Entretempos https://entretempos.blogfolha.uol.com.br Artes visuais diluídas em diferentes suportes, no Brasil e pelo mundo Sun, 28 Nov 2021 14:42:12 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Esquecer, não lembrar e reimaginar – Ensaio Palavra-Imagem com Hoda Barakat, Joana Hadjithomas e Khalil Joreige https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/11/07/esquecer-nao-lembrar-e-reimaginar-ensaio-palavra-imagem-com-hoda-barakat-joana-hadjithomas-e-khalil-joreige/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/11/07/esquecer-nao-lembrar-e-reimaginar-ensaio-palavra-imagem-com-hoda-barakat-joana-hadjithomas-e-khalil-joreige/#respond Sun, 07 Nov 2021 10:22:31 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/Captura-de-Tela-2021-11-03-às-14.20.47-320x213.png https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22577 Neste Ensaio, seguindo o especial Oriente Médio, proponho o diálogo entre as palavras da escritora libanesa Hoda Barakat, com a dupla Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (ambos nascidos em Beirute em 1969). Cartas de 6 personagens do livro “Correio Noturno”, de Barakat conversam com as fotografias do projeto  “Wonder Beirut” da dupla. Cartas que nunca chegam ao seu destino, nem sequer são enviadas… mas se conectam e se costuram umas às outras na formação deste impactante romance.

#21 Beaches in Beirut

Notas sobre “Correio Noturno”, de Hoda Barakat

Por Geraldo Adriano Campos (Coordenador do Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Federal de Sergipe)

Hoda Barakat é uma escritora libanesa, nascida em Beirute, em 1952. Desde o final da década de 1980 vive em Paris, mas mantém o árabe como a língua com a qual produz suas obras. Além de romances, publicou peças, um livro de contos e um livro de memórias. Seu livro “Correio Noturno”, lançado em 2017 e premiado com o “International Prize for Arabic Fiction”, foi publicado no Brasil em 2020 pela Editora Tabla, com tradução da professora Safa Jubran.

O livro é composto de seis cartas, cujos autores e autoras estão, cada um à sua maneira, buscando diferentes tipos de refúgio. O entrelaçamento entre as cartas põe em evidência subjetividades ativadas no contato com fragmentos da memória alheia. Por isso, ainda que as missivas dos personagens de Barakat nunca atinjam seus reais destinatários, produzem naqueles que as encontram o desejo de escrever, criando uma continuidade narrativa pela costura de traumas individuais e coletivos de migrantes e refugiados do mundo árabe contemporâneo.

Entre diversos outros aspectos, a obra nos convoca a refletir sobre o limiar do que um corpo é capaz de suportar. Não é, afinal, um livro sobre lugares, mas sobre corpos e experiências.

A indeterminação de países de origem e destino dos personagens não é, de tal modo, aleatória. Sabemos apenas que os narradores são árabes, o que parece ser suficiente para situá-los na atmosfera de deslocamento que a autora nos oferece. As forças políticas, econômicas, sociais que impulsionam os deslocamentos de imigrantes e refugiados na região estão presentes no livro, mas não como elemento literário central.

Os personagens de “Correio Noturno” transitam por fétidos quartos de hotel, porões de tortura, bordéis, campos de refugiados, aeroportos. São pessoas que vivem nas ruas ou em condições de solidão e vulnerabilidade em países estrangeiros. Há sempre uma espera que se aproxima com a noite, seja a expectativa de um encontro ou de uma possibilidade qualquer de redenção, que não se realiza.

O tom confessional das cartas é atravessado por torturas realizadas pelo Estado, abandono, estupros, assassinatos, guerra, homofobia. Em cada descrição, é nítido que a experiência do corpo estrangeiro é produzida em suas articulações de gênero, como já recordara a historiadora Margot Badran em seu texto “Foreign Bodies: Engendering Them and Us” (2003). Os relatos sobrepõem diferentes formas de violência relacionadas a gênero e sexualidade, que se expressam nos vínculos estabelecidos com sistemas patriarcais e na proliferação de corpos violados. Assim, lidas em conjunto, as cartas compõem um mosaico de experiências de corpos que se deslocam entre fronteiras, físicas e simbólicas.

Diante da possibilidade de narrar essas experiências, chama a atenção o fato de que as cartas são elaboradas em “não-lugares” (para usar um termo do antropólogo Marc Augé) – o hotel, o aeroporto, o campo de refugiados – locais pensados como pontos de passagem e não de permanência, logo, incapazes de produzir identidades.

As narrativas do livro não comportam, portanto, apenas histórias de vidas dilaceradas. É, sobretudo, a relação com o espaço que está fraturada (os dramas dos personagens árabes imigrantes indocumentados em países europeus são exemplos disso).

Convém lembrar também a importância do gênero epistolar para os estudos migratórios e para a produção artística relativa ao tema, dada a característica da carta como documento privado que sugere uma aproximação particular entre a esfera íntima do cotidiano e a História.

O ato de falar a partir dos fragmentos de memórias alheias (mesmo que seja de personagens ficcionais), como esforço de produção de sentido histórico face a grandes tragédias, é um tema familiar à produção estética contemporânea do Líbano. As interrupções e ruínas que fizeram emergir os mecanismos políticos de produção da amnésia social no Líbano após a Guerra Civil são parte importante da trajetória da geração que desenvolve seus trabalhos a partir dos anos 1990. São artistas-pensadores cuja reflexão é marcada por uma ênfase na problemática relação entre arquivos, imagens, desaparecimento e memória coletiva. Na lista de obras de artistas libaneses que se organizam ao redor da potência subversiva de conectar-se com as memórias alheias podemos pensar em “Wonder Beirut” (1997-2006) de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (ambos nascidos em Beirute em 1969), no projeto do “Atlas Group” (1989-2004) de Walid Raad (nascido em Chbanieh em 1967) e no filme “Yamo” (2011), de Rami Nihawi (nascido em Beirute em 1982), entre muitos outros exemplos.

Por um lado, o livro de Hoda Barakat nos convida a observar como a narração do trauma pela escrita pode se tornar um refúgio para personagens deslocados e marginais em busca de alguma redenção possível. Por outro lado, faz-nos pensar no belíssimo ensaio “Atlas” (2012), de Antonio Tabucchi, quando o escritor nos recorda que as representações espaciais sempre podem mudar, assim como as fronteiras entre países. As únicas fronteiras que não mudam, diz ele, são “as do corpo humano e o que este sente quando são violadas”. Por isso, tomo emprestado o fragmento do poema “Torturas” de Wislawa Szymborska, que Tabucchi usa para concluir seu ensaio.

“Nada mudou./O corpo é doloroso,/ tem que comer e respirar, e dormir,/tem uma pele fina e, logo abaixo, sangue;/ tem uma considerável quantidade de dentes e unhas,/seus ossos são frágeis, suas articulações maleáveis./ Nas torturas, se descobre tudo isso.”

#10 Sea Shore
#6 Rivoli Square

Trechos das cartas interpretados em árabe por Safa Jubran com tradução em português:

Carta 1 – Um imigrante ilegal escreve para sua amante em um pequeno apartamento.

“Aquele anoitecer ficou na minha mente, não importa que horas eram do dia. Era igual ao anoitecer quando o sol desaparece no horizonte, quando todas as criancinhas choram, todos os bons românticos ficam melancólicos, de Ihsán Abdel-Quddus a Rilke. Uma tristeza inexplicável que envolve as delicadas e belas criaturas.”

https://www.youtube.com/shorts/M_gkPLyT0yM

Carta 2 – Uma mulher madura redige sua carta enquanto espera um antigo amor em um quarto de hotel.

“Não estou aqui, neste quarto, para voltar para trás nem para vê-lo ou ver com você como eu era jovem ou o quanto a primavera era bonita e intensa no país. O país que já era, que caiu e quebrou como um grande vaso de vidro. Seria trágico, pura tristeza e grande amargura.”

https://www.youtube.com/shorts/zKtmueoXZqQ

Carta 3 –  Um ex-torturador em fuga escreve para a mãe.

“Esse é também um homem sacrificado pelo destino, a quem nem Deus nem os homens perdoarão.” “Eu… acho que ainda vou pensar sobre essa carta, se envio para você ou entrego em mãos, ou se devo destruir tudo o que escrevi porque contém confissões sinceras que podem me levar à forca ou à prisão perpétua. Amanhã decido.”

https://www.youtube.com/shorts/rBvIiY3-CbU

Carta 4 –  Uma mulher escreve ao irmão para falar sobre a morte da mãe.
“Eu vou para a cozinha, preparo uma xícara de chá, paro na janela e olho para a noite, uma noite de estranha atmosfera, sem pertencer a nenhum lugar. Uma noite densa de alcatrão viscoso que gruda nas pálpebras e nas mãos. Esta não é minha vida.”
Carta 5 –  Um jovem escreve ao pai doente com quem tem uma relação complicada.
“Ninguém pode se colocar no lugar de ninguém, quero dizer, completamente no lugar do outro, até porque há um detalhe importante: meu corpo, reflexo da minha alma profunda, é diferente do seu corpo, e isso, você considera uma traição a você.”
#15 Rivoli Square
#13
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A catástrofe se move pelas ondas – Ensaio Palavra-Imagem com Mahmud Darwich e Abdulrahman Katanani https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/31/a-catastrofe-se-move-pela-ondas-ensaio-palavra-imagem-com-mahmud-darwich-e-abdulrahman-katanani/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/31/a-catastrofe-se-move-pela-ondas-ensaio-palavra-imagem-com-mahmud-darwich-e-abdulrahman-katanani/#respond Sun, 31 Oct 2021 10:00:34 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/selections-arts-katanani-the-wave-feature-1170x600-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22564 Neste mês de novembro, o Entretempos se dedicará ao Oriente Médio. Os Ensaios serão tomados pelas literaturas do mundo árabe, a partir de escritores traduzidos e publicados pela incrível Editora Tabla, da qual sou fã. Ela tem como foco a publicação de livros referentes às culturas de Oriente Médio e Norte da África e seus ecos no Ocidente. Com o objetivo de ressaltar os pontos de contato, percorrendo e construindo pontes culturais, a Tabla deseja apresentar e representar essas culturas de forma autêntica e longe de estereótipos. Numa parceria alinhada, será um mês com obras de arte palestinas, libanesas e sírias permeadas pelas palavras de tais territórios. Que alegria anunciar esse encontro!

Junto com a Tabla, vem o Geraldo Adriano Campos, Coordenador do Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Federal de Sergipe, que apresentará todos os domingos um dos autores escolhidos, além de me dar uma mão essencial para navegar entre os nomes da arte contemporânea daquela região. É um longo caminho a percorrer, mas também é um convite para mergulhar nesse universo ainda mal explorado em terras brasileiras que tanto tem de Oriente Médio, ainda que pouco conhecido.

A CATÁSTROFE SE MOVE PELAS ONDAS

Por Geraldo Adriano Campos

“O matador mata, o combatente combate e o pássaro gorjeia. Quanto a mim, encerro a busca por linguagem figurativa. Paro completamente minha procura por interpretação, pois a essência da guerra é degradar os símbolos e levar as relações humanas, o espaço, o tempo e os elementos de volta a um estado primordial”.

Com essas palavras, o poeta palestino Mahmud Darwich expõe as tensões do escritor nos escombros da guerra. Além da devastação material, dos corpos despedaçados, da cidade em ruínas, Darwich nos lembra que a guerra degrada os símbolos. O que resta ao poeta? O que pode a linguagem, face à eloquência das bombas?

“Memória para o esquecimento” apareceu inicialmente como texto em 1986 e acaba de ser lançado no Brasil pela Editora Tabla, com tradução do árabe ao português da Profa. Safa Jubran. É o relato dos acontecimentos de um dia em agosto de 1982, durante o cerco israelense a Beirute. Objetivava-se, com o forte bombardeio, impor mais um capítulo de exílio aos palestinos, cujas lideranças encontravam-se no Líbano naquele momento. Um exílio que não cessa de ser renovado desde a limpeza étnica de 1948 e a expulsão de cerca de 800.000 palestinos de suas terras, na Nakba (catástrofe).

Aos herdeiros do desterro a experiência do estado de sítio não é estranha.

Por isso, no mergulho do poeta no estado primordial em busca de uma linguagem, adquirem força gestos triviais como a preparação de um café, convidando-nos a refletir sobre a peculiaridade da produção estética palestina.

Em uma entrevista ao poeta libanês Abbas Beydoun, em 1995, Darwich dizia que os poetas palestinos se encontravam em um “lugar híbrido, em um ponto médio entre o histórico e o mítico”. Seu lirismo transitaria, assim, entre “o alcance da voz de um mito consumado, definitivo e consagrado” e a “estética do cotidiano”. Na obra de Darwich, a ressonância épica é transposta à esfera do prosaico, como possibilidade de afirmação da vida diante da iminência do fim.

Vivenciar o exílio imposto por Israel desde 1948 é também a experiência do “cerco dentro do cerco”, condição compartilhada pelos palestinos que habitam a paradoxal temporalidade do provisório-permanente nos campos de refugiados no Líbano, como o artista Abdulrahman Katanani, nascido em Sabra, após seus avós terem sido expulsos pelos sionistas da Palestina. Katanani nasceu nove meses após o massacre de setembro de 1982, mesmo ano em que transcorrem os acontecimentos descritos por Darwich em “Memória para o esquecimento”. No massacre, os campos de Sabra e Chatila também estavam cercados pelos israelenses, o que permitiu que as milícias falangistas libanesas perpetrassem uma das maiores atrocidades do século XX. “Para que as pessoas não acordassem com o som dos tiros, parte do massacre foi realizado com machadinhas, inclusive de crianças e mulheres grávidas”, contava-me um sobrevivente, em uma conversa em Chatila, em 2016.

Uma onda do mar. Eu a reconheço e a sigo com apreensão. Vejo-a se cansar antes de alcançar Haifa ou Alandalus. Ela se cansa e então descansa nas margens da ilha de Chipre. Uma onda do mar. Ela não será eu. E eu, eu não serei uma onda do mar.”

O narrador do livro “Memória para o esquecimento” nos alerta nesse trecho que a catástrofe se espalha com o mar, espaço simbólico em que se fundem esperança e ameaça, atingindo outros portos e cruzando-se com memórias alheias. Se no livro de Darwich “o mar se transforma em terra firme e se aproxima”, na escultura “Onda” (2016) de Katanani, o mar se materializa em arame farpado. Uma imensa onda prestes a engolir-nos. Uma onda coesa a recostar sua intimidante parede, dobrando-se em uma espuma irregular de pontas de arame farpado. Suspensa no momento em que antecede a quebra, a iminência do acontecimento é reforçada pela antecipação da ferida anunciada pelo material que rasga a carne. Com seu irmão, Katanani produziu em Sabra uma máquina de tecer grandes chapas de arame farpado e desenvolveu técnicas para trabalhar com esse material. Não se trata de matéria qualquer. Se a ruína é expressão material emblemática da modernidade, o arame farpado também o é.

O filme “O mar à frente” (2021), do jovem diretor libanês Ely Dagher (atualmente em exibição na Mostra Internacional de Cinema) também oferece a imagem do mar como ameaça. A obra conta a história de Jana, uma libanesa que retorna a Beirute, após um período na Europa. Em uma atmosfera profundamente melancólica, nos deparamos com uma geração que não consegue enxergar possibilidades no trágico contexto do Líbano contemporâneo. Na ausência de horizontes, persiste a espera pela grande onda, a derradeira. Jana procura o mar da varanda do apartamento de seus pais, como quem busca qualquer resquício de um futuro viável. “A grande onda está chegando”, diz Adam, seu namorado, em certo momento. Os personagens falam sobre a provável vinda de um tsunami, que nunca chega.

O mar de Darwich, de Katanani e de Dagher é o da iminência. Do momento definitivo, que tudo engolirá. Há também uma esperança, que exigirá que nos tornemos os donos do tempo, como sugere Darwich: “Haverá tempo para enterrarmos os mortos. Haverá tempo para as armas. E haverá tempo para que o tempo passe conforme desejamos, para que este heroísmo possa continuar, porque, agora, nós somos os donos do tempo…” .

O poeta palestino nos oferece, de tal modo, uma metáfora potente para nosso mundo, que extrapola as questões singulares do Oriente Médio. Em Darwich encontramos uma força que pode nos salvar da onda derradeira.

LIVRO: DA PRESENÇA DA AUSÊNCIA, tradução de Marco Calil

saudade de começos, do modo como a chave fechava a porta. da visão que vê seus objetivos, seus fins. escolher o lugar e a música da noite com artificiosa naturalidade. isto é o exercício passional de medir o pulso do Ser. disto, isto é, desta saudade, trata-se de recapitular o mais belo capítulo do conto: o primeiro, improvisado com destreza de prelúdios. assim nasceu a saudade de todo e cada acidente belo, não de chagas. que saudade não é memória. Saudade é seletiva como um bom jardineiro; ela é repetição de memórias quando suas ervas daninhas fossem removidas. saudade tem efeitos colaterais: viciada em olhar para trás, reservada por não ter deferências para com o possível, mortalmente orientada por transubstanciar presente em passado, mesmo com o amor: vem para fazer da noite um passado comum — diz o doente de saudade. virei contigo para fazermos um amanhã comum — diz a ferida de amor. ela não ama o passado e quer esquecer o fim da guerra. Ele tem medo do amanhã porque a guerra não acabou, porque não quer ficar mais velho. saudade é uma cicatriz no coração, uma digital da terra no corpo. mas não se sente saudade de feridas, não se sente saudade de dores e de pesadelos, senão do que já era antes, de um tempo sem dores senão os prazeres básicos que derretem o tempo, como cubos de açúcar em xícaras de chá, saudade de um tempo de conceitos paradisíacos. ela é um mal sazonal, não contagioso nem letal, mesmo se atingir o corpo em grau de epidemia. saudade é o chamado flauta a flauta, para reorientar os cascos dos cavalos da montaria. ela é o convite para passar a noite com solitários, uma desculpa para não estar a par do passo dos passageiros nos trens, sabidos de seus endereços de destino. é ela que recolhe, para os forasteiros sonharem, a matéria translúcida de lindos nadas, e ainda lhes torra o café do despertar. e ela quase nunca chega cedo. e ela quase nunca interrompe conversas pedestres com taxistas, quase nunca faz comentários em conferências, nem em primeiros encontros entre homens e mulheres… ela é a visita da noite, que chega quando procuras teus traços no que te circunda sem que consigas encontrá-los, e quando o pardal pousa na varanda, isto parece ser o anúncio de uma terra que não amavas tanto quanto a amas agora que ela te habita. ela dava em árvores, pedras, feita remetentes de almas, ideias, brasa na língua. era ar, terra, água, feita então poema. saudade é gemer pelos direitos dos incapazes de reivindicar a força do direito perante a força de expressão… gemer de casas enterradas em assentamentos que o ausente relegou ao ausente, que o presente relegou ao ausente, como a gota primeira do exílio e dos campos de refugiados. saudade é o som de seda que sobe da amoreira, em gemidos mútuos, para quem dela sente saudade. é a convergência do que se tem ciência e do que nada se sabe(rá)… é o protesto do tempo perdido pelo sadismo do presente. saudade é dor que não sente saudade da dor. é dor que o ar fresco causa vindo de morros distantes, dor da busca da alegria perdida. mas é uma dor saudável, pois ela nos lembra que sofremos de esperança… por paixões!

LIVRO: ONZE ASTROS, tradução de Michel Sleiman

 … Rita vai partir em breve, vai deixar sua sombra

como cela branca. Onde nos encontraremos?,

suas mãos perguntaram, olhei para longe,

o mar atrás da porta, o deserto atrás do mar,

beije-me nos lábios, ela disse, e eu disse: Rita, saio de novo enquanto

tenho uva e lembrança e as estações me deixam

murmurando entre o gesto e a palavra?

O que você diz?

Nada, Rita. Imito o cavaleiro de uma canção

que fala da maldição do amor retido nos espelhos…

Que fala de mim?

E de dois sonhos num travesseiro, desentendem-se, fogem, um

puxa a faca, o outro dá instruções à flauta.

Não sei o que significa, ela diz.

Nem eu, minha língua são farpas

como o sentido a que falta mulher. E cavalos suicidam-se

no final do campo…

LIVRO: MEMÓRIA PARA O ESQUECIMENTO, tradução de Safa Jubran

Três horas. Um amanhecer montado no fogo. Um pesadelo vindo do mar. Galos de metal. Fumaça. Ferro preparando um banquete para o Ferro-Mestre e uma alvorada que irrompe em todos os sentidos antes de romper. Um rugido me expulsa da cama e me joga neste corredor estreito. Nada quero e nada desejo. Não consigo ordenar meus membros neste tumulto. Não há tempo para a cautela, nem tempo para o tempo. Se eu soubesse… se eu soubesse como organizar o acúmulo desta morte derramada. Se ao menos eu soubesse como libertar o grito contido num corpo que não é mais meu corpo, de tanto esforço despendido para se salvar da perseguição do caos ininterrupto das bombas. “Chega”, sussurro apenas para verificar se ainda consigo fazer alguma coisa que me guie e aponte para o abismo aberto em seis direções. Não posso me render a tal destino. E não posso resistir a ele. Um ferro late; outro, para ele, uiva. A febre do metal é o cântico deste amanhecer. Que esse inferno faça uma pausa de cinco minutos… depois, seja o que for! Apenas cinco minutos! Eu quase digo: “Cinco minutos apenas. Para que eu possa preparar minha única ferramenta e, em seguida, organizar minha morte ou minha vida”. Mas será que cinco minutos são suficientes? Sim, bastam para eu me esgueirar por este corredor estreito que dá para o quarto de dormir, que dá para o escritório, que dá para o banheiro sem água, que dá para a cozinha, onde estou tentando chegar faz uma hora, mas não consigo, nunca consigo.

 

 

 

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Constelação Clarice – Ensaio Palavra-Imagem com Clarice Lispector https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/24/constelacao-clarice-ensaio-palavra-imagem-com-clarice-lispector/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/10/24/constelacao-clarice-ensaio-palavra-imagem-com-clarice-lispector/#respond Sun, 24 Oct 2021 12:09:59 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/Autoria-desconhecida-sem-data.-Acervo-Clarice-Lispector-Acervo-IMS-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22546 Que Ensaio especial! Sim, todos são, mas essa exposição “Constelação Clarice” que o Instituto Moreira Salles criou é de uma lindeza sem fim. Clarice Lispector – que dispensa qualquer apresentação – e suas palavras, com trechos de muitos de seus livros e imagens de artistas contemporâneos a ela, em um diálogo afinado e poético. Um atravessamento de poesia, feminilidade e muita matéria bela. A exposição abriu ontem, 23, no IMS Paulista e fica até o fim de fevereiro. Por tudo, vale a visita. 

Um sopro de vida, de Clarice Lispector

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.” A HORA DA ESTRELA.

A hora da estrela, de Clarice Lispector
“Quando entrou com seus olhos, por um momento tive um erro de visão: a sala era essa mulher, essa mulher era a sala. Ambas se confundiam como águas da mesma cascata. Esta senhora de olhos azuis extravasados, assim como a salinha – conseguia fechá-los para dormir. E a sala? onde guardaria toda a sua claridade para dormir? Se pudéssemos por um instante desligar a sala – que sucederia? Que grande escuridão, feita de trevas mortas, se seguiria. Mas a sala não tinha onde guardar a sua claridade. Porque esqueci de dizer: o aposento tinha tal nudez, apesar dos objetos, dos móveis, das pessoas. Nesta sala: impossível esconder-se. A pessoa estava exposta.”
A BRAVATA.
Vera Chaves Barcellos (Foto: Everton Ballardin)
(Foto:Erico Verissimo)
“Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?”

A HORA DA ESTRELA

“Se a gente ficasse em silêncio – de repente nasce um ovo. Ovo alquímico. E eu nasço e estou partindo com meu belo bico a casca seca do ovo. Nasci! Nasci! Nasci!

UM SOPRO DE VIDA

Ninhos, de Celeida Tostes (Foto: Vicente de Mello)

“Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.”

A HORA DA ESTRELA

Wilma Martins

“Se me viesse de noite uma mulher. Se ela segurasse no colo o filho. E dissesse: cure meu filho. Eu diria: como é que se faz? Ela responderia: cure meu filho. Eu diria: também não sei. Ela responderia: cure meu filho. Então – então porque não sei fazer nada e porque não me lembro de nada e porque é de noite – então estendo a mão e salvo uma criança.”

A LEGIÃO ESTRANGEIRA

“Quem sou eu? perguntou-se em grande perigo. E o cheiro do jasmineiro respondeu: eu sou o meu perfume.”

UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES

Lygia Clark (Foto: Everton Ballardin)

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.”

ÁGUA VIVA.

Maria Martins (Foto: Everton Ballardin)

“Eu me dou melhor com os bichos do que com gente. Quando vejo o meu cavalo livre e solto no prado – tenho vontade de encostar meu rosto no seu vigoroso e aveludado pescoço e contar-lhe a minha vida. E quando acaricio a cabeça de meu cão – sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique.”

A HORA DA ESTRELA

Amassadinhos, de Celeida Tostes (Foto: Vicente de Mello)

“Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido.

Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo.

Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.”

O OVO E A GALINHA

Constelação Clarice
Abertura: 23 de outubro de 2021
Visitação: até 27 de fevereiro de 2022
IMS Paulista
Entrada gratuita

Para visitar a mostra, é preciso realizar agendamento prévio no seguinte site:
www.sympla.com.br/imspaulista

 

 

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Um Brasil para os brasileiros – Ensaio Palavra-Imagem com Carolina Maria de Jesus https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/um-brasil-para-os-brasileiros-ensaio-palavra-imagem-com-carolina-maria-de-jesus/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/um-brasil-para-os-brasileiros-ensaio-palavra-imagem-com-carolina-maria-de-jesus/#respond Sun, 26 Sep 2021 10:14:46 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Meada-Antonio-Obá.-Credito-Maria-Clara-VillasInstituto-Moreira-Salles-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22509 Ontem, 25, inaugurou no IMS a exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros” sobre a vida, a obra e o legado da fundamental escritora Carolina Maria de Jesus (catadora de papel e autora do clássico “Quarto de Despejo”, 1960), organizada pelo antropólogo Hélio Menezes e pela historiadora Raquel Barreto. Neste domingo, eu publico alguns trechos de inúmeros registros de Carolina Maria de Jesus. Com obras inéditas dela, entre fotografias, matérias de imprensa, vídeos e outros documentos, a exposição inclui também obras de cerca de 60 artistas que dialogam com os temas investigados por Carolina. Com seus manuscritos como fio condutor, a equipe de curadoria comenta a importância do livro: “Em Um Brasil para os brasileiros, a autora elabora narrativas biográficas e autoficcionais ao rememorar sua infância, apresentando pontos de vista de personagens que foram apagadas das narrativas oficiais escritas, majoritariamente por autores homens e brancos. Carolina faz assim um interessante contraponto aos cânones literários vigentes no Brasil.” Urgente e fundamental para estes e todos os tempos.

Mulambö
Bandeira Mulamba de Ouro, 2021
Costura em tecido. Coleção do artista. (Foto:Maria Clara Villas / Instituto Moreira Salles)

Quando eu morrer
Não digam que fui todo
Rebotalho
Que vivia à margem da vida
Digam que eu procurava
Trabalho
E fui sempre preterida

Digam ao povo brasileiro
O meu sonho era ser escritora
Mas eu não tinha dinheiro
Para pagar uma editora

Eu não tenho complexo de cor, eu gosto de ser preta. Se Deus enviasse-me branca creio que ficava revoltada. Quando leio nos jornais ‘Carolina Maria de Jesus, a preta da favela’, fico contente. Favela é lugar dos pobres, é a manjedoura da atualidade. Cristo nasceu numa manjedoura, se renascer será numa favela. O recanto dos que não podem acompanhar o custo de vida.

O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.

(Trecho proveniente do livro Quarto de despejo.)

“Um dia apoderóu-se de mim um desejo de escrever: – Escrevi – ”

– Trecho extraído do manuscrito Um Brasil para os brasileiros. Acervo Instituto Moreira Salles.
“Devemos escrever a realidade. A verdade. Revelar os fatos que córrómpem um País”

– Trecho extraído de manuscrito do arquivo Público Municipal de Sacramento.

“Inconcientemente mostre o são paulo por dentro. O universo pensava que são paulo era um atleta. Um fisico fórte. e eu apresentei suas chagas_ As favelas. A chaga moral de um país.”
– Trecho extraído de manuscrito do arquivo Público Municipal de Sacramento.
“Após a libertação dos escravos e a Proclamação da República, o que restou para o Brasil foi um saldo de analfabetos.”
– Trecho extraído de manuscrito do arquivo Público Municipal de Sacramento.

Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros
Abertura: 25 de setembro de 2021
Visitação: até 30 de janeiro de 2022
IMS Paulista
Entrada gratuita

A exposição dedicada a Carolina Maria de Jesus integra também a programação expandida da 34ª Bienal de São Paulo, que poderá ser visitada gratuitamente no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, de 4 desetembro a 5 de dezembro de 2021.

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O artista mexicano Bosco Sodi e suas obras de terra com destino cósmico https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/o-artista-mexicano-bosco-sodi-e-suas-obras-de-terra-com-destino-cosmico/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/o-artista-mexicano-bosco-sodi-e-suas-obras-de-terra-com-destino-cosmico/#respond Fri, 17 Sep 2021 10:31:10 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/645170_df501e7a88ae440aa093d0b5f8fa9f5dmv2_d_4902_3268_s_4_2-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22442 “Esse tempo da dureza das pedras, esse litocronos, não pode se definir senão como o tempo ativo de um trabalho, um tempo que se dialetiza no esforço do trabalhador e na resistência da pedra; ele se manifesta como uma espécie de ritmo natural, de ritmo bem condicionado. E é por esse ritmo que o trabalho obtém ao mesmo tempo a sua eficácia objetiva e a sua tonicidade subjetiva.” Gaston Bachelard, A terra e os devaneios da vontade.

Bosco Sodi, 1970, o “homem da terra”. Mexicano, diagnosticado desde cedo com dislexia, mergulhou nas artes plásticas inspirado pela mãe para tentar driblar sua condição. Do pai engenheiro químico, veio a admiração pelos experimentos.

“Dislexia te dá um pouco mais de liberdade de pensar e entender o mundo em pequenos fragmentos, como haikais” disse ele em nossa conversa no último sábado, 11 de setembro, pelo telefone.

Conhecido por usar materiais naturais e crus e por se apropriar da intimidade das substâncias para criar pinturas e objetos em grande escala, sua obra carrega múltiplas camadas de tempo, nas quais o destaque está mais no processo do que no resultado A impermanência e os estados porosos de cada acontecimento são sua bússola. Aos 17 anos, com o livro Wabi sabi na cabeceira, iniciou sua busca na não-busca, na atração pela natureza e pela imperfeição, se deixando atravessar pelos acidentes e pelo acaso dos materiais e dos estados da matéria-duração, respeitando seus devires e suas derivas. Tudo é transitório, incompleto e imperfeito, a perfeição é impossível e a imperfeição é o estado natural de todas as coisas.

“Acredito muito na troca de energia entre os quadros e o material. Respeito a natureza e tento entender e intensificar essa troca constante.” Bosco

Quando se mudou para Barcelona em 2001, não tinha uma linguagem própria e era sempre atraído pela matéria e nem tanto pela cor. Ainda eram pinturas planas. A cor se separava da matéria. Alguns cafés com o artista catalão Antonie Tapies abriram seus caminhos para a junção das duas em suas explosões de texturas, sentimentos e percepções. “A matéria fala por si própria” dizia Tapies.

“Por que não juntar cor e matéria e incitar o estômago e as vibrações no corpo?” Questionava-se. E assim seguiu com seu mantra, acreditando que quando há um processo sólido, há tudo que é necessário para uma obra de arte. Nessa anarquia de texturas e materiais, o melhor exemplo é sua obra Pangea, de 2010, uma reflexão sobre este grande continente numa explosão de lava em um painel de 4×12 metros, criado para o museu do Bronx.

 

A influência do budismo aplicada em todas as suas obras, traz a não dualidade, a unicidade de cada fazer e se ausenta de toda e qualquer repetição possível. Sua obra é muito mais resultado de processos intensos do que de inspirações. Ele escolhe na maioria de seus trabalhos não dar título para não sugestionar o espectador. Definido por ele como um processo xamânico, sua busca vem muito da solidão e de atuar diretamente em cada etapa do processo.

Seu diálogo afinadíssimo com a essência da matéria-prima e seu espaço as preenche de memórias únicas. A qualidade de tempo na peça, o sol, a brisa, o vento…. isso dita o resultado e é a maior aliada de sua potência, com uma estética japonesa e expressionista. Seus quadros como paisagens inventadas/topografias. São pigmentos trazidos de diferentes partes do mundo e extraídos de infinitas pedras com as histórias de seus territórios.

Colecionador de pedras de todos os cantos – assim como eu – e sem limites para aumentar sua coleção, acredita que nós somos escolhidos por elas e na energia que pulsa em cada uma. E também nas marcas de história e de tempos que nelas se acumulam para a obra-vida.

Com diferentes casas espalhadas pelo mundo e pedras e mais pedras acumuladas, em sua terra natal, Oaxaca, Bosco mantém a fundação de arte filantrópica Casa Wabi, projetada por ninguém mais ninguém menos que o gênio do concreto, o arquiteto japonês Tadao Ando. Há três anos, abriu a Casa NaNo em Tóquio. Sua conexão com o mundo oriental é longa. E não só a dele. A conexão do Japão com o México também vem de longa data. No início do século XVII, lideranças do atual Japão enviaram o samurai Hasekura Tsunenaga para a Nova Espanha para ser uma espécie de diplomata nipônico no que hoje é o México. Bosco acredita que o silêncio da cultura japonesa com o ruído dos latino americanos fomentam uma relação. Contou-me que em uma de suas exposições no Japão, um monge budista foi como espectador e seu entendimento da obra foi uma das mais bonitas. “Acho que os orientais entendem mais minha obra do que nós, do Ocidente.”

Com um discurso de novos começos e de que tudo sempre há de recomeçar e renascer, sua obra-performance-instalação “Tabula Rasa” começou ao amanhecer na Washington Square Park, em Nova York, com a instalação de 439 esferas de argila em pequena escala, terminando mais tarde quando os passantes eram convidados a levar pra casa uma delas, como parte precisa da obra.

Estas esferas foram feitas à mão pelo artista, simbolizando um dia da duração da pandemia de Covid-19. Trazendo práticas agrícolas indígenas mexicanas para os Estados Unidos, são recipientes para uma nova vida, contendo dentro delas três tipos de sementes – milho, abóbora e feijão – que sustentam e nutrem umas às outras, fornecendo um sustento equilibrado. Metáfora potente para a necessidade de cooperação e assistência mútua, essas plantas simbióticas encorajam a reflexão sobre nossa própria interdependência e confiança mútua e, crucialmente, no mundo natural que habitamos.

 

Essa e todas as suas obras trazem à tona essa efemeridade dos materiais elementares, podendo ser lapidado pelo entorno, sempre. Água, ar, fogo e terra contêm em si a própria essência da vida. A escolha de Bosco pelo barro e por pigmentos naturais, numa relação integral entre arte e terra o mantém numa linha de pensamento do devir e de um destino cósmico.

 

 

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Cartas queimadas – Ensaio Palavra-Imagem com Ana Roman, Marcelo Amorim e Nino Cais https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/05/cartas-queimadas-ensaio-palavra-imagem-com-ana-roman-marcelo-amorim-e-nino-cais/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/05/cartas-queimadas-ensaio-palavra-imagem-com-ana-roman-marcelo-amorim-e-nino-cais/#respond Sun, 05 Sep 2021 10:58:54 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/ninocais_besta_2021-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22428 Neste Ensaio Palavra-Imagem, os amigos, parceiros de vida, criativos e artistas Nino Cais e Marcelo Amorim trazem suas obras da exposição “Poema a dois | Cartas queimadas” que inaugurou ontem, sábado, no FONTE, espaço independente de arte que fundaram em 2013. Com interlocução e texto da curadora Ana Roman, “Poema a dois | Cartas queimadas” propõe reflexões sobre o corpo masculino e suas relações de aproximação e distanciamento entre violência e amor. Roman, que se dedica a curadoria e pesquisa em arte contemporânea, foi curadora assistente da mostra “Entre Construção e Apropriação: Antonio Dias, Geraldo de Barros e Rubens Gerchman nos anos 60” (SESC Pinheiros, 2018) e pesquisadora/assistente de curadoria das mostras “Ready Made in Brasil” (Centro Cultural Fiesp, 2017), “rever_Augusto de Campos” (Sesc Pompeia, 2016). Ana Roman curou diversas mostras individuais e coletivas. Na última semana, desenvolveu um texto exclusivo para o blog, pautada, além de toda a obra conjunta dos dois, pelo afeto que permeia esse encontro na arte e na vida.

Marcelo Amorim e Nino Cais, Cartas queimadas

A forma pela qual construímos a mostra Poema a dois | Cartas queimadas não me permite escrever este texto em um tom que não o pessoal. Ao receber o convite para ser interlocutora deste projeto, que parte do encontro e da relação afetiva entre Marcelo Amorim e Nino Cais, passei a habitar um emaranhado de trocas afetivas, artísticas e intelectuais que existem entre os dois artistas, parceiros de longa data e fundadores do Fonte, espaço que recebe o projeto. Descrever tais profundas relações de afeto e amizade não me parece possível. E, na tentativa de explicá-las, tomo emprestada a metáfora de Gonçalo M. Tavares, que compara trocas afetivas a próteses psicológicas. Para Tavares, as trocas afetivas são talvez as mais antigas próteses que podem existir e são uma condição de nossa vida social. A fisiologia destas próteses é transparente, porém, elas guardam em si e arquitetam uma rede de indícios, constituída por objetos brutos ou sólidos, como fotografias, pequenos objetos e cartas. Uma parte desta rede formada em torno das trocas entre  os dois artistas é encontrada nos próprios trabalhos. 

mãos de pedra

Nino Cais e Marcelo Amorim dividem o interesse pela saturação de imagens e de objetos no mundo contemporâneo. Alguns destes artefatos imagéticos e físicos nos abordam involuntariamente e nos deixam em um estado de indiferença, sobretudo quando inundam nosso cotidiano em um fluxo contínuo, ininterrupto e denso. Os dois artistas interpelam, com operações poéticas distintas, este fluxo, produzindo outros significados e sentidos. Na exposição reunimos uma pequena amostra destas operações de desvio, nas quais os dois artistas tensionam papel da imagem nas pedagogias e processos de constituição de masculinidades contemporâneas. 

Rocky marciano, Marcelo Amorim

Em vídeos, colagens, pinturas e esculturas, a figura masculina se faz presente a partir de fragmentos, índices e alegorias. Nos momentos nos quais potencialmente aparece em sua totalidade, tal figura é desconstruída pelo procedimento de trabalho dos artistas: não parece interessar, para eles, quem são os sujeitos da representação, mas o modo pelo qual elas carregam, em seus corpos, as marcas das práticas disciplinares e dos atos discursivos que constituem as políticas de gênero. A repetição garante a existência do gênero e, somente em sua exortação, ela pode ser desmascarada como relação social (ou seja, como construção e como dominação). A repetição é, ao mesmo tempo, a condição de possibilidade e eficácia da política de gênero, e ainda é a que a faz falhar. É na repetição incoerente, ininteligível, inadequada e defasada em relação ao performático ideal, que reside a sua possível subversão. Subverter a performatividade do gênero joga com a relação entre o que é dito e o que se diz: performa-se de maneira incoerente e ininteligível aquilo que se diz que eu sou e aquilo que eu digo que sou. As poéticas dos dois artistas aqui reunidos colocam-se diante destas repetições e lacunas do dizer quem sou.

Indefesos, Marcelo Amorim

A individualidade da forma pela qual eles ocupam estas lacunas deve ser também ressaltada. Nino Cais mergulha em uma história dos objetos e constitui uma espécie de iconografia de certa sexualidade viril. Já Marcelo Amorim traz à tona uma certa banalização da violência que constitui a sociabilidade masculina. O que salta aos nossos olhos na poética dos dois artistas são, para além dos corpos violentados e sexualizados, as marcas da realização das expectativas de gênero. Somos lembrados, por exemplo, de uma potência de agir socialmente identificada com o masculino e que imprime sua marca no corpo de um outro e que, perante um certo sofrimento obsceno deste outro, torna-o também objeto de um certo fascínio fetichista.

Em Poema a dois|Cartas queimadas, os dois artistas nos convidam a percorrer afetiva e pessoalmente uma reflexão sobre as políticas de gênero, tal que o intrincamento entre esferas pessoais e públicas é um dos pontos de chegada possíveis diante do universo de sentidos construído na mostra. A interlocução com os artistas durante o processo de concepção da mostra foi descadeador, em mim mesma, de uma outra possibilidade de imergir sobre o universo das identidades não hegemônicas, sobre sua potência de ação e sobre as violências que se inscrevem e estão marcadas em nossos corpos. 

Chorão, 2021, Nino Cais

Visitação: 8 de setembro a 2 de outubro das 14h às 19h

(agendamento pelo email residenciafonte@gmail.com)

entrada: gratuita

Rua Mourato Coelho, 751 – Vila Madalena, São Paulo

instagram.com/@residenciafonte

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Também guardamos pedras aqui – Ensaio Palavra-Imagem com Luiza Romão https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/08/29/tambem-guardamos-pedras-aqui-ensaio-palavra-imagem-com-luiza-romao/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/08/29/tambem-guardamos-pedras-aqui-ensaio-palavra-imagem-com-luiza-romao/#respond Sun, 29 Aug 2021 13:42:51 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Captura-de-Tela-2021-08-29-às-10.39.21-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22419 Para esta edição do Ensaio Palavra-Imagem, convidei a poeta e atriz Luiza Romão para interagir com imagens que fiz na Armênia nos últimos 15 dias. A ideia de convidá-la surgiu quando vi o título de seu novo livro: “Também guardamos pedras aqui” (Editora Nós). Conversamos um pouco sobre pedras, ruínas e decidimos que as suas palavras com as minhas imagens recentes fariam sentido juntas. Ela também é autora de “Coquetel Motolove” e “Sangria” (ambas pelo selo Doburro) e investiga as fronteiras entre poesia, performance e cinema. Além disso, participou de antologias como “Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta” (Editora Planeta); “Antifa: Coleção Slam” (Autonomia Literária) e “29 poetas hoje” (Cia das Letras). Atualmente, Romão desenvolve mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP) estudando voz, poesia e slam. Quanto a mim, tenho uma pesquisa de anos sobre o território-Armênia e seus desdobramentos em cicatrizes, fronteiras, montanhas e ancestralidade. A união dos nossos trabalhos promove uma combinação de existências, de lugares, do Cáucaso ao Brasil, das pedras que guardamos aqui, com as pedras que nos guardam por lá.

 

epílogo

ditas as palavras todas ou alguma

sopro agarrado à glote com desejo

de voz suspensas as refregas borra

aparente no átimo da página virada

a cabeça pendida diminuta quimera

só elas restam elas rubras colossais 

 

herói algum lhe tocaria os cabelos

herói algum lhe encurralaria a noite

herói algum até que

 

medusa-górgone-mulher-animal-celenterado

 

sussurro através das lascas

ler na poeira os arquivos

do ontem aprender a quebrar

pedra com os olhos

 

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Céu nublado na terra arrasada – Ensaio Palavra-Imagem com Thiago Rocha Pitta e Pedro Cesarino https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/07/18/ceu-nublado-na-terra-arrasada-ensaio-palavra-imagem-com-thiago-rocha-pitta-e-pedro-cesarino/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/07/18/ceu-nublado-na-terra-arrasada-ensaio-palavra-imagem-com-thiago-rocha-pitta-e-pedro-cesarino/#respond Sun, 18 Jul 2021 10:00:29 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/The-clopen-door-2-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22385 Neste Ensaio, temos Thiago Rocha Pitta e Pedro Cesarino, dupla já estabelecida na Casa Triângulo. Na exposição “Nigredo”, primeira individual de Thiago na galeria, ele explora por meio de vídeos, esculturas e pinturas a relação do homem com a natureza e o tempo. Sempre de maneira meditativa, o artista captura fenômenos naturais por meio de técnicas e gestos simples e, ao mesmo tempo, históricos. Acompanhadas pelas palavras de Pedro, as obras de Thiago estimulam o espectador a tomar a frente em relação às situações que lhes são expostas, como na obra “The cloopen door” que faz referência ao incêndio no Museu Nacional, em 2018. Thiago, além de exposições em muitos cantos deste mundo, tem suas obras presentes em coleções públicas como Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Hara Museum of Contemporary Art de Tóquio, Museum of Modern Art -MoMa de Nova York, Maison Européenne de la Photographie de Paris, Museu de Arte Moderna de São Paulo, entre outras. Pedro, graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, mestre e doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ, desenvolve pesquisas em etnologia indígena, com ênfase em estudos sobre xamanismo, cosmologia, tradições orais, tradução e antropologia da arte. Os dois juntos em uma relação extremamente alinhada e poderosa, provocam inquietações sobre ser e estar neste mundo.

“É triste e sem remédio a sorte dos mortais…/ Esboça-se a ventura em traços imprecisos,/ os males chegam logo, como esponja úmida, / e num instante apagam para sempre o quadro”1. Com essas palavras, a profetisa Cassandra vaticinava o assassinato de Agamênon e a destruição de sua casa real, maculada por crimes pretéritos. A dinâmica trágica, tão bem explicitada pela voz dos profetas, implica na negação da herança criminosa por sujeitos que se imaginam senhores de seus atos, embora não passem de joguetes de forças maiores que, cedo ou tarde, cobrarão pelo dolo causado. Thiago Rocha Pitta prenuncia em suas obras o avanço da catástrofe que, antes de 2020, já mostrava os seus sinais. Na noite de 2 de setembro de 2018, o incêndio do Museu Nacional surgia como aviso sinistro do que estaria por vir nos atuais tempos de pandemias virais e fascistas. Embora recente, o incêndio é resultante de outros tantos crimes acumulados (e jamais devidamente expiados) desde que as naus portuguesas aportaram por aqui. É esse acúmulo que parece impor a Thiago uma inflexão histórica nas obras aqui reunidas, que elaboram, contra o pano de fundo do não humano já explorado pelo artista em outros trabalhos, os impactos do cenário de terra arrasada em que vivemos.

O apodrecimento da terra e de seus corpos, consequência direta do saque colonial, implica na passagem pela via obscura, cujo portal é iluminado pela falsa luz de um sol refletido – a luz lunar. Encontramo-nos diante dos umbrais, nas fronteiras tornadas indiscerníveis pela coloração crepuscular que dissolve os corpos, toma de assalto a respiração, empurra nossos ânimos para as profundezas de uma cova que julgávamos não ter escolhido. Saturno, com sua densidade melancólica, é quem preside o nigredo, a putrefação e a morte envolvidas nesta primeira etapa alquímica. Sua contrapartida é a imagem de uma deusa da água que emerge do mar, igualmente noturno, mas redimido pelo maravilhoso. O céu que a recebe e que é seu próprio corpo, contudo, não é aquele infestado pelas chamas que tragam dos subterrâneos o carbono antigo, permanentemente transformado em lucro – essa suprema perversão alquímica de que somos prisioneiros. A bem da verdade, a redenção pelo maravilhoso não será possível enquanto o crime não for expiado. Lembremo-nos: no dia 2 de fevereiro, cultua- se na Bahia a única grande festa popular brasileira integralmente dedicada a uma deusa- mãe, e cujo nome permanece sendo de origem africana: Yemanjá.

As séries melancólicas de Thiago Rocha Pitta, se bem que prenunciem os crimes e seus efeitos deletérios sobre um tempo cada vez mais incerto, o fazem a partir do que excede e limita o humano. Eclipses são avisos de tempos sombrios, dir-se-ia, mas poderiam muito bem não ser nada disso. Afinal, porque tais fenômenos precisariam figurar como imagens de nossas relações internas? Por que deveriam de alguma maneira significar? Eclipses são pura exterioridade, a indicar os paradoxos de um pensamento que não consegue sair de si mesmo. Os presságios que eles supostamente transportam poderiam ser apenas projeções de um sujeito desesperado sobre aquilo que lhe é completamente alheio, ou então mensagens realmente emitidas por fenômenos que nos escapam. É nessa ambiguidade que reside a sua potência, pois não se pode decidir se os augúrios são expectativas nossas ou se, ao contrário, são impostos de fora para designar nossa infeliz condição. Deve haver, portanto, alguma correlação entre as duas posições para que o sentido se torne possível, ou então estamos afundados em um horizonte de fenômenos indiferentes que não tardarão por apagar os traços imprecisos de nossas angústias. Uma porta não estaria aberta ou fechada se o fogo já tivesse corroído o seu batente. Conquanto insistimos em ser essa estrutura de contenção, não temos como escolher entre as duas alternativas.

Um filósofo dizia que apenas a contingência absoluta, com a qual o tempo coincide, é que designa o possível, essa dimensão que em muito escapa ao que é pensável. Ora, aquilo que extrapola o pensamento é, também, o que transborda o humano, mesmo quando este imagina ser capaz de controlar o que o excede. O saque, derivado de tal ilusão do controle, termina por conduzir à catástrofe, uma espécie de vingança do possível com relação às pretensões do pensamento. A extração do carbono pelas refinarias se quer interminável, feito incêndio perpétuo a corroer o céu da Baía de Guanabara. Mas o tempo a dissolverá, junto com os desfeitos que ela propiciou ao criar este mundo possível que nos habita. Um meteorito que antes caiu sobre essa terra agora dela se afasta – por desgosto ou por indiferença, como saber? Se tal hesitação fundamenta dilemas filosóficos que parecem aqui encontrar uma potente expressão estética, ela não serviria entretanto para desviar o foco do que, mais especificamente, nos compete: não esquecer que a justiça é o lume em meio ao céu nublado pelos incêndios.

1 Ésquilo, Oréstia. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990. Tradução de Mário da Gama Kury

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Ensaio sobre nada – Ensaio Palavra-Imagem com Carola Saavedra e Ismail Zaidy https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/07/04/ensaio-sobre-nada-ensaio-palavra-imagem-com-carola-saavedra-e-ismail-zaidy/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/07/04/ensaio-sobre-nada-ensaio-palavra-imagem-com-carola-saavedra-e-ismail-zaidy/#respond Sun, 04 Jul 2021 09:35:26 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/Copiedesora-0201-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22346 Convidei a escritora brasileira nascida no Chile, Carola Saavedra para mergulhar com palavras nas imagens do marroquino Ismail Zaidy. Inspirada por Clarice, Cortázar e Bolaño, Saavedra é autora dos romances Toda Terça (2007), Flores azuis (2008, que ganhou o prêmio de melhor romance pela APCA), Paisagem com dromedário (2010, prêmio Rachel de Queiroz), O inventário das coisas ausentes (2014), Com Armas Sonolentas (Companhia das Letras) e acaba de lançar “O mundo desdobrável” pela editora Relicário. O fotógrafo Ismail Zaidy é autodidata. Com fotografias silenciosas e com elementos minimalistas de sonho inspirados em sua cultura e vida cotidiana, pretende minimizar os estereótipos associados ao seu país, além de criar imagens esteticamente muito sublimes e potentes.  O encontro entre os dois foi super azeitado e rendeu um texto que nos faz refletir sobre a vida, a morte e o nada.

 

 

Ensaio sobre nada

 

Cada vez me afasto mais de mim. Não é algo que me incomode, essa distância. Ao contrário, encaro a minha ausência com grande alegria. Não mais precisar existir. Ao menos não dessa maneira insistente. Histriônica. Existir como quem pula gritando no abismo, huaaaaaaááá. Existir em furta-cor. Não, agora apenas uma existência mínima. Existo minimamente, em silêncio. Caminho imperceptível. Não, não é a morte, que a morte é uma espécie de escárnio. Falo de outra coisa.

Leio os cartazes nas ruas:

Encontre o seu verdadeiro eu

Ganhe auto-estima

Ame-se

Como conseguir tudo o que você sempre desejou

Trago o seu amor em três dias

Uma cigana lê a minha mão. Ela diz, que estranho, nunca vi nada assim, essa mão não tem futuro. Também não tem passado. O que faço, eu lhe pergunto. É preciso desenhar novas linhas. A cigana vai embora. Eu pego uma caneta e desenho um contorno, depois linhas na palma da mão, a linha da vida, a linha do destino, do amor… desenho símbolos indescifráveis sobre a linha do amor.

Pronto.

Passam-se três dias e três noites.

Já não me amo. Para horror de muitos. Me deixo ir. Olho para dentro de mim mesma e não encontro nada. O âmago. Olho para o âmago e o sol brilha intenso sobre os meus olhos. Feito pequenos brilhos numa pedra. Dentro da pedra não há escultura, dentro da pedra não há nada, apenas espaço vazio por onde enxergo a paisagem, o vento que sopra a copa das árvores, as águas de um rio, as estações do ano e o tempo que volta e volta e volta. Dentro da pedra há somente pedra ao redor de tudo o que há. Mundo. Não, não é a morte. Ao contrário, é a vida.

 

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Ontem, Hoje, Amanhã – As potências fabulosas de José Damasceno no tempo e no espaço https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/06/17/ontem-hoje-amanha-as-potencias-fabulosas-de-jose-damasceno-no-tempo-e-no-espaco/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/06/17/ontem-hoje-amanha-as-potencias-fabulosas-de-jose-damasceno-no-tempo-e-no-espaco/#respond Thu, 17 Jun 2021 09:05:45 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/método-para-arranque-e-deslocamento-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22310 — A quem mais amas tu, homem enigmático, dizei: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?

— Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.

— Teus amigos?

— Você se serve de uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhecido.

— Tua pátria?

— Ignoro em qual latitude ela esteja situada.

— A beleza?

— Eu a amaria de bom grado, deusa e imortal.

— O ouro?

— Eu o detesto como vocês detestam Deus.

— Quem é então que tu amas, extraordinário estrangeiro?

— Eu amo as nuvens… as nuvens que passam lá longe…

as maravilhosas nuvens!

Charles Baudelaire

Condensador Cromático, 2021 (Foto: Filipe Berndt)

Quando me preparei para o papo com o artista José Damasceno, eu tinha em mente alguns pontos formais de sua obra, conceitos já trabalhados e conhecidos por todos que a admiram. Como sempre, criei um mapa para nossa conversa com palavras e conceitos soltos. No primeiro instante, fomos atravessados por potências fabulosas de uma fala complementar a outra e, mais do que uma entrevista, devaneamos e trocamos os afetos e as linhas de fuga que compreendem a arte e os dias que habitamos.

Um dos maiores nomes da arte brasileira, desde o início dos anos 1990, Damasceno teve sua obra exposta em importantes instituições como o Museu de Arte Contemporânea de Chicago, o Reina Sofia em Madrid e o Museu de Arte Moderna em São Paulo, bem como nas Bienais de Veneza, Sydney e São Paulo.

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

 

 Comecei com uma frase da Suely Ronik que diz: “Cartografar, portanto, não é criar mapas, desenhar o visível, e sim acompanhar a latitude e a longitude das intensidades dos afetos, marcar e remarcar a multiplicidade rizomática dos movimentos.” E ele logo me trouxe um poema do Baudelaire e me contou sobre sua exposição no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia em  Madrid que se chamava “coordenadas e aparições”, em 2008.

“Nove coisas aconteciam no museu todo e me perguntei: qual era o sentido mais essencial da ideia de espaço, que possa defini-lo? Seria a existência de duas coordenadas diferentes. O espectador percorria o museu e ia identificando uma trajetória, entendendo uma certa topografia, um espaço que precisava ser percorrido. Depois me dei conta que isso é o que faço. Na pinacoteca – a exposição ‘Moto-contínuo’ fica em cartaz até 30 de agosto, com curadoria de José Augusto Ribeiro – você tem um intervalo de tempo considerável e ao longo desse processo foram também estabelecidas coordenadas que são as obras e isso vai criando espaço. Ele vai sendo descoberto a medida que vai sendo inventado.”

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

Um projeto como esses é uma oportunidade de repensar lugares, percursos e posições, bem como a localização da arte e a sua relação com o espectador. Damasceno é mais um explorador e sua missão é iluminar e descobrir esses entre espaços, com o desafio intermitente da compreensão do mesmo: suas qualidades, propriedade e mistérios. Uma microfísica do imaginário.

Para ele, o tempo é um dos mistérios insondáveis e nós somos o tempo. E a obra de arte possui um tempo próprio, particular que não está subjugado a uma questão cronológica e usual. Carrega todo um legado poético, latente e vivo. Cada contato com uma obra é único, se difere entre o próprio tempo do espectador, o espaço que habita e o que carrega em si de afeto. “Literalmente a mostra na Pinacoteca é uma retrospectiva, reunindo diferentes tempos meus e das obras, com suas particularidades e circunstâncias. Existe uma questão de vizinhanças que é surpreendente”, comenta ele.

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

“Você tá me dando onda, Cassiana. Já estou querendo responder tudo”.

Em sua obra “Organograma” com as palavras ontem, hoje e amanhã, ele sugere que cada um experimente esse organograma na exposição. Parece que a gente vai criando uma espécie de tecido, uma topografia onde as coisas vão acontecendo num fluxo contínuo, orgânico e misterioso. “Uma coisa que me acompanha e é muito presente na minha vida são meus livros e os tempos que nele existem. Uma biblioteca é um lugar espiritual por excelência e você escolhe ter uma relação com todas aquelas circunstâncias e tempos diante de sua atenção. Eu levo em consideração o legado poético, a fim de experimentá-lo, compreendê-lo e vive-lo.”

“Por exemplo, nós agora estamos conversando. E temos vários encontros e conversas ao longo da vida e cada uma tem seu tempo e seu lugar próprio. Aquele lugar que ela ocupou existe para sempre. Tenho experimentado isso ao longo da vida, em me dar conta disso…”

Monitor Líquido, 2021
(Foto: Filipe Berndt)

José me conta que o enigmático é uma condição incontornável e que vivemos em um mundo que não compreendemos e isso faz parte do ímpeto que nos faz mover cada coisa, despertados pela curiosidade, atenção, com a mente sob o signo da interrogação, como dizia José Ortega y Gasset. Ao mesmo tempo que nos entregamos aos acasos, aos encontros e aos fluxos misteriosos e indomáveis. É essa a presença que ele considera imediata de um mistério movente. “E quando você me pergunta da essência da matéria existem várias formas de pensar isso. Em relação a arte, é um elemento essencial quando aquilo que é inorgânico ganha vida e também você pode pensar uma espécie de um novo tipo de densidade. Uma densidade que compreende a ideia também. Pensar onde o objeto e ideia se confundem. Isso eu creio que traz um sentido da graça e traz vida”.

Na obra “cinema elástico”, composto por pregos e elástico, por exemplo, uma série de hipóteses se apresentam e o espectador não sabe bem o que acontece a sua frente. São micro tensões que tem um sentido de uma espécie de coisa pré-formal, estrutural,  anterior a uma narrativa, de forma bastante elementar. É uma obra que acontece no entre. “Esse ‘entre’ me interessa muito, esse lugar de passagem, de correspondência me interessa bastante. Entre o mundo material e o espiritual. Existe sempre essa tentativa de compreensão que traz uma espécie de  comunicação de um lugar ao outro”.

Solilóquio, 2001 – Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021 (Foto: Jamerson Lima)

Ele tem um interesse especial nesse espaço poético de trânsito entre nós, da imaginação. O background de arquitetura o acompanha mesmo que de forma silenciosa. Exercícios para que algo aconteça nesse espaço entre nós. Pensar que esse lugar real pode ser. O espaço como uma forma de experimentar e celebrar a arte.

Existe sempre o acaso num espaço expositivo, segundo ele. Reflete que o mundo é imenso ao nosso redor, inclusive em nossos corpos e não temos consciência absoluta disso. O inconsciente existe e o acaso idem. Portanto, é algo que precisamos considerar em nossas vidas, em nossas ações e processos, permitindo as questões todas que surgirem e ir dançando conforme as situações que se apresentam. “As vezes em determinado projeto tem uma execução extremamente fiel ao que foi planejado e tem vezes que há imposições onde não há escolha”.

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

Para ele, é importante reconhecer, considerar e valorizar a relação entre acaso e método, chance e arbítrio para perceber e buscar as soluções. A escultura, por exemplo, funde espírito e matéria, objeto e ideia, transformação do inorgânico em algo vivo, a substância em espírito. “Ser livre é ser responsável”, citou ele com essa frase de Maria Zambrano.

“Nós, nesse início do século XXI, sabemos que devemos nos tornar mais lúcidos, mais espirituais e mais responsáveis do que nunca e nós sabemos, ao mesmo tempo, que nunca a humanidade esteve tão cega, embrutecida e irresponsável. Nós o sabemos porque constatamos que quase toda a vida social é controlada por um populismo industrial que destrói a consciência individual e coletiva”. Bernard Stiegler

“A crise global neoliberal deflagra em escala exponencial desamparo e precariedade. A pandemia esgarça, precariza e desestrutura os laços e as relações sociais. Vivemos uma tragédia político-sanitária, uma tragédia simultânea, um desafio mortal literalmente, penso sempre diante de circunstâncias tão hostis e ameaçadoras em grande escala numa alternativa viável em termos de uma micropolítica e deliberadamente trabalhar para melhorar meu entorno, cuidar daquilo que esteja a meu alcance em relação aos demais e ao meu habitat psíquico e também espacial onde prevaleçam respeito, consideração e afeto e assim fortalecer o sentido de solidariedade. Está tudo em aberto e devemos repensar o sentido de união e procurar produzir esclarecimento e discernimento”.

Exposição José Damasceno: Moto-contínuo, 2021. (Foto: Isabella Matheus)

É preciso prezar o respeito, a consideração e o afeto, ligando um ponto a outro pelo amor. Como numa teia que vai ganhando corpo à medida em que se conecta em um fluxo contínuo de encontros, trocas, silêncios, essências, acasos e precisão. Muita precisão para nos entrelaçarmos nesse embaralhado estético, dissonante e que se deixa ser afetado pelo outro e pelo espaço pulsante.

20.04.2017 – RE:PUBLICA – Intervenção do artista plástico José Damasceno nas ruas das cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Av. Presidente Vargas, Centro, Rio de Janeiro. (Foto: PAULO BARRETO)

“O amor nos liga às coisas. Trata-se de uma real conexão, uma ampliação da individualidade que se relaciona e absorve essas outras coisas amadas. Aquilo que amamos se torna imprescindível e que não podemos viver sem sua presença e logo as propriedades do que amamos se tornam assim também para nós e então o amor vai ligando uma coisa a outra em uma estrutura essencial”. José Ortega y Gasset.

“Tenho orgulho do que você está me trazendo. Dá uma esperança para a gente… você está apostando naquilo que te move: afeto e respeito. Gostei de a gente ter trocado”. Disse-me ele, terminando nossa conversa.

Obrigada Damasceno, por esta conversa tão potente. <3

Carimbo, 2021

 

 

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