Entretempos https://entretempos.blogfolha.uol.com.br Artes visuais diluídas em diferentes suportes, no Brasil e pelo mundo Sun, 28 Nov 2021 14:42:12 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Esquecer, não lembrar e reimaginar – Ensaio Palavra-Imagem com Hoda Barakat, Joana Hadjithomas e Khalil Joreige https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/11/07/esquecer-nao-lembrar-e-reimaginar-ensaio-palavra-imagem-com-hoda-barakat-joana-hadjithomas-e-khalil-joreige/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/11/07/esquecer-nao-lembrar-e-reimaginar-ensaio-palavra-imagem-com-hoda-barakat-joana-hadjithomas-e-khalil-joreige/#respond Sun, 07 Nov 2021 10:22:31 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/Captura-de-Tela-2021-11-03-às-14.20.47-320x213.png https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22577 Neste Ensaio, seguindo o especial Oriente Médio, proponho o diálogo entre as palavras da escritora libanesa Hoda Barakat, com a dupla Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (ambos nascidos em Beirute em 1969). Cartas de 6 personagens do livro “Correio Noturno”, de Barakat conversam com as fotografias do projeto  “Wonder Beirut” da dupla. Cartas que nunca chegam ao seu destino, nem sequer são enviadas… mas se conectam e se costuram umas às outras na formação deste impactante romance.

#21 Beaches in Beirut

Notas sobre “Correio Noturno”, de Hoda Barakat

Por Geraldo Adriano Campos (Coordenador do Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Federal de Sergipe)

Hoda Barakat é uma escritora libanesa, nascida em Beirute, em 1952. Desde o final da década de 1980 vive em Paris, mas mantém o árabe como a língua com a qual produz suas obras. Além de romances, publicou peças, um livro de contos e um livro de memórias. Seu livro “Correio Noturno”, lançado em 2017 e premiado com o “International Prize for Arabic Fiction”, foi publicado no Brasil em 2020 pela Editora Tabla, com tradução da professora Safa Jubran.

O livro é composto de seis cartas, cujos autores e autoras estão, cada um à sua maneira, buscando diferentes tipos de refúgio. O entrelaçamento entre as cartas põe em evidência subjetividades ativadas no contato com fragmentos da memória alheia. Por isso, ainda que as missivas dos personagens de Barakat nunca atinjam seus reais destinatários, produzem naqueles que as encontram o desejo de escrever, criando uma continuidade narrativa pela costura de traumas individuais e coletivos de migrantes e refugiados do mundo árabe contemporâneo.

Entre diversos outros aspectos, a obra nos convoca a refletir sobre o limiar do que um corpo é capaz de suportar. Não é, afinal, um livro sobre lugares, mas sobre corpos e experiências.

A indeterminação de países de origem e destino dos personagens não é, de tal modo, aleatória. Sabemos apenas que os narradores são árabes, o que parece ser suficiente para situá-los na atmosfera de deslocamento que a autora nos oferece. As forças políticas, econômicas, sociais que impulsionam os deslocamentos de imigrantes e refugiados na região estão presentes no livro, mas não como elemento literário central.

Os personagens de “Correio Noturno” transitam por fétidos quartos de hotel, porões de tortura, bordéis, campos de refugiados, aeroportos. São pessoas que vivem nas ruas ou em condições de solidão e vulnerabilidade em países estrangeiros. Há sempre uma espera que se aproxima com a noite, seja a expectativa de um encontro ou de uma possibilidade qualquer de redenção, que não se realiza.

O tom confessional das cartas é atravessado por torturas realizadas pelo Estado, abandono, estupros, assassinatos, guerra, homofobia. Em cada descrição, é nítido que a experiência do corpo estrangeiro é produzida em suas articulações de gênero, como já recordara a historiadora Margot Badran em seu texto “Foreign Bodies: Engendering Them and Us” (2003). Os relatos sobrepõem diferentes formas de violência relacionadas a gênero e sexualidade, que se expressam nos vínculos estabelecidos com sistemas patriarcais e na proliferação de corpos violados. Assim, lidas em conjunto, as cartas compõem um mosaico de experiências de corpos que se deslocam entre fronteiras, físicas e simbólicas.

Diante da possibilidade de narrar essas experiências, chama a atenção o fato de que as cartas são elaboradas em “não-lugares” (para usar um termo do antropólogo Marc Augé) – o hotel, o aeroporto, o campo de refugiados – locais pensados como pontos de passagem e não de permanência, logo, incapazes de produzir identidades.

As narrativas do livro não comportam, portanto, apenas histórias de vidas dilaceradas. É, sobretudo, a relação com o espaço que está fraturada (os dramas dos personagens árabes imigrantes indocumentados em países europeus são exemplos disso).

Convém lembrar também a importância do gênero epistolar para os estudos migratórios e para a produção artística relativa ao tema, dada a característica da carta como documento privado que sugere uma aproximação particular entre a esfera íntima do cotidiano e a História.

O ato de falar a partir dos fragmentos de memórias alheias (mesmo que seja de personagens ficcionais), como esforço de produção de sentido histórico face a grandes tragédias, é um tema familiar à produção estética contemporânea do Líbano. As interrupções e ruínas que fizeram emergir os mecanismos políticos de produção da amnésia social no Líbano após a Guerra Civil são parte importante da trajetória da geração que desenvolve seus trabalhos a partir dos anos 1990. São artistas-pensadores cuja reflexão é marcada por uma ênfase na problemática relação entre arquivos, imagens, desaparecimento e memória coletiva. Na lista de obras de artistas libaneses que se organizam ao redor da potência subversiva de conectar-se com as memórias alheias podemos pensar em “Wonder Beirut” (1997-2006) de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (ambos nascidos em Beirute em 1969), no projeto do “Atlas Group” (1989-2004) de Walid Raad (nascido em Chbanieh em 1967) e no filme “Yamo” (2011), de Rami Nihawi (nascido em Beirute em 1982), entre muitos outros exemplos.

Por um lado, o livro de Hoda Barakat nos convida a observar como a narração do trauma pela escrita pode se tornar um refúgio para personagens deslocados e marginais em busca de alguma redenção possível. Por outro lado, faz-nos pensar no belíssimo ensaio “Atlas” (2012), de Antonio Tabucchi, quando o escritor nos recorda que as representações espaciais sempre podem mudar, assim como as fronteiras entre países. As únicas fronteiras que não mudam, diz ele, são “as do corpo humano e o que este sente quando são violadas”. Por isso, tomo emprestado o fragmento do poema “Torturas” de Wislawa Szymborska, que Tabucchi usa para concluir seu ensaio.

“Nada mudou./O corpo é doloroso,/ tem que comer e respirar, e dormir,/tem uma pele fina e, logo abaixo, sangue;/ tem uma considerável quantidade de dentes e unhas,/seus ossos são frágeis, suas articulações maleáveis./ Nas torturas, se descobre tudo isso.”

#10 Sea Shore
#6 Rivoli Square

Trechos das cartas interpretados em árabe por Safa Jubran com tradução em português:

Carta 1 – Um imigrante ilegal escreve para sua amante em um pequeno apartamento.

“Aquele anoitecer ficou na minha mente, não importa que horas eram do dia. Era igual ao anoitecer quando o sol desaparece no horizonte, quando todas as criancinhas choram, todos os bons românticos ficam melancólicos, de Ihsán Abdel-Quddus a Rilke. Uma tristeza inexplicável que envolve as delicadas e belas criaturas.”

https://www.youtube.com/shorts/M_gkPLyT0yM

Carta 2 – Uma mulher madura redige sua carta enquanto espera um antigo amor em um quarto de hotel.

“Não estou aqui, neste quarto, para voltar para trás nem para vê-lo ou ver com você como eu era jovem ou o quanto a primavera era bonita e intensa no país. O país que já era, que caiu e quebrou como um grande vaso de vidro. Seria trágico, pura tristeza e grande amargura.”

https://www.youtube.com/shorts/zKtmueoXZqQ

Carta 3 –  Um ex-torturador em fuga escreve para a mãe.

“Esse é também um homem sacrificado pelo destino, a quem nem Deus nem os homens perdoarão.” “Eu… acho que ainda vou pensar sobre essa carta, se envio para você ou entrego em mãos, ou se devo destruir tudo o que escrevi porque contém confissões sinceras que podem me levar à forca ou à prisão perpétua. Amanhã decido.”

https://www.youtube.com/shorts/rBvIiY3-CbU

Carta 4 –  Uma mulher escreve ao irmão para falar sobre a morte da mãe.
“Eu vou para a cozinha, preparo uma xícara de chá, paro na janela e olho para a noite, uma noite de estranha atmosfera, sem pertencer a nenhum lugar. Uma noite densa de alcatrão viscoso que gruda nas pálpebras e nas mãos. Esta não é minha vida.”
Carta 5 –  Um jovem escreve ao pai doente com quem tem uma relação complicada.
“Ninguém pode se colocar no lugar de ninguém, quero dizer, completamente no lugar do outro, até porque há um detalhe importante: meu corpo, reflexo da minha alma profunda, é diferente do seu corpo, e isso, você considera uma traição a você.”
#15 Rivoli Square
#13
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Incandescência poética – Ensaio Palavra-Imagem com Juliano Garcia Pessanha e Hiroshi Sugimoto https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/19/incandescencia-poetica-ensaio-palavra-imagem-com-juliano-garcia-pessanha-e-hiroshi-sugimoto/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/19/incandescencia-poetica-ensaio-palavra-imagem-com-juliano-garcia-pessanha-e-hiroshi-sugimoto/#respond Sun, 19 Sep 2021 10:00:08 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/059bb15c4a1a8c5644e16430a48a4032-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22475 Para esta edição do Ensaio, convidei Juliano Garcia Pessanha para estampar esta página com um trecho de seu mais novo livro “O filósofo no porta-luvas”, lançado na última semana pela Editora Todavia. Formado em filosofia pela USP, ele é autor da tetralogia “Testemunho Transiente”além de “Recusa do não-lugar”(2018), dois livros que me acompanharam nos últimos anos. Eu sabia que queria as palavras de Pessanha neste domingo, mas ainda não tinha as imagens para estampá-las – encontrar as imagens certas é sempre um caminho complexo a se trilhar. Eu mergulhei em seu novo romance, um híbrido que mistura melancolia, humor, uma certa fabulação e a observação das paixões humanas com as maiores discussões da filosofia. Com o trecho que escolhi, só conseguia pensar nas polaroids coloridas do genial artista Hiroshi Sugimoto – mestre do preto e branco – impressas em lenços da marca Hermés, no festival de fotografia “Les Rencontres d’Arles”. Entre fim de 2009 e começo de 2010, durante o inverno no hemisfério norte, ele acordou todos os dias às 5h30 para observar os primeiros raios de sol e se inundar da metamorfose das cores. “Depois de passar pelo espaço negro vazio, a luz do sol atinge e se submete ao meu prisma, refratando-se em um contínuo infinito de cores”. A combinação inusitada entre os dois sugere um portal para diferentes reflexões de uma vida toda.

Numa sexta-feira em que não haveria corrida para Santos, ele foi até o Caps. O psiquiatra havia preparado uma sala para ele. Sentaram-se uns quinze usuários do sistema, duas terapeutas ocupacionais, uma psicanalista e dois psiquiatras. Frederico começou:

“Boa tarde a todos, estou honrado com o convite. Escutei certa vez de uma sereia que eu era um doutor em condição humana. Talvez ela tenha exagerado, mas não há razão para eu não me autorizar a falar. O que vou lhes dizer é o mantra cansado que não cesso de repetir. O ser humano é um camaleão. Em geral ele gosta de tomar a coloração das coisas do mundo, pois isso lhe dá um pouco de sossego. Quando ele está esverdeado perto da folha de uma árvore, assistimos ao camaleão descansar e fechar os olhos. Não é agradável quando encontramos um camaleão tranquilo ou uma pessoa que coincide com ela mesma? Nada é melhor que tomar a cor do mundo e falar seu idioma. Caso contrário, quando não está encostado em nada, o camaleão fica exposto. Zanza sem saber quem é e fala em línguas exaltadas. O Gregório era assim. Ele proclamava: ‘Estou fora dos mapas. Sou um homem antigo. Tudo me confessa!’. “Eu achava lindo o Gregório ser um clandestino. Eu o admirava por ele não estar vestido com o uniforme dos regimes culturais. Ele escapava das coerções discursivas e não tomava parte na cena do mundo. A máquina de embalsamar esquizofrênicos não o pegava. Eu não entendia nada do humano e das suas imunizações. Nada da metamorfose dos camaleões. Para saber algo disso, é preciso partir de uma diferença. Há os camaleões que dizem sim e os que dizem não. No primeiro grupo, a sentença ‘Ah, sim, eu aceito tomar a cor desta flor ou deste tronco’ é dita sem solavanco. O aroma da flor ocupou e preencheu tanto o camaleão que ele mergulhou na sua cor. Já o que se retrai diz: ‘Eu não vou me colorir no mundo. Prefiro ficar suspenso e indeterminado. Pertenço ao nada e ao abismo’. O Gregório era do segundo grupo. No dia em que se apresentou na oficina, ele disse: ‘Dizem que sou pai-de-deus. Desde menino eu via animais em sonhos, antes mesmo de tê-los visto pessoalmente ou em fotografias’. O pai-de-deus era tão exposto e aberto que espelhava a totalidade do real. E, sem nada dentro de si, anotava o ditado das coisas. Mas o Gregório queria aterrissar e ganhar interioridade. Sei disso porque o pai-de-deus me contou que queria misturar-se com uma mulher. Ele estava apaixonado e ansiava abandonar a via negativa. O camaleão queria ganhar cor, inventando uma mulher existente. Na imagem que faço do camaleão, ele não é mera adaptação, pega a cor daquilo que torna seu. Mas a mulher tinha partido e era preciso atravessar o uivo daquele corpo desabitado. Eu me aproximei dele, publiquei seus poemas, tomávamos suco de manga na Paulista, mas eu não mergulhei na sua dor. Eu só a vesti com roupagens filosóficas. Estetizei o Gregório e, em vez de caminhar com ele no interior do grande vazio, pintei o cabelo dele de azul. Eu estava enfeitiçado pela mania de pureza e achava que quem existe na lonjura está fora do circuito da alienação. Para mim, na condição de idiota teológico, Gregório e eu éramos a incandescência poética de singularidades livres da armação do mundo. Esta palestra, meus amigos, é um pedido de desculpas. Sorte a minha não ter morrido naqueles anos de arrogância. Sorte eu estar aqui com vocês participando e sendo visto. Sou agora apenas um olho a mais. Já não vivo na distância como meta-olho. Eu estava intoxicado pela teologia da dor, de Heidegger e de Adorno: de um lado, os que conheciam o sofrimento e sabiam soletrá-lo e do outro, no andar de baixo, os iludidos, os que deviam ser liberados. Ah, amigos, meu autismo filosófico foi corrigido pela visita do mundo. Meu nariz empinado desabou e tudo o que posso fazer agora é falar-lhes da linha onto-topológica e da metamorfose dos camaleões. Não posso falar do teorema de Gödel nem da estrela da manhã, mas posso descrever as posições de quem chegou e quem não chegou na casa do mundo.”

Quando Frederico terminou, foi aplaudido. Sentiu que estava imerso naquele lugar. De fato, o rato, o bolso vazio e o corpo doente tinham-no puxado para o mundo com toda a força. Despencou da redoma-consultório e espatifou no chão. Cessou o delírio de presunção.

 

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Cartas queimadas – Ensaio Palavra-Imagem com Ana Roman, Marcelo Amorim e Nino Cais https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/05/cartas-queimadas-ensaio-palavra-imagem-com-ana-roman-marcelo-amorim-e-nino-cais/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/05/cartas-queimadas-ensaio-palavra-imagem-com-ana-roman-marcelo-amorim-e-nino-cais/#respond Sun, 05 Sep 2021 10:58:54 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/ninocais_besta_2021-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22428 Neste Ensaio Palavra-Imagem, os amigos, parceiros de vida, criativos e artistas Nino Cais e Marcelo Amorim trazem suas obras da exposição “Poema a dois | Cartas queimadas” que inaugurou ontem, sábado, no FONTE, espaço independente de arte que fundaram em 2013. Com interlocução e texto da curadora Ana Roman, “Poema a dois | Cartas queimadas” propõe reflexões sobre o corpo masculino e suas relações de aproximação e distanciamento entre violência e amor. Roman, que se dedica a curadoria e pesquisa em arte contemporânea, foi curadora assistente da mostra “Entre Construção e Apropriação: Antonio Dias, Geraldo de Barros e Rubens Gerchman nos anos 60” (SESC Pinheiros, 2018) e pesquisadora/assistente de curadoria das mostras “Ready Made in Brasil” (Centro Cultural Fiesp, 2017), “rever_Augusto de Campos” (Sesc Pompeia, 2016). Ana Roman curou diversas mostras individuais e coletivas. Na última semana, desenvolveu um texto exclusivo para o blog, pautada, além de toda a obra conjunta dos dois, pelo afeto que permeia esse encontro na arte e na vida.

Marcelo Amorim e Nino Cais, Cartas queimadas

A forma pela qual construímos a mostra Poema a dois | Cartas queimadas não me permite escrever este texto em um tom que não o pessoal. Ao receber o convite para ser interlocutora deste projeto, que parte do encontro e da relação afetiva entre Marcelo Amorim e Nino Cais, passei a habitar um emaranhado de trocas afetivas, artísticas e intelectuais que existem entre os dois artistas, parceiros de longa data e fundadores do Fonte, espaço que recebe o projeto. Descrever tais profundas relações de afeto e amizade não me parece possível. E, na tentativa de explicá-las, tomo emprestada a metáfora de Gonçalo M. Tavares, que compara trocas afetivas a próteses psicológicas. Para Tavares, as trocas afetivas são talvez as mais antigas próteses que podem existir e são uma condição de nossa vida social. A fisiologia destas próteses é transparente, porém, elas guardam em si e arquitetam uma rede de indícios, constituída por objetos brutos ou sólidos, como fotografias, pequenos objetos e cartas. Uma parte desta rede formada em torno das trocas entre  os dois artistas é encontrada nos próprios trabalhos. 

mãos de pedra

Nino Cais e Marcelo Amorim dividem o interesse pela saturação de imagens e de objetos no mundo contemporâneo. Alguns destes artefatos imagéticos e físicos nos abordam involuntariamente e nos deixam em um estado de indiferença, sobretudo quando inundam nosso cotidiano em um fluxo contínuo, ininterrupto e denso. Os dois artistas interpelam, com operações poéticas distintas, este fluxo, produzindo outros significados e sentidos. Na exposição reunimos uma pequena amostra destas operações de desvio, nas quais os dois artistas tensionam papel da imagem nas pedagogias e processos de constituição de masculinidades contemporâneas. 

Rocky marciano, Marcelo Amorim

Em vídeos, colagens, pinturas e esculturas, a figura masculina se faz presente a partir de fragmentos, índices e alegorias. Nos momentos nos quais potencialmente aparece em sua totalidade, tal figura é desconstruída pelo procedimento de trabalho dos artistas: não parece interessar, para eles, quem são os sujeitos da representação, mas o modo pelo qual elas carregam, em seus corpos, as marcas das práticas disciplinares e dos atos discursivos que constituem as políticas de gênero. A repetição garante a existência do gênero e, somente em sua exortação, ela pode ser desmascarada como relação social (ou seja, como construção e como dominação). A repetição é, ao mesmo tempo, a condição de possibilidade e eficácia da política de gênero, e ainda é a que a faz falhar. É na repetição incoerente, ininteligível, inadequada e defasada em relação ao performático ideal, que reside a sua possível subversão. Subverter a performatividade do gênero joga com a relação entre o que é dito e o que se diz: performa-se de maneira incoerente e ininteligível aquilo que se diz que eu sou e aquilo que eu digo que sou. As poéticas dos dois artistas aqui reunidos colocam-se diante destas repetições e lacunas do dizer quem sou.

Indefesos, Marcelo Amorim

A individualidade da forma pela qual eles ocupam estas lacunas deve ser também ressaltada. Nino Cais mergulha em uma história dos objetos e constitui uma espécie de iconografia de certa sexualidade viril. Já Marcelo Amorim traz à tona uma certa banalização da violência que constitui a sociabilidade masculina. O que salta aos nossos olhos na poética dos dois artistas são, para além dos corpos violentados e sexualizados, as marcas da realização das expectativas de gênero. Somos lembrados, por exemplo, de uma potência de agir socialmente identificada com o masculino e que imprime sua marca no corpo de um outro e que, perante um certo sofrimento obsceno deste outro, torna-o também objeto de um certo fascínio fetichista.

Em Poema a dois|Cartas queimadas, os dois artistas nos convidam a percorrer afetiva e pessoalmente uma reflexão sobre as políticas de gênero, tal que o intrincamento entre esferas pessoais e públicas é um dos pontos de chegada possíveis diante do universo de sentidos construído na mostra. A interlocução com os artistas durante o processo de concepção da mostra foi descadeador, em mim mesma, de uma outra possibilidade de imergir sobre o universo das identidades não hegemônicas, sobre sua potência de ação e sobre as violências que se inscrevem e estão marcadas em nossos corpos. 

Chorão, 2021, Nino Cais

Visitação: 8 de setembro a 2 de outubro das 14h às 19h

(agendamento pelo email residenciafonte@gmail.com)

entrada: gratuita

Rua Mourato Coelho, 751 – Vila Madalena, São Paulo

instagram.com/@residenciafonte

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Também guardamos pedras aqui – Ensaio Palavra-Imagem com Luiza Romão https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/08/29/tambem-guardamos-pedras-aqui-ensaio-palavra-imagem-com-luiza-romao/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/08/29/tambem-guardamos-pedras-aqui-ensaio-palavra-imagem-com-luiza-romao/#respond Sun, 29 Aug 2021 13:42:51 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Captura-de-Tela-2021-08-29-às-10.39.21-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22419 Para esta edição do Ensaio Palavra-Imagem, convidei a poeta e atriz Luiza Romão para interagir com imagens que fiz na Armênia nos últimos 15 dias. A ideia de convidá-la surgiu quando vi o título de seu novo livro: “Também guardamos pedras aqui” (Editora Nós). Conversamos um pouco sobre pedras, ruínas e decidimos que as suas palavras com as minhas imagens recentes fariam sentido juntas. Ela também é autora de “Coquetel Motolove” e “Sangria” (ambas pelo selo Doburro) e investiga as fronteiras entre poesia, performance e cinema. Além disso, participou de antologias como “Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta” (Editora Planeta); “Antifa: Coleção Slam” (Autonomia Literária) e “29 poetas hoje” (Cia das Letras). Atualmente, Romão desenvolve mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP) estudando voz, poesia e slam. Quanto a mim, tenho uma pesquisa de anos sobre o território-Armênia e seus desdobramentos em cicatrizes, fronteiras, montanhas e ancestralidade. A união dos nossos trabalhos promove uma combinação de existências, de lugares, do Cáucaso ao Brasil, das pedras que guardamos aqui, com as pedras que nos guardam por lá.

 

epílogo

ditas as palavras todas ou alguma

sopro agarrado à glote com desejo

de voz suspensas as refregas borra

aparente no átimo da página virada

a cabeça pendida diminuta quimera

só elas restam elas rubras colossais 

 

herói algum lhe tocaria os cabelos

herói algum lhe encurralaria a noite

herói algum até que

 

medusa-górgone-mulher-animal-celenterado

 

sussurro através das lascas

ler na poeira os arquivos

do ontem aprender a quebrar

pedra com os olhos

 

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Ensaio sobre nada – Ensaio Palavra-Imagem com Carola Saavedra e Ismail Zaidy https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/07/04/ensaio-sobre-nada-ensaio-palavra-imagem-com-carola-saavedra-e-ismail-zaidy/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/07/04/ensaio-sobre-nada-ensaio-palavra-imagem-com-carola-saavedra-e-ismail-zaidy/#respond Sun, 04 Jul 2021 09:35:26 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/Copiedesora-0201-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22346 Convidei a escritora brasileira nascida no Chile, Carola Saavedra para mergulhar com palavras nas imagens do marroquino Ismail Zaidy. Inspirada por Clarice, Cortázar e Bolaño, Saavedra é autora dos romances Toda Terça (2007), Flores azuis (2008, que ganhou o prêmio de melhor romance pela APCA), Paisagem com dromedário (2010, prêmio Rachel de Queiroz), O inventário das coisas ausentes (2014), Com Armas Sonolentas (Companhia das Letras) e acaba de lançar “O mundo desdobrável” pela editora Relicário. O fotógrafo Ismail Zaidy é autodidata. Com fotografias silenciosas e com elementos minimalistas de sonho inspirados em sua cultura e vida cotidiana, pretende minimizar os estereótipos associados ao seu país, além de criar imagens esteticamente muito sublimes e potentes.  O encontro entre os dois foi super azeitado e rendeu um texto que nos faz refletir sobre a vida, a morte e o nada.

 

 

Ensaio sobre nada

 

Cada vez me afasto mais de mim. Não é algo que me incomode, essa distância. Ao contrário, encaro a minha ausência com grande alegria. Não mais precisar existir. Ao menos não dessa maneira insistente. Histriônica. Existir como quem pula gritando no abismo, huaaaaaaááá. Existir em furta-cor. Não, agora apenas uma existência mínima. Existo minimamente, em silêncio. Caminho imperceptível. Não, não é a morte, que a morte é uma espécie de escárnio. Falo de outra coisa.

Leio os cartazes nas ruas:

Encontre o seu verdadeiro eu

Ganhe auto-estima

Ame-se

Como conseguir tudo o que você sempre desejou

Trago o seu amor em três dias

Uma cigana lê a minha mão. Ela diz, que estranho, nunca vi nada assim, essa mão não tem futuro. Também não tem passado. O que faço, eu lhe pergunto. É preciso desenhar novas linhas. A cigana vai embora. Eu pego uma caneta e desenho um contorno, depois linhas na palma da mão, a linha da vida, a linha do destino, do amor… desenho símbolos indescifráveis sobre a linha do amor.

Pronto.

Passam-se três dias e três noites.

Já não me amo. Para horror de muitos. Me deixo ir. Olho para dentro de mim mesma e não encontro nada. O âmago. Olho para o âmago e o sol brilha intenso sobre os meus olhos. Feito pequenos brilhos numa pedra. Dentro da pedra não há escultura, dentro da pedra não há nada, apenas espaço vazio por onde enxergo a paisagem, o vento que sopra a copa das árvores, as águas de um rio, as estações do ano e o tempo que volta e volta e volta. Dentro da pedra há somente pedra ao redor de tudo o que há. Mundo. Não, não é a morte. Ao contrário, é a vida.

 

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Como não desaparecer no gesto – Ensaio Palavra-Imagem com Laxmi Fernandez e Renate Eisenegger https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/23/como-nao-desaparecer-no-gesto-ensaio-palavra-imagem-com-laxmi-fernandez-e-renate-eisenegger/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/23/como-nao-desaparecer-no-gesto-ensaio-palavra-imagem-com-laxmi-fernandez-e-renate-eisenegger/#respond Sun, 23 May 2021 10:54:23 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/IMG_0529-1mcdcd9-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22284 Para este Ensaio Palavra-Imagem convidei a artista catalã Laxmi Fernandez para se inspirar com as imagens do ensaio “Isolamento” da alemã Renate Eisenegger, de 1973. Laxmi é uma artista em constante transformação a partir da imagem e da palavra. É difícil defini-la como escritora ou fotógrafa, já que para ela, ambos os exercícios são próximos, uma vez que é preciso saber “escrever” com a luz. Não por acaso,  graphé – “escrita” em grego – é sufixo em ‘fotografia’. Mas também é necessário saber focar e enquadrar um texto tanto quanto uma imagem. Eisenegger é uma artista do pós-II Guerra, nascida em 1949. Seu trabalho foi apresentado em exposições no Hamburger Kunsthalle e na The Photographer’s Gallery, sendo um dos grandes nomes da arte feminista. A combinação entre as duas é potente, viva e provoca um isolamento do ser e do estar.

La autora, Renate Eisenegger, nombró “Aislamiento”en 1972 a esta secuencia de 8 imágenes en las que, una mujer va perdiendo progresivamente más sentidos y condiciones para poder expresarse. Hasta (desparecer) aparecer cubierta con las manos pegadas a su cara con cinta adhesiva.

Observo esta última imagen 50 años después  de su creación, y en como la palabra aislamiento le ha cubierto de nuevo la cara con otra capa de significado. Y juego en hacerla aparecer y desparecer una y otra vez desde  la pantalla de mi ordenador

La imagen, parpadea, entre aislamientos.

Resulta difícil des(cubrirla). Quiero entrar con la mano en el texto y escoger la imagen que queda aislada en el medio, para escribirla: aislarlaimagendeltexto aislarlaimagendeltextoaislarla imagendel texto aislar la imagen del texto aislar la imagen del texto aislar la imagen del texto aislar la imagen del texto

aislar la imagen

aislar la imagen del texto

aislar la imagen del gesto

 

Quitar la mano de la imagen y (des)cubrir la mordida en el texto

desconfíodelaimagenmedesconfinodelaimagendesconfíodelaimagenmedesconfinodelaimagendesconfiodelaimagenmedesconfinodelaimagen desconfío de la imagen me  desconfino de la imagen

desconfío de la imagen

me desconfino de la imagen

Cojo el texto con la mano y tiro del hilo del pensamiento:

MeculpodelasimágenesMeocultodelasimagenesMeculpodelasimagenesMeocultodelasimagenesMeocupodelasimagenesMeocultodelasminagenesMeculpodelasimagenesMeocultodelasimagenesMeculpodelasmágenesMeocultodelasimágenesMeoculto

Me culpo de las imágenes

Me oculto de las imágenes

Me culpo de las imágenes

Me oculto de las imágenes

TodaviaquedamuchocaminoporhacerNohaynormalidadalaquevolvertodaviaquedamuchocaminoporhacernohaynormalidadalaquevolverTodaviaquedamuchocaminoporhaceNohaynormalidadalaquevolverTodavíaquedamuchocaminoporhacerNohaynormalidada a la que volver.

Como ahorrar esfuerzo y no desparecer entre el gesto

Como no desaparec r entre el gesto

Como             aparecer entre       esto

no desaparecer entre el g sto

aparecer entre el gasto

Como no desaparecer entre el gasto y lo que yo gano

Tradução:

A autora, Renate Eisenegger, nomeou “Isolation” em 1972 a esta sequência de 8 imagens em que uma mulher perde progressivamente mais sentidos e condições de se expressar. Até (desaparecer) aparecendo coberta com as mãos coladas ao rosto.

Vejo esta última imagem 50 anos após sua criação, e como a palavra isolamento mais uma vez cobriu seu rosto com outra camada de significado. E eu brinco fazendo com que apareça e desapareça continuamente da tela do meu computador

A imagem pisca entre os isolamentos.

É difícil descobrir isso. Quero inserir o texto com a mão e escolher a imagem que está isolada no meio, para escrevê-lo: isolar a imagem do texto isolar a imagem do texto isolar a imagem do texto isolar a imagem do texto isolar a imagem do texto isolar a imagem do texto isolar o imagem de texto

isolar imagem

isolar imagem do texto

isolar imagem de gesto

Remova a mão da imagem e (des) cubra a mordida no texto

Desconfio da imagem, desconfio da imagem, desconfio da imagem, desconfio da imagem, desconfio da imagem, desconfio da imagem, desconfio da imagem

Eu desconfio da imagem

Eu desconfio da imagem

Eu pego o texto com minha mão e puxo a linha de pensamento:

MeculpodasimagesMeocultodasimagens

Eu me culpo pelas imagens

Eu me escondo das imagens

Eu me culpo pelas imagens

Eu me escondo das imagens

Ainda há um longo caminho a percorrer Não há um caminho normal de voltar Cada caminho um longo caminho a percorrer Não há um caminho normal de voltar Ainda um longo caminho a percorrer Não há um caminho normal de voltar Ainda há um longo caminho a ir Não existe uma maneira normal de voltar.

Como economizar esforço e não desaparecer entre os gestos

Como não desaparecer entre os gestos

Como aparecer entre este

não desapareça entre o g sto

aparecer entre despesas

Como não desaparecer entre o gasto e o que ganho

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Ficções Coloniais – Denilson Baniwa na nova edição da revista ZUM, do Instituto Moreira Salles https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/20/ficcoes-coloniais-denilson-baniwa-na-nova-edicao-da-revista-zum-do-instituto-moreira-salles/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/20/ficcoes-coloniais-denilson-baniwa-na-nova-edicao-da-revista-zum-do-instituto-moreira-salles/#respond Thu, 20 May 2021 11:33:35 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/ZUM20_Baniwa_01-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22276 A convite da ZUM, o artista Denilson Baniwa concebeu um trabalho inédito para a revista que será lançada hoje, (quinta-feira) em uma live às 18h, transmitida nos canais de YouTube e Facebook da ZUM. Haverá um debate com Allan Weber e Lita Cerqueira. Na série “Ficções coloniais, Baniwa faz intervenções irônicas em fotografias dos povos indígenas feitas por Theodor Koch-Grünberg no século XIX, inserindo ícones da cultura pop, como King Kong, E.T. e Alien. Numa inversão de perspectivas, o artista comenta os processos de expropriação das culturas nativas: “O mundo ocidental imagina ataques alienígenas que destroem gente e cidades porque foi isso que fez ao longo dos tempos e teme um revide histórico. Pois, para os diversos povos originários deste planeta, um dia os alienígenas foram o mundo ocidental.” 

Na semana passada, planejamos uma conversa que no final acabou virando um minipapo, quando sugeri a ele que escrevesse em um texto corrido sobre esse novo ensaio feito para a ZUM partindo de algumas palavras e sentimentos: pop x tradição, expectativa x realidade, alienígenas x humanos, fotografia como janela da alma, fotografia x cinema, memória x futuro, tempo-espaço-hoje, terminando com a frase: “como você está hoje, no meio de tudo que vivemos, sonhamos, lutamos e acreditamos?”

Ficções Coloniais, de Denilson Baniwa

Denilson:

Quando o Thyago Nogueira, editor da Zum! me convidou para participar do projeto, senti uma continuidade das conversas que já havíamos feito em outros momentos, a exemplo do convite para o Projeto IMS Convida, onde tecemos assuntos como imagética e povos indígenas e surgiu a ideia de trabalhar com os registros fotográficos do Theodor Koch-Grünberg, etnólogo e fotógrafo alemão. Não por acaso, eu escolhi trabalhar com estes registros, Koch-Grünberg tem uma importância muito grande para o território onde eu nasci, região do Rio Negro, interior do Amazonas.

Dentre as centenas de registros fonográfico, fotográficos, gravuras, diários e entrevistas, uma se destaca e que de certa forma mudou o Brasil: o diário de Koch-Grünberg onde Mário de Andrade retirou as anotações para criar a personagem Macunaíma, que acabou virando o famoso livro e posteriormente filme, que ainda hoje repercutem em lugares tão distantes tanto nas mesas de um boteco no Rio de Janeiro quanto nas salas de aulas da USP.

Trabalhar com as fotografias deste etnólogo alemão é dialogar e navegar em dois aspectos caros a mim: o Eu pertencente ao milenar povo Baniwa e o Eu urbanoide que ama cinema, quadrinhos e fotografia.

Sou de uma geração de indígenas que viram o surgimento do Brasil Novo, da Constituição Cidadã, da abertura do país. Da geração que viu a chegada de aparelhos tecnológicos e que teve acesso a educação formal, fora da educação católica violenta dos Internatos Salesianos no Rio Negro.

Junto com outros da minha idade, também fomos os que tiveram contato com uma educação que retroalimentava a ficção colonial, o que chamo de lavagem cerebral do Estado. Eu cresci aprendendo com os mesmos livros escolares que alunos do Sul ou Nordeste acessavam. Fui convencido que Pedro Alvares Cabral descobriu o Brasil e os índios precisavam sem integrados à sociedade para que virassem de cidadãos reais.

Coisas da construção de um país de massa homogênea e segregada, onde cabe o discurso das “três raças que construíram o Brasil”, onde não cabe as identidades próprias destas “raças”.

O trabalho “Ficções Coloniais” bebe basicamente na metáfora e no sarcasmo. Essa tem sido minha resposta ao mundo da arte, da Academia e ao Estado. Ser cínico, irônico, malicioso e cheio de mágoa transmuta tons de humor em verdades que são duras demais pra dizer seriamente sem perder a compostura.

Indígena significa pelo dicionário, aquele que é originário do lugar, o nativo; seu antônimo é alienígena, aquele que é estranho ao lugar, forasteiro. Trazer para o Sci-Fi foi o modo de desumanizar o invasor e ao mesmo tempo disparar no citadino algo que fosse um gatilho emocional. Todos nós crescemos com dois criadores de ficções: a educação ocidental e a televisão. Transformar o descobrimento do Brasil em invasão alienígena, foi o modo que encontrei de contar a construção colonial deste país.

Noutro tempo fiz uma série de trabalhos chamados “ídolos profanados” uma espécie de iconoclastia quando percebi que as pessoas que eu admirava na juventude não eram da minha comunidade ou povo indígena, e sim atores e atrizes de Hollywood. Pra mim pegar este meu lado-branco e rasurar, também é um modo de reafirmar quem eu sou: indígena e amazônida. Foi o momento em que me percebi como metade Baniwa e metade criação colonial.

Eu não vou deixar de amar o cinema ou a fotografia. Mas, posso fazer esse trabalho iconoclasta com esta parte minha. E como roteirista da minha própria ficção juntar os dois mundos, como Makunaima ou Ajuricaba, que viveram também nos dois mundos.

Já que não posso apagar do cérebro Koch-Grünberg, George Lucas, Spielberg etc. Posso pegar essa bagagem da cultura pop e indigenizar por meio de metáforas e a partir daí fazer quase remakes do Lugar de onde eu olho as coisas. É o roubo do roubo, o pastiche, a sátira onde o “descobridor do Brasil” é o cara que escraviza o King Kong dentro de sua própria ilha e depois leva pra exibição como aberração do “Novo Mundo”, como fizeram com os Tupinambás em 1562.

Ao mesmo tempo que jogo com a provocação ao mundo, me coloco neste lugar do indígena crescido com a televisão como co-educadora. É uma forma de dizer: reconheço a minha parte colonizada e tudo bem, este é o indígena do Séc XXI. E que sorte que ainda consigo contar histórias do meu povo ao mesmo tempo que posso contar como é viver no mundo fora da aldeia.

 

Ficções Coloniais, de Denilson Baniwa
Ficções Coloniais, de Denilson Baniwa

 

 

 

 

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Um corpo apocalíptico – resistência, angústia e presença https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/06/um-corpo-apocaliptico-resistencia-angustia-e-presenca/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/06/um-corpo-apocaliptico-resistencia-angustia-e-presenca/#respond Thu, 06 May 2021 10:24:31 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/iGNANT_Photography_Clara_Giaminardi_12-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22231 “A reação catastrófica, que no homem se manifesta como angústia, não seria o fim, porém a condição para um novo começo”

– Peter Pal Pelbart, O Avesso do Niilismo, p. 41

Weronika Izdebska

Olhos vidrados. Corpos em combate. Escuridão. Pulsa. Pulsa no vazio, na dor, no não ver, não saber, não ser. Um outro estar, no escuro, na brutalidade de um hoje efêmero. Pulsa. Veias abertas em angustias, desejos, medos e aflições. Pulsa.

Helen Sobiralski

Um momento, um lugar, uma existência que agoniza sem chegar ao fim. A incapacidade de transitar em fluxos controlados. O esgotamento como o último suspiro. O desgarramento, o desmoronamento, o deslocamento radical das forças que sustentam o real.

Moritz Jekat

A vida esgotada visível e não apreendida é nosso campo de batalha. Esse é o afeto dominante de nossos tempos. É preciso voltar a dominar o hoje e o amanhã. Dominar nossos corpos e a matéria que nos habita por inteiro, neste presente dilatado. Sermos presença, com voz, força e unicidade, potência absoluta em ser e estar, nessa condição de existência ao chegar no limite de si mesmo, na beira do abismo e atravessá-lo. É a realidade que se esgota e se racha! As fissuras causam barulhos ensurdecedores e vazios. É possível o silêncio nos rachar os ouvidos?

Suzie Howell

O tolerável torna-se intolerável. Do esgotamento nasce o impossível. Do fim de tudo que conhecemos nasce o que ainda não sabemos, aquilo que ainda não temos palavras para descrever. A face da existência se rasga, as máscaras caem, vem à superfície o anômalo, o indizível. Onde estão as linhas de fuga para fazer fugir o estado de profundo esgotamento? Estamos à espera, observando cuidadosamente. Nosso objetivo é que os escombros da sensibilidade esgotada encontrem um novo modo micropolítico de afetar e ser afetado. É do esgotamento dos possíveis que brota o impossível.

Chrissie White

“Assistimos impotentes ao reaparecimento do pensamento apocalíptico, porque a ciência e a cultura da razão ainda não conseguiram encontrar uma mitologia que possa competir com o encanto do fim”. Ian McEwan, blues do fim dos tempos.

Melissa Schriek

O esgotamento pode ser a partida do ser dentro da própria existência. A angústia como resultado amargo de uma impossibilidade de reinvenção, exigindo do homem uma morte constante em um eterno devir.

Malin Bulow

“Trata-se de uma redistribuição dos afetos que redesenha a fronteira entre o que se deseja e o que não se tolera mais. Ora, não se poderia usar esse critério igualmente para diferenciar as formas de vida? Uma vida não poderia ser definida também pelo que deseja e pelo que recusa, pelo que a atrai e o que lhe repugna?”

– Peter Pal Pelbart, O Avesso do Niilismo, p. 412

Evelyn Bencicova

É preciso estar desperto para todos os processos de transmutações sensíveis que os momentos de crise propiciam, de recusa subjetiva e de afirmação ética, isto é, de criação de novos modos de existência. Esse contexto insinua uma metamorfose antropológica e exige do pensamento outro estilo de nomear os encontros da vida e no entendimento absoluto do que força o corpo, por dentro e por fora, a pulsar. O corpo produz significados, quer queiramos quer não. Ele quer pulsar, mesmo preso, confinado, isolado e deseja que o outro pulse junto, ainda que distante, em sístoles e diástoles coletivas. O corpo reage, rebelde, à pretensa autossuficiência que nossas mentes criam, quer transgredir os espaços aos quais o confinamos. O corpo quer criar, se mover, se expressar, estar na natureza, ser parte integrante dela, ser morada e ser oficina das nossas mentes. Nossos corpos são os nossos home offices e cada ser humano estará para sempre em quarentena consigo mesmo. Não há vacina para o desejo de um corpo pulsar com outro.

Melissa Schriek
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Microcosmos em quartos – Ensaio Palavra-Imagem com Rochelle Costi e 11 escritores https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/04/12/microcosmos-em-quartos-ensaio-palavra-imagem-com-rochelle-conti-e-11-escritores/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/04/12/microcosmos-em-quartos-ensaio-palavra-imagem-com-rochelle-conti-e-11-escritores/#respond Mon, 12 Apr 2021 18:23:44 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/quartos-rochelle-conti-13-320x213.jpg true https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22133 Para esta edição do Ensaio Palavra-Imagem convidei alguns escritores que acompanhei no grupo de escrita n’A Escrevedeira para publicarem suas palavras resultantes de um exercício proposto pela querida Noemi Jaffe. Neste bimestre, estamos refletindo sobre como a fotografia pode trazer mais potência e fluidez para um texto. A série “Quartos” da artista multimídia Rochelle Costi exposta na 24ª Bienal em 1998 foi o disparo para as palavras fluírem. Cada um criou o seu microcosmo partindo das texturas, cores e histórias habitadas em cada quarto de Costi. Uma delícia de pequenos universos para serem desvendados em mais um domingo pandêmico.

Esticado tem cheiro, de Juliana Pascutti

Sempre pensei sobre a hipocrisia dos lençóis passados, apenas comparável ao excesso de uso de sabonete, que pode ou não ser pior do que o sebo da pele, pode ou não retirar uma camada de humanidade de uma pessoa. Tem o cheiro dos bebês, que muitas vezes não é cheiro de bebê, é cheiro de sabonete. Tem o cheiro dos lençóis lavados, que é o cheiro de tecido queimado, fibra distorcida pelo calor de ferro de passar e pelo detergente líquido desenvolvido para entorpecer os que gostam de cama branquinha. Tem também os olhos de banho, que são sabão, mas também são óleo, e limpam a pele sem agredir. Dizem. E podem manchar os lençóis. E existem as pessoas que passam seus lençóis, as que tem seus lençóis passados por alguém e as que se negam a passar seus lençóis. Não importa a classe social. É como a harmonia que se vê em algumas pessoas de jeans e camiseta branca calçando havaianas. Sim, mesmo de chinelos esbanjam estilo. Elas dormem em quartos sem roupa jogada. Fico me perguntando se alguém pode mudar seu destino quanto aos quartos. Se os desordenados um dia passarão a valorizar os lençóis esticados. Se os que pintam as paredes de bege um dia apreciarão gravuras, iluminação indireta, estampas. Se as pessoas que enfileiram brinquedos nos cantos dos quartos são mais felizes. Se um dia meu pé ficará menos esparramado em um chinelo de dedo. Que lençol é um conjunto de linhas, tem a ver com lingerie, linhagem, linóleo e sublinhar.

 

quatro, de Renata Luz

quatro vezes repetidas pensou desistir

quatro a hora que levantava, domingo, natal, inverno

quatro toalhas estendidas a curar o mofo impregnado

quatro irmãos a correr em uma noite

quatro repetições da mãe, suplicando que fugissem à tempo

quatro promessas a aliviar as desilusões do passado

quatro palavras para pedir maria em casamento

quatro anos escrevendo

quatro filhos desejados, de ambos os sexos

quatro paredes alvas para envolver os bebês

quatro dias faltavam

 

 

Vitória, de Álvaro Uliani

Oferta de emprego num hotel da Serra Gaúcha. Avisaram que ali fazia frio, nevava. Outros refugiados recusaram, preferindo aguardar uma oportunidade em São Paulo. Ayo vinha da Nigéria, onde era engenheiro. Para alguns, trabalhar de faxineiro seria uma humilhação, mas ele aceitou na hora; queria recomeçar.

A pastoral ofereceu a passagem de ônibus e um ticket-refeição. Acostumado à fome do dia-a-dia, aquela que faz roncar a barriga, tinha medo mesmo era daquela outra, que gruda as paredes do estômago, tira todo o ânimo e dá vontade de morrer. Não comeu na viagem e guardou o vale para quando sentisse fome de verdade.

Mostraram o alojamento. Dois beliches triplos, um pequeno varal. O banheiro no corredor, compartilhado. Recém chegado, Ayo dormiria no beliche mais baixo. Vestiu o uniforme: tênis preto, calça cinza e camiseta branca; não forneciam casaco. Na cantina pediu pão com queijo e café. Não aceitaram o vale da viagem, mas que ficasse tranquilo, o valor seria descontado do primeiro salário, assim com o a hospedagem, o uniforme, a roupa de cama e o uso do banheiro.

O treinamento começaria no mesmo dia. Atravessou a passos rápidos o passeio do alojamento até o hotel e encontrou a equipe na entrada de serviço para conhecer os apartamentos.

– Este é um apartamento da categoria Lux Imperial – explicou o supervisor ao abrir a porta.

Os olhos de Ayo brilharam: tapete persa, cama de casal, seis travesseiros, mesas de cabeceira, garrafas para água e café, duas poltronas. Cristaleira com peças de porcelana. – Ainda bem que não fui pra Cuba, comentou, admirando a gravura na parede. – Um dia vou dormir neste quarto.

A conquista veio depois de alguns meses; foi só ter um pouco de paciência. O banzo levou a alegria, o apetite e o emprego dos companheiros, mas Ayo se adaptou ao frio, resistiu, trabalhou duro. Naquele sábado, acomodou a toalha em sua nova cama.

 

Nossa Senhora, de Otavio Toledo

“Nossa Senhora

das coisas impossíveis que procuramos em vão

vem soleníssima

soleníssima e cheia

de uma oculta vontade de soluçar”  ( F.P.)

 

Nossa Senhora,

Sofri sem dores na cama estreita, esperei a luz e o milagre, aguardei em vão. Da vida certa, das coisas regradas, do comedimento , fugi. Ave Maria me deu a graça e hoje tranquila  me oriento livre no vale das trevas. Abençoadas sejamos todas, degredadas filhas de Eva. Das angústias, do tédio e do medo me esquivei e hei de perseverar. Em direção ao Sagrado me esgueiro, ao lado da cama à conversa truncada, numa noite habitada, sucumbi. Santa, santa, santa é a Senhora Deusa do inverso, o Céu e a terra proclamam a vida inglória. Madrinha das alturas livrai-me do apego a minhas coisas pequenas. O que couber na mão eu levo, e que as reminiscências repousem inofensivas no passado. Levo o tecer e o agasalhar, não por arrogância, não para  mostrar , levo apenas por Sua glória. E não mencionemos o Santo nome em vão, o caminho é puro como seu manto, mas a castidade nunca nos trouxe a paz. Falo do momento certo, mesmo agora que a todos recebo, sua imagem conservo, seu perfume me acompanha e permanece. Obedeço a desígnios que nem entendo, respondo aos dos outros pois não reconheço os meus. Eles perseguem o fim do desejo, não percebem o entusiasmo que perdura, nesta insana procura nunca se estará tão longe de si, mas a sua bênção há de nos alcançar. Que Ela sempre acolha, interceda e acompanhe a cada um de nós, que não nos deixe cair, mas subir ao céu, agora e na bem-vinda  hora da nossa morte, Amém.

 

Em setembro de 1949 Irmã Imaculada desapareceu da clausura, os céticos acreditam que tenha saído por esta janela do terceiro andar. O quarto é conservado intacto e até hoje fiéis ali acorrem em busca de sua intercessão.

Neste quarto em Paraisópolis foi achada uma antiga imagem de Nossa Senhora. Ao ser encaminhada para a Igreja da Eterna Misericórdia, quebrou-se numa  procissão. Entre os cacos, foi encontrado um bilhete com o que se acredita ser a letra da religiosa. No verso do papel rasgado, um pedaço de oração : “Vem dolorosa, Mater-Dolorosa das angústias dos tímidos , Torre de Marfim das tristezas dos desprezados, mão fresca sobre a testa em febre dos humildes. Sabor de água sobre os lábios secos dos cansados , quando tu entras, baixam todas as vozes”

 

Motorhome, de Marina Di Lullo

Não acredito que fiquei aqui e ele foi à praia, começamos a milésima discussão e a mala pronta. Tomei um susto da primeira vez, nunca vi uma cristaleira no quarto, com miniaturas de relógios trazidos pela família dele de viagens pra Europa Ocidental e Oriental (pra que diferenciar assim, fala Europa e pronto), será que esse lustre de velas de castiçal vai cair, ele foi tomar uma ducha. E a bandeja, com garrafas de cerâmica pra água ficar gelada e remedinhos alinhados, parece quarto de hotel ou asilo. A cortina igual a um museu que visitei em Milão, estava mais interessada na barba cerrada  e no tamanho dos lábios, não faz a barba tá, tanta arrumação, não seria o quarto dos pais? Eu morava na Liberdade, com amigas numa república de estudantes,  13 anos e só a colcha mudou.

Olha, não mexe na cristaleira. Se não vier buscar, vou dar embora. Você sabe que minha mãe só tinha vago o quarto que recebe as crianças, dei uma adaptada, consegui alinhar as camisas por cor. Vou dar um jeito de pegar.

Não aguento mais nada disso, a médica ayurveda disse pra pintar o fundo de laranja, cortinas no mesmo tom, pedras brasileiras na parede, nada de móveis escuros e pesados, trazem mau agouro. Pensei que você gostasse, pelo menos da cama. Você me dizia que era de mouros, como meus olhos. Não gosto mais, os arabescos viraram lanças. Que drama! Não quero mais cabeceira, nem criados-mudos caretas. E onde vai guardar jóias? Que jóias? Antes delas, vinham as grelhas da Polishop pra hambúrgueres. O anel de pedra azul turquesa, lembra, te dei no aeroporto? Fingi que fui buscar um livro e pedi pra esperar. Sabe Mor, to gostando de ficar num espaço menor. Não me chama assim, insisti pra gente mudar e fiquei no dinossauro da casa dos seus pais, vamos ter que vender, a loja não vai aguentar com a pandemia. Podemos pensar nisso depois? Não, já procurei dois corretores, estão avaliando.

Tem outra coisa, não quero mais trabalhar na loja de tapetes. Resolver a venda da casa, os problemas dos filhos nas aulas online, assuntos da loja, o que jantar, tá pesado sozinha. Pois é, achei um lugar na praia, dá pra montar um restaurante bem charmoso. Em plena pandemia? Vou fazendo delivery por enquanto. Melhor a gente parar por aqui, vem buscar a cristaleira até segunda.

 

RETIRO, de Iara Biderman

Fica tranquilo. Só queria te dizer que está tudo como você deixou. Eu deixei. A cama arrumada, coração, como você gosta.

Sei que a colcha não está muito bem passada, mas dei meu melhor, juro. Sempre dei, pode acreditar? Tento. Fazer surpresas para você. Nunca tive muito tempo para isso, ou não sabia aproveitar. E daí você saiu daquele jeito. No começo não entendi, achei que estava irritado, que boba. Era para me dar tempo de deixar tudo assim. Do jeito que você gosta, mas nunca totalmente. O mosquiteiro, para quê? Você não faz ideia de quantos pernilongos, nunca é picado, só eu. Mas não podia arriscar com o bebê. Daria minhas pernas, braços, coxas, bunda e até a cara para ser picada no lugar do bebê, mas não há acordo com pernilongos.

Estou tranquila, coração, aqui não tem insetos. Incenso, velas, funcionam, viu? Só não pode deixar aceso a noite inteira, imagina um acidente. Às vezes penso nas consequências. Até tirei o ventilador da tomada para não dar um curto, deus me livre. Deixei para você ligar quando quiser. Não parece, mas eu te entendo, um dia você ia botar fogo na casa. Deixei para você. O mosquiteiro não, você nunca é picado. E não foi por causa do mosquiteiro, a médica garantiu, bebês não sufocam assim. Coração. Alguma coisa já estava estragada antes. Mas a médica disse que não é culpa de ninguém, acredita?

Retiro. Eles chamam aqui assim.

Tem muita gente, você ia odiar. Nem sempre. Todos têm um coração bom, você entende? Pode pensar, mas não é isso, juro. Nem quando o mestre vem fazer a massagem. Um dia te explico, se der. As mãos do mestre. Precisa saber os pontos do corpo e usar óleo, cheira bem e ainda espanta pernilongo, melhor que repelente. O quarto é quente e eles não usam ventilador. O sol numa parede, corações na outra. Na cama não, é uma colcha indiana, mais fácil de passar. Um dia o mestre vai me ensinar a fazer massagem, posso até ganhar dinheiro com isso. Agora não, preciso relaxar primeiro.

Deixei a janela aberta para entrar um pouco de luz. Se chover, pode fechar.

Aqui eles nunca abrem as cortinas porque os vizinhos são muito curiosos. Sol pode entrar. Compraria uma cortina para você, se tivesse coração bom. Estou aprendendo, o mestre disse que quando eu estiver pronta, pode me dar um bebê. Somos todos uma família aqui. E ninguém come carne. Até você ficaria tranquilo, mesmo odiando paredes coloridas e sol entrando no quarto.

Mande lembranças para sua mãe, quando fizer as pazes com ela. Deixei um estrogonofe no congelador, precisa comprar batata-palha.

 

Gato, de Luciana Miranda Penna

O quarto era um gato da construção, um abrigo puxado debaixo da laje, era um resto da garagem, sem janelas, submerso em pó, fiação, interruptores e luz indireta. Era feio bonito de se ver, a madeirite pintada de rosa encarnado aquecia tudo por dentro, e contrastava com o verde translúcido da cápsula dormitório, da bolha, da célula original, do nicho, da mônada, do escudo, daquela caixa feita de sarrafo de madeira e tela de mosquiteiro hermeticamente fechada, daquela câmara sancto sanctorum, daquele berço de criança grande, daquela nave mãe que embalava seu sono tanto e tão bem, na justa medida em que o problema da moradia aumenta as chances de ser morto.

 

FIQUE EM CASA, se puder, de Hanita Bergmann

Ao projetar um loft, o primordial é fazer da cama, um nicho, um canto especial. Um dossel, um mosquiteiro ou até mesmo uma tenda de vigotas de madeira aumentam a privacidade e o aconchego. Cores quentes estimulam, as frias acalmam; uma mistura de ambas é o equilíbrio desejado. Para a cozinha, uma bancada é mais do que o suficiente; elétrica e hidráulica aparentes dão o charme de um verdadeiro loft novaiorquino. Aproveitar o pé direito e o vigamento é um toque esperto e prático – tudo à mão mas não atravancado. Lâmpadas soltas, presas casualmente ao fio, dão uma mobilidade à luz e dinamismo ao ambiente. O resto – o indicado nesse caso – é uma decoração clean e com personalidade; abuse do seu gosto pessoal, mas sempre com moderação.

Deita e sonha com os pássaros voando no mar. Vira de lado e olha a foto dessa eu lindinha com aquele sorriso aberto prá você. Tão aninhado, essa cabaninha de samburá vai dar conta do seu sossego, dá até prá dormir de cueca. Não tá frio aí? Só short e camiseta pendurado? Deixou tudo nas caixas, então tira prá arejar. Esse rosa é lindo, combina com o boné e com a minha cortina. Tô vendo que aprendeu a deixar o chinelo arrumado, de frente pro colchão – nunca esquece disso tá? Só de frente, não de lado. Não vejo a hora de ficar aí abraçadinha, você acha que cabe o meu travesseiro de espuma forrada? Lembra que eu tenho minhas coisinhas também tá? Meus bichinhos, os vidros de perfume, o quadro da vó e aquelas outras coisinhas. O jarro cromado que a gente ganhou, já sei onde colocar, fica na sua lata amarela no pé da cama. Essa antena é da TV? Pega sem bombril? Ai sei lá, tudo tão arrumado. A minha felicidade é do tamanho dessa sua toalha; comprou uma prá mim também, né?

PL#188 Bed Alcove – “Don’t put single beds in empty rooms called bedrooms, but instead put individual bed alcoves off rooms with other nonsleeping functions, so the bed itself becomes a tiny private haven”.

 

A obra, de Angélica Bevilacqua

Verde e rosa, não a escola de samba mas o corte de tecido, o presente de aniversário dado pela minha madrinha, sua irmã, folhas verdes com rosinhas que eu odiei. Eu tinha onze, doze anos? A mãe fez um vestido que me conformei em usar, não tinha escolha, como não existia alternativa para o porão da obra aonde fomos morar, as divisórias de saco de farinha caiadas, as vigas do teto que me davam pesadelo, o concreto aparente com aqueles ferros vergados em todas as direções, o chão cimentado desde a cozinha até os dois quartos divididos pelo guarda-roupa ameaçador.

O porão foi a nossa moradia mais espantosa, até por estar debaixo da casa dos sonhos que tivemos de abandonar, construída por você, agora ocupada por gente de aluguel, você endividado, o senhor, nós, a alegria italiana da mãe, sua casmurrice portuguesa, nossa cozinha na sala, a televisão na frente do sofá, o janelão único sem vidraça protegido por toras de madeira chumbadas na parede, banheiro de tábuas de andaime no lado de fora (quando chovia tinha uma passarela pra gente não pisar no barro), o jornal como papel higiênico, o mau humor da mamma ao defender a higiene das meninas, acho que a gente começava a menstruar.

Você, o senhor, vivia fora do alcance das nossas reclamações, imagino que lamentando também, vai saber, impenetrável como o concreto do teto, o amor jamais expresso, sua tenacidade, o orgulho em ser o-fi-ci-al de pedreiro, a recusa em ter patrão, os negócios dando certo só depois, me lembro da granja, da metalúrgica, o depósito de ferramentas no fundo da chácara feito com latas de óleo recheadas de cimento no lugar de tijolos, a sobra dos seus projetos. E tudo foi assim.

Tudo me veio junto quando dei com o quarto verde e rosa da fotografia. Perdi o ar. Você, o senhor, vai rir de mim, mas eu queria ser essa pessoa, esta que transforma o amor em alicerces, pano em parede, andaime em berço, varal em guarda-roupa; a massa viscosa de palavras que vivo de excretar não serve para proteger as crianças das picadas dos pernilongos.

 

O Pronome Possessivo e a Primeira Pessoa, de Renata Valias

Quando a gente vai sair pra comer, não ligo que você escolha o restaurante, eu como de tudo. Também não ligo da sua playlist tocar mais do que a minha aqui em casa, ou no carro, e tá tudo bem da gente ir mais pra praia do que pra montanha, mesmo não podendo tomar muito sol. Eu fico bem na sombra. Também não me importo de assistir mais séries policiais do que históricas, nem de não comprar doces por causa da sua diabetes. Não ligo porque, em parte, sou tranquila, você sabe, paz e amor mesmo; em parte porque hora ou outra, sozinha no meu sossego, fico livre pra escolher o que vou comer ou ouvir, pra pegar o carro e dar um pulo em Cunha, cheirar lavanda, cultivar meus gnomos e matar toda minha vontade de doce. Olha, eu faço questão de pouca coisa, tô resolvida com boa parte dos meus problemas, é claro que eles continuam surgindo, sempre inéditos, mas por isso mesmo não faz sentido desperdiçar energia com o que já perdeu importância e, vou te dizer, disputa de poder por cardápio e controle remoto, meu amor, foi-se o tempo.

Você sabia que a terceira principal causa de separação entre casais é reforma ou construção da própria casa? Só perde pra infidelidade e falta de dinheiro, dá pra acreditar? Eu também fiquei surpresa quando li essa pesquisa, mas desde que a gente resolveu morar junto, começou a fazer algum sentido. Não, não tem nada de ameaça aqui, não sou dessas, só tô querendo que você acompanhe comigo o que andei pensando. Você se lembra do seu comentário quando entrou no meu quarto pela primeira vez, lá na república? Não seja irônico, assim a conversa não rola, a boia do Dino nem existe mais. Perguntei se você se lembra do comentário que fez. Pois eu lembro bem, porque fiquei feliz, me dei conta de que você era uma pessoa sensível – você disse: “nossa, que colorido! deve ser impossível ficar triste neste quarto”. Impossível não era, mas é verdade que construí um templo com meus recortes, minhas cores, minhas músicas, as conexões com o que me fazia bem, sem ainda nem entender porque me faziam bem – meu primeiro espaço de liberdade desde que saí de casa. Digo, da casa dos meus pais. Já reparou que por muito tempo, às vezes pro resto da vida, a gente chama a casa dos pais de nossa? Não é não, parece mais um segundo ventre, eu acho, as coisas funcionam sem a gente se envolver e as cores das paredes já vêm escolhidas; é cômodo, mas não é nosso. E quando você disse que ia pintar a nossa casa toda de branco, porque é mais barato e combina com tudo, eu pensei – isso, não! – que não ia voltar a morar numa casa de paredes brancas, de jeito nenhum.

É óbvio que não vou negar a você o que estou exigindo pra mim, me diga suas cores preferidas e a gente encontra alguma em comum. Acho que você vai gostar de ficar com o lado da cama mais perto da janela, pra ler com claridade nos finais de semana. E eu aproveito essa parede aqui pra minha coleção do Sagrado Coração.

Como você faz esse sol brilhar sem parar em cima da nossa cama?

 

Adeus, de Cassiana Der Haroutiounian

Os olhos ainda fechados viviam as memórias e as agonias provocadas pelo aroma do café recém coado esparramado pela casa. O vinho da madrugada azedo repousado na taça. Virou para o lado oposto da janela tentando evitar a luz… impossível. Cobriu os olhos com a roupa dela ainda cheirando a tabaco. Passos silenciosos; o barulho da água escorrendo no ralo junto as imagens da última noite. Era o fim? Ou era o início de tudo? Que tudo? Aquele tudo que cabe em uma hora, minuto, segundo. Quando o tempo para. O tempo para? A água parou, os passos silenciosos em melodia com a madeira velha da casa se aproximavam. A porta abriu e fragmentos solares atravessaram o microcosmos cor de romã onde o tempo congelou há 15 minutos. O tempo para.  Ela entrou no quarto ainda com algumas gotas escorrendo pelo corpo. Café, sabonete, gozo. De ontem. De hoje. Corpo inundado da manhã de um não amanhã.  “Nico, acorda! Você vai perder el vuelo.” A porta bateu e de repente tudo se tornou poroso. De saudade, de dor, de mágoa, de adeus.

 

 

 

 

 

 

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Um livro também é uma esquina – Ensaio Palavra-Imagem com Rafael Jacinto https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/04/04/um-livro-tambem-e-uma-esquina-ensaio-palavra-imagem-com-rafael-jacinto/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/04/04/um-livro-tambem-e-uma-esquina-ensaio-palavra-imagem-com-rafael-jacinto/#respond Sun, 04 Apr 2021 13:00:28 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/0002-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22115 “Quando enfim

fechássemos o mapa

o mundo se dobraria sobre si mesmo

e o meio-dia

recostado sobre a meia-noite

iluminaria os lugares

mais secretos”

trecho do poema de Ana Martins Marques

Para esta edição do Ensaio Palavra-Imagem, convidei o fotógrafo brasileiro Rafael Jacinto – que desde 2018 habita Milão com a família – para ser a imagem e a palavra com seu projeto “Ci vediamo all’angolo“. Depois de muitas caminhadas e pesquisas durante sua estadia na cidade do norte da Itália, ele enxergou em suas esquinas a forma de representar, entender e construir uma relação com a cidade que escolheu para chamar de sua. Dois anos e centenas de esquinas depois, decidiu transformá-las em um livro com dípticos e polípticos a ser lançado pela SelfSelf Books – uma plataforma recém-criada em Milão para alavancar e produzir livros de fotografia por meio de financiamento coletivo. No Brasil, está rolando uma campanha paralela, pelo kickante. Este é um ótimo domingo para estar à deriva nas esquinas do Rafa.

Um livro também é uma esquina.

Coleciono esquinas.
Hábito recente. Comecei há dois anos.
A minha coleção de passos é bem maior.
Caminho à deriva e sempre me perco. Culpa das esquinas.
E se eu tivesse ido pelo outro lado?
O trajeto não importa.
Caminho, penso. Dobro a esquina. Paro.
Como representar uma cidade?
Fotografo.
Esquinas me parecem um bom começo.

Esquinas de uma cidade são monumentos repletos de indícios.
Estéticos, sociais, econômicos, políticos.
São pontos de reflexão.
Caminho e coleciono passos.
Caminhar conscientemente é um gesto político. É uma prática estética.
Fotografo e coleciono esquinas.

Apresentar esquinas em páginas de um livro é como criar dobras no mapa e
aproximar pontos extremos da cidade a partir de indícios visuais.

É uma das tantas forma possíveis de percorrer uma cidade.
Uma das tantas formas possíveis de representar uma cidade.

Ci vediamo all’angolo.

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