Մեքենան գնում է մետաքսե ակներով,

միտք քո մասին,

Քո կողմն եմ նայում լեռան քարերի վրայով,

Որտեղից փչում է շունչը ջրոտ հորիզոնի։

 

Գաղտնիք չէ:

 

Հորիզոնը գույն է՝

Քսված ամպերի պարանոցին։

 

Դատարկ փողոց,

Ամբողջ երկայնքով քո անունն եմ ասում։

 

Ես խոսում եմ աչքերիդ, ձեռքերիդ կարոտից,

Փափուկ շորերիցդ,

Դու ժպտում ես հավանաբար լայն աչքերով՝

Պատասխանը դնելով ափիս մեջ։

 

Քեզ սիրելն այս գիշեր։

Շտապիր։

 

Ես ձեռքով եմ անում հրաժեշտին,

Ես ձեւացնում եմ, թե մեկն եմ, ով աշխարհին հանգիստ է նայում։

Սերը ապակյա պատշգամբ է,

Հենված խարխուլ տան կրծքին, որից քարեր են թափվում։

 

Ջուրը դաղում է ծառերի ոտքերը։

Քամին երեւում է ջրի միջով։

Անհատակ վիհը սիրո՝ ոտքերիս տակ է։

 

Լարերն ու էլեկտրասյուները ֆշշացնում են՝

Չի սիրում, չի սիրում, չի սիրում։

 

Իսկ դու կարող ես տեսնել սերը կողքից, արագի մեջ,

Ես հապաղելով եմ խոսում։

 

Հեռվից երեւում են քաղաքի սեւ տները՝

քարե գորգ,

Դրված մարդկանց ազատության վրա՝ ինչպես դարբնած բաղեղ։

Լիճը կայծկլտում է անձյուն ծառերի հետեւում։

Հնար գտեք խոսելու` ասում է։ Կա։

 

Քաղաքի մեջ վնգում են մեքենաները՝

վազելով իրենց լույսի հետեւից՝ նեոնե ճամփաներով։

Գյումրի՝ իմ սիրեցյալ։

 

Ժամանակն իջնում է երկնքից՝ ձյան փոխարեն,

Բոլոր ժամացույցների միջով աննկատ սահում է սերը:

 

Ճշմարտությունը գալիս է երկու կողմից.

Մեկը ինձնից,

Մյուսը քեզնից,

Չգիտեմ` որտեղ են նրանք հանդիպելու։

 

Քաղաքի երեսին` նախշեր,

Քաղաքի խորքում` սիրո տարփանք,

Ես տրոփելով եմ գալիս քեզ մոտ:

 

Քանի որ երբ մեկն այդքան հեռանում է դեպի իր երազը,

Վերադարձը դառնում է դժվար:

Լուսնից կախված է միայնակ ծառը:

 

Պետք չէ ասել,

Բայց շատ ճնշված սեռ կա այստեղ,

Շաղը քարի տակ է:

Ինձ հանում է հունից:

Երեխաներ են նստած իմ առջեւ,

Ում համար ես գուցե աղոթում եմ:

 

Սիրտը շարունակում է ցատկել մի վայրկյանից դեպի մյուսը,

Երկնքով ծիծեռնակներ են անցնում,

Բայց, չգիտես ինչու, փետրվար է:

 

Տունը

 

Այստեղ մարդիկ են ապրել,

Ամենուր լսվում են նրանց ոտնաձայները,

Անգլուխ մի կին է նայում պատուհանի երկար փեղկից այնկողմ:

 

Իմ սենյակի չորրոդ պատուհանը հաղորդագրություն է՝

Շատ երկար է իմ գալը քեզ մոտ:

 

Սպիտակ պատեր՝ շշուկների արանքում, ու դռներ:

Դրսում մեքենաների տակ սպառվում է ձմեռը՝ առանց ձյան:

 

Խոհանոցում մրջյունների բույնն է,

Որ ներս են կրում դրսի չորացած ծառը:

 

Սպիտակ տուն՝ առանց թերությունների:

Բակից լսվում է խճի արծաթե ձայնը:

Դու չես:

Քամին քշում է տունը դեպի չերեւացող լիճը:

 

Գյումրի, 2018

 

 

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Um Brasil para os brasileiros – Ensaio Palavra-Imagem com Carolina Maria de Jesus https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/um-brasil-para-os-brasileiros-ensaio-palavra-imagem-com-carolina-maria-de-jesus/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/um-brasil-para-os-brasileiros-ensaio-palavra-imagem-com-carolina-maria-de-jesus/#respond Sun, 26 Sep 2021 10:14:46 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Meada-Antonio-Obá.-Credito-Maria-Clara-VillasInstituto-Moreira-Salles-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22509 Ontem, 25, inaugurou no IMS a exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros” sobre a vida, a obra e o legado da fundamental escritora Carolina Maria de Jesus (catadora de papel e autora do clássico “Quarto de Despejo”, 1960), organizada pelo antropólogo Hélio Menezes e pela historiadora Raquel Barreto. Neste domingo, eu publico alguns trechos de inúmeros registros de Carolina Maria de Jesus. Com obras inéditas dela, entre fotografias, matérias de imprensa, vídeos e outros documentos, a exposição inclui também obras de cerca de 60 artistas que dialogam com os temas investigados por Carolina. Com seus manuscritos como fio condutor, a equipe de curadoria comenta a importância do livro: “Em Um Brasil para os brasileiros, a autora elabora narrativas biográficas e autoficcionais ao rememorar sua infância, apresentando pontos de vista de personagens que foram apagadas das narrativas oficiais escritas, majoritariamente por autores homens e brancos. Carolina faz assim um interessante contraponto aos cânones literários vigentes no Brasil.” Urgente e fundamental para estes e todos os tempos.

Mulambö
Bandeira Mulamba de Ouro, 2021
Costura em tecido. Coleção do artista. (Foto:Maria Clara Villas / Instituto Moreira Salles)

Quando eu morrer
Não digam que fui todo
Rebotalho
Que vivia à margem da vida
Digam que eu procurava
Trabalho
E fui sempre preterida

Digam ao povo brasileiro
O meu sonho era ser escritora
Mas eu não tinha dinheiro
Para pagar uma editora

Eu não tenho complexo de cor, eu gosto de ser preta. Se Deus enviasse-me branca creio que ficava revoltada. Quando leio nos jornais ‘Carolina Maria de Jesus, a preta da favela’, fico contente. Favela é lugar dos pobres, é a manjedoura da atualidade. Cristo nasceu numa manjedoura, se renascer será numa favela. O recanto dos que não podem acompanhar o custo de vida.

O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.

(Trecho proveniente do livro Quarto de despejo.)

“Um dia apoderóu-se de mim um desejo de escrever: – Escrevi – ”

– Trecho extraído do manuscrito Um Brasil para os brasileiros. Acervo Instituto Moreira Salles.
“Devemos escrever a realidade. A verdade. Revelar os fatos que córrómpem um País”

– Trecho extraído de manuscrito do arquivo Público Municipal de Sacramento.

“Inconcientemente mostre o são paulo por dentro. O universo pensava que são paulo era um atleta. Um fisico fórte. e eu apresentei suas chagas_ As favelas. A chaga moral de um país.”
– Trecho extraído de manuscrito do arquivo Público Municipal de Sacramento.
“Após a libertação dos escravos e a Proclamação da República, o que restou para o Brasil foi um saldo de analfabetos.”
– Trecho extraído de manuscrito do arquivo Público Municipal de Sacramento.

Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros
Abertura: 25 de setembro de 2021
Visitação: até 30 de janeiro de 2022
IMS Paulista
Entrada gratuita

A exposição dedicada a Carolina Maria de Jesus integra também a programação expandida da 34ª Bienal de São Paulo, que poderá ser visitada gratuitamente no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, de 4 desetembro a 5 de dezembro de 2021.

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Sem regras nem teoria: os tapetes feitos de paixão da coreógrafa Noa Eshkol https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/23/sem-regras-nem-teoria-os-tapetes-feitos-de-paixao-da-coreografa-noa-eshkol/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/23/sem-regras-nem-teoria-os-tapetes-feitos-de-paixao-da-coreografa-noa-eshkol/#respond Thu, 23 Sep 2021 10:59:28 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/noa_eshkol_01-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22484 Por Iara Biderman

Tapeçarias flutuam no salão sem forro e com vigas aparentes da Casa do Povo. Os tapetes foram criados coletivamente por integrantes do Chamber Dance Quartet, fundado por Noa Eshkol, coreógrafa nascida em 1924, em um kibutz na Palestina.

Noa Eshkol na Casa do Povo (Foto: Edouard Fraipont)

Costurados sobre lençóis ou mantas, os retalhos coloridos recolhidos nas ruas sugerem formas, padrões, simetrias inusitadas – como os movimentos de uma dança.

Noa Eshkol, Heavy Soil Fields, c. 1980, Cortesia da Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel, and Neugerriemschneider,
Berlin.© The Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel
(Foto: Jens Ziehe, Berlin)

São também uma não-dança. Começaram a ser criados em 1973, quando um dos dançarinos, o único homem do quarteto, foi convocado para a Guerra de Yom Kippur e Noa decidiu que o grupo não dançaria até ele voltar. Enquanto esperavam, ela e as outras integrantes do grupo juntavam os panos descartados e teciam.

Penélopes modernas, não desfaziam o trabalho do dia durante a noite, como a rainha grega à espera de Ulisses. Agiam quase intuitivamente, sem estratégia nem metas precisas, desprovidas de “explicação ou ideologia”, como afirma Eshkol em seu único texto sobre as obras têxteis.

Noa Eshkol, Insects in the Sun, 1990, Cortesia da Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel, and Neugerriemschneider,
Berlin.© The Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel
(Foto: Jens Ziehe, Berlin)

“[O trabalho] começou por um anseio totalmente pessoal de fazer alguma coisa, algo que não envolvesse uma decisão intelectual”, escreve a artista no texto intitulado “Sem regras, sem teorias – somente paixão”.

Se não havia regras racionais, o trabalho proposto pela coreógrafa era conduzido por algumas restrições: os tecidos não podiam ser comprados, só eram usados retalhos, trapos e roupas descartadas recolhidas de forma fortuita, que não podiam ser cortadas: as peças eram apenas descosturadas para serem aplicadas aos painéis.

“O material é ‘vulgar’, vernacular: tecidos encontrados no dia a dia, disponíveis em qualquer lugar em quase todas as culturas atuais, de forma que passam despercebidos a maior parte do tempo, quase como o ar que respiramos.”

Noa Eshkol, Sunsets, 1975, Cortesia da Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel, and Neugerriemschneider,
Berlin.© The Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel
(Foto: Jens Ziehe, Berlin)

Quase dançantes em suas composições abstratas, em suas formas tão orgânicas descosturadas de mangas, colarinhos e outras partes de roupas que redesenham as formas do corpo. Recompostas nas tapeçarias, lembram plantas, riachos, astros, aves, peixes. Ou seriam apenas gravatas desconstruídas?

A produção iniciada no tempo em suspensão do início da guerra de 1973 continuou mesmo depois da volta do soldado-bailarino e faz parte do acervo da Noa Eshkol Foundation, fundada por integrantes do quarteto de dança após a morte da coreógrafa, em 2007.

Noa Eshkol, Yellow Tree, 1998, Cortesia da Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel, and Neugerriemschneider,
Berlin.© The Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel
(Foto: Jens Ziehe, Berlin)

Sediada na casa onde Noa viveu, em Holon (Israel), a fundação também mantém todo o material sobre o sistema de notação do movimento, espécie de partituras ou guias gráficos de coreografias elaborado por Noa e o arquiteto Avraham Wachman na década de 1950.

Parte desse material também está na Casa do Povo, na exposição Corpo Coletivo, que integra a programação da 34ª Bienal de São Paulo, neste ano espalhada por espaços da cidade em uma rede de mostras paralelas de artistas participantes.

Noa Eshkol na Casa do Povo (Foto: Iara Biderman)

“Recebemos o convite da Bienal e a sugestão de realizar uma mostra com as obras de Noa. Pesquisamos seu trabalho, para ver o que tinha mais relação com a Casa do Povo. Há muita coisa, como o fato de ela trabalhar coletivamente, propor novas práticas pedagógicas. Além das tapeçarias com sobras de confecções: todo dia às 19h vemos sacos de retalhos nas ruas do Bom Retiro [onde fica o centro cultural]”, diz Marilia Loureiro, curadora da exposição.

Noa Eshkol
Musical Carpet – Fugue, 1978, Cortesia da Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel, and Neugerriemschneider,
Berlin.© The Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel
(Foto: Jens Ziehe, Berlin)

Há um processo para se chegar aos tapetes. É preciso subir um lance de escadas para entrar nos bastidores do trabalho de Noa. A primeira parada da exposição não mostra as obras tecidas, mas o ambiente no qual foram criadas. São cápsulas arquivísticas (método de organização usado pela Fundação Noa Eshkol) com fotos de encontros, viagens, Noa conversando em casa, quase sempre com um cigarro na mão – uma Pina Bausch no kibutz. E livros, catálogos, partituras de movimento desenhadas por crianças e filmes delas dançando passando em aparelhos antigos de TV.

Noa Eshkol na Bienal de SP (Foto: Iara Biderman)

Os documentos vindos de Israel conversam com outras cápsulas de arquivo, criadas na Casa do Povo: fotos e trabalhos das crianças da escola progressista que existiu no centro cultural do Bom Retiro, jantares comunitários, cartazes mimeografados sobre as atividades.

Noa Eshkol, Vase with White Apples, 1997, Cortesia da Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel, and Neugerriemschneider,
Berlin.© The Noa Eshkol Foundation for Movement Notation, Holon, Israel
(Foto:Jens Ziehe, Berlin)

“Procuramos as pontas onde o trabalho de Noa encontra o da Casa do Povo, criando um diálogo entre a história da artista e a da instituição. É memória viva: usar o passado como ferramenta do presente para pensar o futuro”, diz Loureiro.

Noa Eshkol na Bienal de São Paulo (Foto: Iara Biderman)

Mais um lance de escadas e o preto e branco dos documentos e fotos ganha outro sentido na explosão de cores das tapeçarias suspensas. Contraste e continuidade da dança minimalista e precisa do Chamber Dance Quartet, os tapetes são exuberantes, com formas que parecem brotar incontidas: o sol no lago e mil sóis se pondo, maçãs brancas transbordando de vasos, insetos, notas de uma música clássica numa partitura de retalhos.

No dia 15 de outubro, os tapetes se moverão, voarão do Bom Retiro ao Ibirapuera, para encontrar outras tapeçarias de Noa, expostas no pavilhão da Bienal. O movimento continua, agora numa conversa à distância entre as cápsulas de arquivo e as obras têxteis. A parte “acervo em diálogo” da exposição de Noa Eshkol fica na Casa do Povo e o conjunto de tapeçarias estará reunido na Bienal. As mostras nos dois espaços estão abertas à visitação até o dia 5 de dezembro.

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Incandescência poética – Ensaio Palavra-Imagem com Juliano Garcia Pessanha e Hiroshi Sugimoto https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/19/incandescencia-poetica-ensaio-palavra-imagem-com-juliano-garcia-pessanha-e-hiroshi-sugimoto/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/19/incandescencia-poetica-ensaio-palavra-imagem-com-juliano-garcia-pessanha-e-hiroshi-sugimoto/#respond Sun, 19 Sep 2021 10:00:08 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/059bb15c4a1a8c5644e16430a48a4032-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22475 Para esta edição do Ensaio, convidei Juliano Garcia Pessanha para estampar esta página com um trecho de seu mais novo livro “O filósofo no porta-luvas”, lançado na última semana pela Editora Todavia. Formado em filosofia pela USP, ele é autor da tetralogia “Testemunho Transiente”além de “Recusa do não-lugar”(2018), dois livros que me acompanharam nos últimos anos. Eu sabia que queria as palavras de Pessanha neste domingo, mas ainda não tinha as imagens para estampá-las – encontrar as imagens certas é sempre um caminho complexo a se trilhar. Eu mergulhei em seu novo romance, um híbrido que mistura melancolia, humor, uma certa fabulação e a observação das paixões humanas com as maiores discussões da filosofia. Com o trecho que escolhi, só conseguia pensar nas polaroids coloridas do genial artista Hiroshi Sugimoto – mestre do preto e branco – impressas em lenços da marca Hermés, no festival de fotografia “Les Rencontres d’Arles”. Entre fim de 2009 e começo de 2010, durante o inverno no hemisfério norte, ele acordou todos os dias às 5h30 para observar os primeiros raios de sol e se inundar da metamorfose das cores. “Depois de passar pelo espaço negro vazio, a luz do sol atinge e se submete ao meu prisma, refratando-se em um contínuo infinito de cores”. A combinação inusitada entre os dois sugere um portal para diferentes reflexões de uma vida toda.

Numa sexta-feira em que não haveria corrida para Santos, ele foi até o Caps. O psiquiatra havia preparado uma sala para ele. Sentaram-se uns quinze usuários do sistema, duas terapeutas ocupacionais, uma psicanalista e dois psiquiatras. Frederico começou:

“Boa tarde a todos, estou honrado com o convite. Escutei certa vez de uma sereia que eu era um doutor em condição humana. Talvez ela tenha exagerado, mas não há razão para eu não me autorizar a falar. O que vou lhes dizer é o mantra cansado que não cesso de repetir. O ser humano é um camaleão. Em geral ele gosta de tomar a coloração das coisas do mundo, pois isso lhe dá um pouco de sossego. Quando ele está esverdeado perto da folha de uma árvore, assistimos ao camaleão descansar e fechar os olhos. Não é agradável quando encontramos um camaleão tranquilo ou uma pessoa que coincide com ela mesma? Nada é melhor que tomar a cor do mundo e falar seu idioma. Caso contrário, quando não está encostado em nada, o camaleão fica exposto. Zanza sem saber quem é e fala em línguas exaltadas. O Gregório era assim. Ele proclamava: ‘Estou fora dos mapas. Sou um homem antigo. Tudo me confessa!’. “Eu achava lindo o Gregório ser um clandestino. Eu o admirava por ele não estar vestido com o uniforme dos regimes culturais. Ele escapava das coerções discursivas e não tomava parte na cena do mundo. A máquina de embalsamar esquizofrênicos não o pegava. Eu não entendia nada do humano e das suas imunizações. Nada da metamorfose dos camaleões. Para saber algo disso, é preciso partir de uma diferença. Há os camaleões que dizem sim e os que dizem não. No primeiro grupo, a sentença ‘Ah, sim, eu aceito tomar a cor desta flor ou deste tronco’ é dita sem solavanco. O aroma da flor ocupou e preencheu tanto o camaleão que ele mergulhou na sua cor. Já o que se retrai diz: ‘Eu não vou me colorir no mundo. Prefiro ficar suspenso e indeterminado. Pertenço ao nada e ao abismo’. O Gregório era do segundo grupo. No dia em que se apresentou na oficina, ele disse: ‘Dizem que sou pai-de-deus. Desde menino eu via animais em sonhos, antes mesmo de tê-los visto pessoalmente ou em fotografias’. O pai-de-deus era tão exposto e aberto que espelhava a totalidade do real. E, sem nada dentro de si, anotava o ditado das coisas. Mas o Gregório queria aterrissar e ganhar interioridade. Sei disso porque o pai-de-deus me contou que queria misturar-se com uma mulher. Ele estava apaixonado e ansiava abandonar a via negativa. O camaleão queria ganhar cor, inventando uma mulher existente. Na imagem que faço do camaleão, ele não é mera adaptação, pega a cor daquilo que torna seu. Mas a mulher tinha partido e era preciso atravessar o uivo daquele corpo desabitado. Eu me aproximei dele, publiquei seus poemas, tomávamos suco de manga na Paulista, mas eu não mergulhei na sua dor. Eu só a vesti com roupagens filosóficas. Estetizei o Gregório e, em vez de caminhar com ele no interior do grande vazio, pintei o cabelo dele de azul. Eu estava enfeitiçado pela mania de pureza e achava que quem existe na lonjura está fora do circuito da alienação. Para mim, na condição de idiota teológico, Gregório e eu éramos a incandescência poética de singularidades livres da armação do mundo. Esta palestra, meus amigos, é um pedido de desculpas. Sorte a minha não ter morrido naqueles anos de arrogância. Sorte eu estar aqui com vocês participando e sendo visto. Sou agora apenas um olho a mais. Já não vivo na distância como meta-olho. Eu estava intoxicado pela teologia da dor, de Heidegger e de Adorno: de um lado, os que conheciam o sofrimento e sabiam soletrá-lo e do outro, no andar de baixo, os iludidos, os que deviam ser liberados. Ah, amigos, meu autismo filosófico foi corrigido pela visita do mundo. Meu nariz empinado desabou e tudo o que posso fazer agora é falar-lhes da linha onto-topológica e da metamorfose dos camaleões. Não posso falar do teorema de Gödel nem da estrela da manhã, mas posso descrever as posições de quem chegou e quem não chegou na casa do mundo.”

Quando Frederico terminou, foi aplaudido. Sentiu que estava imerso naquele lugar. De fato, o rato, o bolso vazio e o corpo doente tinham-no puxado para o mundo com toda a força. Despencou da redoma-consultório e espatifou no chão. Cessou o delírio de presunção.

 

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