Entretempos https://entretempos.blogfolha.uol.com.br Artes visuais diluídas em diferentes suportes, no Brasil e pelo mundo Sun, 28 Nov 2021 14:42:12 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O artista mexicano Bosco Sodi e suas obras de terra com destino cósmico https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/o-artista-mexicano-bosco-sodi-e-suas-obras-de-terra-com-destino-cosmico/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/09/17/o-artista-mexicano-bosco-sodi-e-suas-obras-de-terra-com-destino-cosmico/#respond Fri, 17 Sep 2021 10:31:10 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/645170_df501e7a88ae440aa093d0b5f8fa9f5dmv2_d_4902_3268_s_4_2-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22442 “Esse tempo da dureza das pedras, esse litocronos, não pode se definir senão como o tempo ativo de um trabalho, um tempo que se dialetiza no esforço do trabalhador e na resistência da pedra; ele se manifesta como uma espécie de ritmo natural, de ritmo bem condicionado. E é por esse ritmo que o trabalho obtém ao mesmo tempo a sua eficácia objetiva e a sua tonicidade subjetiva.” Gaston Bachelard, A terra e os devaneios da vontade.

Bosco Sodi, 1970, o “homem da terra”. Mexicano, diagnosticado desde cedo com dislexia, mergulhou nas artes plásticas inspirado pela mãe para tentar driblar sua condição. Do pai engenheiro químico, veio a admiração pelos experimentos.

“Dislexia te dá um pouco mais de liberdade de pensar e entender o mundo em pequenos fragmentos, como haikais” disse ele em nossa conversa no último sábado, 11 de setembro, pelo telefone.

Conhecido por usar materiais naturais e crus e por se apropriar da intimidade das substâncias para criar pinturas e objetos em grande escala, sua obra carrega múltiplas camadas de tempo, nas quais o destaque está mais no processo do que no resultado A impermanência e os estados porosos de cada acontecimento são sua bússola. Aos 17 anos, com o livro Wabi sabi na cabeceira, iniciou sua busca na não-busca, na atração pela natureza e pela imperfeição, se deixando atravessar pelos acidentes e pelo acaso dos materiais e dos estados da matéria-duração, respeitando seus devires e suas derivas. Tudo é transitório, incompleto e imperfeito, a perfeição é impossível e a imperfeição é o estado natural de todas as coisas.

“Acredito muito na troca de energia entre os quadros e o material. Respeito a natureza e tento entender e intensificar essa troca constante.” Bosco

Quando se mudou para Barcelona em 2001, não tinha uma linguagem própria e era sempre atraído pela matéria e nem tanto pela cor. Ainda eram pinturas planas. A cor se separava da matéria. Alguns cafés com o artista catalão Antonie Tapies abriram seus caminhos para a junção das duas em suas explosões de texturas, sentimentos e percepções. “A matéria fala por si própria” dizia Tapies.

“Por que não juntar cor e matéria e incitar o estômago e as vibrações no corpo?” Questionava-se. E assim seguiu com seu mantra, acreditando que quando há um processo sólido, há tudo que é necessário para uma obra de arte. Nessa anarquia de texturas e materiais, o melhor exemplo é sua obra Pangea, de 2010, uma reflexão sobre este grande continente numa explosão de lava em um painel de 4×12 metros, criado para o museu do Bronx.

 

A influência do budismo aplicada em todas as suas obras, traz a não dualidade, a unicidade de cada fazer e se ausenta de toda e qualquer repetição possível. Sua obra é muito mais resultado de processos intensos do que de inspirações. Ele escolhe na maioria de seus trabalhos não dar título para não sugestionar o espectador. Definido por ele como um processo xamânico, sua busca vem muito da solidão e de atuar diretamente em cada etapa do processo.

Seu diálogo afinadíssimo com a essência da matéria-prima e seu espaço as preenche de memórias únicas. A qualidade de tempo na peça, o sol, a brisa, o vento…. isso dita o resultado e é a maior aliada de sua potência, com uma estética japonesa e expressionista. Seus quadros como paisagens inventadas/topografias. São pigmentos trazidos de diferentes partes do mundo e extraídos de infinitas pedras com as histórias de seus territórios.

Colecionador de pedras de todos os cantos – assim como eu – e sem limites para aumentar sua coleção, acredita que nós somos escolhidos por elas e na energia que pulsa em cada uma. E também nas marcas de história e de tempos que nelas se acumulam para a obra-vida.

Com diferentes casas espalhadas pelo mundo e pedras e mais pedras acumuladas, em sua terra natal, Oaxaca, Bosco mantém a fundação de arte filantrópica Casa Wabi, projetada por ninguém mais ninguém menos que o gênio do concreto, o arquiteto japonês Tadao Ando. Há três anos, abriu a Casa NaNo em Tóquio. Sua conexão com o mundo oriental é longa. E não só a dele. A conexão do Japão com o México também vem de longa data. No início do século XVII, lideranças do atual Japão enviaram o samurai Hasekura Tsunenaga para a Nova Espanha para ser uma espécie de diplomata nipônico no que hoje é o México. Bosco acredita que o silêncio da cultura japonesa com o ruído dos latino americanos fomentam uma relação. Contou-me que em uma de suas exposições no Japão, um monge budista foi como espectador e seu entendimento da obra foi uma das mais bonitas. “Acho que os orientais entendem mais minha obra do que nós, do Ocidente.”

Com um discurso de novos começos e de que tudo sempre há de recomeçar e renascer, sua obra-performance-instalação “Tabula Rasa” começou ao amanhecer na Washington Square Park, em Nova York, com a instalação de 439 esferas de argila em pequena escala, terminando mais tarde quando os passantes eram convidados a levar pra casa uma delas, como parte precisa da obra.

Estas esferas foram feitas à mão pelo artista, simbolizando um dia da duração da pandemia de Covid-19. Trazendo práticas agrícolas indígenas mexicanas para os Estados Unidos, são recipientes para uma nova vida, contendo dentro delas três tipos de sementes – milho, abóbora e feijão – que sustentam e nutrem umas às outras, fornecendo um sustento equilibrado. Metáfora potente para a necessidade de cooperação e assistência mútua, essas plantas simbióticas encorajam a reflexão sobre nossa própria interdependência e confiança mútua e, crucialmente, no mundo natural que habitamos.

 

Essa e todas as suas obras trazem à tona essa efemeridade dos materiais elementares, podendo ser lapidado pelo entorno, sempre. Água, ar, fogo e terra contêm em si a própria essência da vida. A escolha de Bosco pelo barro e por pigmentos naturais, numa relação integral entre arte e terra o mantém numa linha de pensamento do devir e de um destino cósmico.

 

 

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Céu nublado na terra arrasada – Ensaio Palavra-Imagem com Thiago Rocha Pitta e Pedro Cesarino https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/07/18/ceu-nublado-na-terra-arrasada-ensaio-palavra-imagem-com-thiago-rocha-pitta-e-pedro-cesarino/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/07/18/ceu-nublado-na-terra-arrasada-ensaio-palavra-imagem-com-thiago-rocha-pitta-e-pedro-cesarino/#respond Sun, 18 Jul 2021 10:00:29 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/The-clopen-door-2-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22385 Neste Ensaio, temos Thiago Rocha Pitta e Pedro Cesarino, dupla já estabelecida na Casa Triângulo. Na exposição “Nigredo”, primeira individual de Thiago na galeria, ele explora por meio de vídeos, esculturas e pinturas a relação do homem com a natureza e o tempo. Sempre de maneira meditativa, o artista captura fenômenos naturais por meio de técnicas e gestos simples e, ao mesmo tempo, históricos. Acompanhadas pelas palavras de Pedro, as obras de Thiago estimulam o espectador a tomar a frente em relação às situações que lhes são expostas, como na obra “The cloopen door” que faz referência ao incêndio no Museu Nacional, em 2018. Thiago, além de exposições em muitos cantos deste mundo, tem suas obras presentes em coleções públicas como Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Hara Museum of Contemporary Art de Tóquio, Museum of Modern Art -MoMa de Nova York, Maison Européenne de la Photographie de Paris, Museu de Arte Moderna de São Paulo, entre outras. Pedro, graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, mestre e doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ, desenvolve pesquisas em etnologia indígena, com ênfase em estudos sobre xamanismo, cosmologia, tradições orais, tradução e antropologia da arte. Os dois juntos em uma relação extremamente alinhada e poderosa, provocam inquietações sobre ser e estar neste mundo.

“É triste e sem remédio a sorte dos mortais…/ Esboça-se a ventura em traços imprecisos,/ os males chegam logo, como esponja úmida, / e num instante apagam para sempre o quadro”1. Com essas palavras, a profetisa Cassandra vaticinava o assassinato de Agamênon e a destruição de sua casa real, maculada por crimes pretéritos. A dinâmica trágica, tão bem explicitada pela voz dos profetas, implica na negação da herança criminosa por sujeitos que se imaginam senhores de seus atos, embora não passem de joguetes de forças maiores que, cedo ou tarde, cobrarão pelo dolo causado. Thiago Rocha Pitta prenuncia em suas obras o avanço da catástrofe que, antes de 2020, já mostrava os seus sinais. Na noite de 2 de setembro de 2018, o incêndio do Museu Nacional surgia como aviso sinistro do que estaria por vir nos atuais tempos de pandemias virais e fascistas. Embora recente, o incêndio é resultante de outros tantos crimes acumulados (e jamais devidamente expiados) desde que as naus portuguesas aportaram por aqui. É esse acúmulo que parece impor a Thiago uma inflexão histórica nas obras aqui reunidas, que elaboram, contra o pano de fundo do não humano já explorado pelo artista em outros trabalhos, os impactos do cenário de terra arrasada em que vivemos.

O apodrecimento da terra e de seus corpos, consequência direta do saque colonial, implica na passagem pela via obscura, cujo portal é iluminado pela falsa luz de um sol refletido – a luz lunar. Encontramo-nos diante dos umbrais, nas fronteiras tornadas indiscerníveis pela coloração crepuscular que dissolve os corpos, toma de assalto a respiração, empurra nossos ânimos para as profundezas de uma cova que julgávamos não ter escolhido. Saturno, com sua densidade melancólica, é quem preside o nigredo, a putrefação e a morte envolvidas nesta primeira etapa alquímica. Sua contrapartida é a imagem de uma deusa da água que emerge do mar, igualmente noturno, mas redimido pelo maravilhoso. O céu que a recebe e que é seu próprio corpo, contudo, não é aquele infestado pelas chamas que tragam dos subterrâneos o carbono antigo, permanentemente transformado em lucro – essa suprema perversão alquímica de que somos prisioneiros. A bem da verdade, a redenção pelo maravilhoso não será possível enquanto o crime não for expiado. Lembremo-nos: no dia 2 de fevereiro, cultua- se na Bahia a única grande festa popular brasileira integralmente dedicada a uma deusa- mãe, e cujo nome permanece sendo de origem africana: Yemanjá.

As séries melancólicas de Thiago Rocha Pitta, se bem que prenunciem os crimes e seus efeitos deletérios sobre um tempo cada vez mais incerto, o fazem a partir do que excede e limita o humano. Eclipses são avisos de tempos sombrios, dir-se-ia, mas poderiam muito bem não ser nada disso. Afinal, porque tais fenômenos precisariam figurar como imagens de nossas relações internas? Por que deveriam de alguma maneira significar? Eclipses são pura exterioridade, a indicar os paradoxos de um pensamento que não consegue sair de si mesmo. Os presságios que eles supostamente transportam poderiam ser apenas projeções de um sujeito desesperado sobre aquilo que lhe é completamente alheio, ou então mensagens realmente emitidas por fenômenos que nos escapam. É nessa ambiguidade que reside a sua potência, pois não se pode decidir se os augúrios são expectativas nossas ou se, ao contrário, são impostos de fora para designar nossa infeliz condição. Deve haver, portanto, alguma correlação entre as duas posições para que o sentido se torne possível, ou então estamos afundados em um horizonte de fenômenos indiferentes que não tardarão por apagar os traços imprecisos de nossas angústias. Uma porta não estaria aberta ou fechada se o fogo já tivesse corroído o seu batente. Conquanto insistimos em ser essa estrutura de contenção, não temos como escolher entre as duas alternativas.

Um filósofo dizia que apenas a contingência absoluta, com a qual o tempo coincide, é que designa o possível, essa dimensão que em muito escapa ao que é pensável. Ora, aquilo que extrapola o pensamento é, também, o que transborda o humano, mesmo quando este imagina ser capaz de controlar o que o excede. O saque, derivado de tal ilusão do controle, termina por conduzir à catástrofe, uma espécie de vingança do possível com relação às pretensões do pensamento. A extração do carbono pelas refinarias se quer interminável, feito incêndio perpétuo a corroer o céu da Baía de Guanabara. Mas o tempo a dissolverá, junto com os desfeitos que ela propiciou ao criar este mundo possível que nos habita. Um meteorito que antes caiu sobre essa terra agora dela se afasta – por desgosto ou por indiferença, como saber? Se tal hesitação fundamenta dilemas filosóficos que parecem aqui encontrar uma potente expressão estética, ela não serviria entretanto para desviar o foco do que, mais especificamente, nos compete: não esquecer que a justiça é o lume em meio ao céu nublado pelos incêndios.

1 Ésquilo, Oréstia. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990. Tradução de Mário da Gama Kury

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Mais vale adiar o dia – Ensaio Palavra-Imagem com Ana Martins Marques e Felix Gonzalez-Torres https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/16/mais-vale-adiar-o-dia-ensaio-palavra-imagem-com-ana-martins-marques-e-felix-gonzalez-torres/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/16/mais-vale-adiar-o-dia-ensaio-palavra-imagem-com-ana-martins-marques-e-felix-gonzalez-torres/#respond Sun, 16 May 2021 11:23:33 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/perfect-lovers120220-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22263 Combinar as palavras sempre tão bonitas da poeta Ana Martins Marques com as obras do cubano-americano Felix Gonzalez-Torres (1957-1996) neste Ensaio Palavra-Imagem de hoje me faz sentir aquela alegria profunda. Ana, autora de “Da arte das armadilhas” (Prêmio Biblioteca Nacional em 2012) e “O livro das semelhanças” (2015) lançará em junho pela Companhia das Letras (já em pré-venda) seu mais novo livro “Risque esta palavra”. Eu já sabia que estava para sair suas palavras novas e precisas, mas depois de ler um trecho no Jornal Literário Pernambuco em uma dessas noites frias, só conseguia pensar nas imagens de Felix. Pareciam feitas umas para a outras, como se fossem um prolongamento natural. Quando dei a ideia, Ana me disse que adorava o trabalho dele e tive a sensação de que o diálogo entre esses dois artistas seria lindo. Conhecido por suas instalações, boa parte da obra de Felix González-Torres é baseada na sua experiência diante da pandemia de Aids. Ele perdeu seu companheiro para a doença e, algum tempo depois, ele mesmo foi vítima do vírus HIV nos anos 1990. Suas obras trazem o rastro, o tempo, a memória e a saudade e, junto com Ana Martins Marques, provocam um daqueles ensaios que fazem a gente suspirar, refletir e sentir.

 Alba

 

É dia

e daí?

Relógios e amantes

acordam em desacordo.

Por que levantar agora?

A noite não foi cheia de afazeres,

como um dia de escritório?

Não é também labor

uma noite de amor?

Como o corpo desses livros

que lemos no leito

o seu não guardou as marcas

do meu manuseio lento?

Mais vale adiar o dia.

O alarme do celular:

que triste cotovia.

O que eu mais gosto do teu corpo

 

 A parte do teu corpo

que procura pelo sol

como os gatos pela casa

 

a parte que permanece imóvel

quando cantas, a que se move

quando estás parado

 

a parte que apenas a mim

e de relance, por descuido

revelaste

 

a parte onde guardas as memórias

de infância, a parte que ainda anseia

pelo futuro

 

a parte que demora

a acordar

depois que acordaste

 

a parte que discorda

ainda de mim

quando já cedeste

 

aquela que adere

mais fortemente

ao teu nome

 

a parte que guarda

silêncio enquanto

falas

 

a parte que

quando estás cansado

ainda não se cansou

 

a parte ainda noturna

quando é dia, diurna

quando é noite

 

a parte que

tem parte

com o mar

Aquele quarto de hotel

 

O tempo concentra-se no encontro

como a doçura no figo

confundem-se teu nome e o nome do mar

estrangeiro

teu corpo e a laranjeira acesa

no pátio do hotel

e ainda todas as pequenas coisas

que não aconteceram

a partir deste encontro

para nenhum futuro

“Untitled” (Double Portrait), 1991

Porque sua camiseta secou ao sol ela tem a cor do sol

porque seus cabelos secaram ao vento seus pensamentos têm

a velocidade do vento

 

porque você disse noite sua boca

tem o gosto do mar noturno

 

porque você não conheceu meu avô você me amará menos

porque não te conheci quando criança eu te amarei mais

 

porque você conheceu meus livros antes de me conhecer

você nunca vai me conhecer

Untitled (The End), 1990

 

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Infinitude movente – uma coleção de nuvens na arte contemporânea para refletir sobre o tempo https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/infinitude-movente-uma-colecao-de-nuvens-na-arte-contemporanea-para-refletir-sobre-o-tempo/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/infinitude-movente-uma-colecao-de-nuvens-na-arte-contemporanea-para-refletir-sobre-o-tempo/#respond Thu, 25 Mar 2021 19:26:17 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/nuvens-11-Vik_Muniz_1-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22067 “Vamos sonhar com o efêmero, e demoremo-nos um pouco mais na formosa tolice das coisas.” Kakuzo Okakura

Leandro Erlich

Sempre estive desperta a pequenos rituais diários que permitissem a porosidade das coisas, a tempos suspensos, vividos segundo por segundo em seus micro acontecimentos, respeitando os brilhos, as sombras, os aromas e todas as mutações que o tempo carrega. Talvez, desde o início da pandemia há um ano, cada mini ritual tenha mais importância a cada dia que passa entre o ontem e o amanhã. Octavio Paz define: “instante privilegiado da corrente temporal, ungido com uma luz especial. Nesse aqui e nesse agora algo principia. O tempo cronológico sofre uma transformação decisiva: cessa de fluir, deixa de ser sucessão instante que vem depois e antes outros idênticos e se converte em começo de outra coisa.” Observar os ciclos que se formam ao nosso redor e deixar que nos atravessem em forma de imagem, palavra ou de um profundo suspiro. 

Fabian Burgy

“O presente é a infinitude movente, a esfera legítima do relativo… O taoísmo aceita o mundano conforme é e, diferentemente dos confucianos e dos burgueses, tenta encontrar beleza em nosso mundo de angústia e inquietude. ” Kakuzo Okakura

Glenda León

Há duas semanas participei do Curso-Experiência “Chanoyu – a essência da arte do chá com a Erika Kobayashi na plataforma Momonoki. Dois sábados de tempos suspensos com um apanhado de conceitos importantes da cultura japonesa que se expressam através da cerimônia do chá, passando por aspectos históricos, filosóficos e estéticos refletidos pelo olhar contemporâneo de Erika, que começou a estudar a cerimônia do chá em 2011. Mestre em Sociologia pela Sorbonne, ela faz parte do “World Tea Gathering, grupo de artistas que compartilham a essência da cerimônia do chá no mundo contemporâneo, tendo feito performances em diversas capitais desse mundo. Eu precisaria de anos para entender todas as sutilezas e nuances que permeiam o universo do chá, mas essas duas aulas já foram um bálsamo para o meu ser-sensível abrir-se à porosidade dos pequenos acontecimentos. 

Olafur Eliasson

“A utilidade de um jarro de água está no vazio onde a água pode ser posta, não na forma do jarro ou no material de que ele é feito. O vácuo é todo poderoso porque tudo contém. Só no vácuo o movimento se torna possível. Aquele que fizer de si mesmo um vácuo, no qual outros possam entrar livremente, se tornará dono de todas as situações. O todo sempre domina a parte.” Kakuzo Okakura

Ian Fisher

Habitar a morada do vazio que abriga um impulso poético, leva ao vácuo que tudo contém, criando rituais que atravessem a poeira do mundo que chamamos de cotidiano. A sala do chá é como um refúgio para o viajante, da mesma forma que o corpo é um refúgio viajante para a alma. Kazuo Ohno, o maior nome do butô, diz para não termos receio do nada, da pausa, do silêncio, pois o espaço vazio é um espaço cheio e é nele que precisamos submergir.

Araki Nobuyoshi
Vik Muniz

“O aposento do chá era um oásis no monótono deserto da existência, um lugar onde viajantes exaustos podiam se encontrar para beber dessa fonte comunitária que é a apreciação da arte.” Kakuzo Okakura

Cailtin r.c. Brown & Wayne Garrett

Com isso tudo voltei ao meu “O livro do chá”, de Kakuzo Okakura, para pensar esses conceitos japoneses e relacionar com a arte. “Mas são conectados?’ vocês podem se perguntar.  Na minha forma de enxergar arte, sim. Cada artista cria seus pequenos rituais para se conectar ao processo criativo. Cada espectador também, para aguçar o sensorial, abrir canais e penetrar no significado de cada obra ou simplesmente observá-la por horas. O caminho que uma obra percorre até cada um de nós é único e reverbera de acordo com o nosso repertório. Apesar de se propor uma experiência coletiva, quando se está no presencial.

Benjamin Lozninger

Diante dessa experiência e desses devaneios, decidi fazer uma seleção de imagens de nuvens de diferentes artistas para ilustrar o tempo: algum tempo, nosso tempo ou a ausência dele. Talvez seja um convite para visitar o avesso de todas as coisas e a imensidão íntima das pequenas coisas. Estar presente no aqui-agora e a apropriação do devir.

Daniel Arsham
Rinko Kawauchi
Tomas Saraceno
Berdnaut Smilde
Candice Japiassu
Kohei Nawa
Cassiana Der Haroutiounian
Calen Knauf
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Barulhos.Imagens.Tédio.Saudade. Ensaio Palavra-Imagem com Wagner Schwartz e Angela Glajcar https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/12/20/barulhos-imagens-tedio-saudade-ensaio-palavra-imagem-com-wagner-schwartz-e-angela-glajcar/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/12/20/barulhos-imagens-tedio-saudade-ensaio-palavra-imagem-com-wagner-schwartz-e-angela-glajcar/#respond Sun, 20 Dec 2020 15:15:04 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/KORRECTHeitsch_2016038_Terforation01-0869943e-c886-11e8-8f23-973600b1e5e6-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=21853 Para esta edição do Ensaio Palavra-Imagem, convidei o coreógrafo, performer e escritor Wagner Schwartz para devanear partindo das sobras da alemã Angela Glajcar. Autor de “Nunca Juntos Mas Ao Mesmo Tempo”, publicado pela Editora Nos, Schwartz participa de grupos de pesquisa e experimentação coreográfica na América do Sul e na Europa. Autor de 12 criações desde 2003, ele recebeu, entre outros, o prêmio APCA 2012 de “Melhor projeto artístico” por Piranha e foi selecionado pelo programa Rumos Itaú Cultural Dança em 2000, 2003, 2009 e 2014. Angela Glajcar cria instalações com papel, luz e o espaço, sempre interessada em explorar como o espaço é vivenciado.  A pureza elegante das composições deriva da ausência total de cor, enquanto sua precisão é determinada por técnicas e princípios rigorosos. As palavras de Wagner Schwartz, que vive entre São Paulo e Paris, com os estudos do vazio da alemã são de uma preciosidade linda para este domingo – em clima de fim de um fim de ano tão cheio de vazios, incertezas e reticências.

É que eu estava procurando sobre o que falar após ter contato direto com a obra de Angela Glajcar

Procurava falar sobre a obra de Angela Glajcar. Procuro falar quando preciso. Se não preciso, não falo, nem palavra formulo. Tudo o que vem na cabeça são barulhos, trechos de músicas, imagens, cheiro, tédio, saudade. São coisas que talvez um artista sinta. Um escritor encontraria na forma uma experiência interior para dar de roteiro àquilo que só pensou quando entrou em contato com uma obra de arte. É que os escritores procuram palavras para tudo o que veem. Caso discorde de mim, não deve ser um escritor. Ou finge que não descobri seu maior segredo e o expus assim, em um jornal. Chegou a hora de dizer a verdade, caro escritor. Olhe para a imagem à sua frente e faça menos barulho. A arte agradece. Escritores sabem falar tão bem, inventar tão bem um significado para fazer os que os leem se orgulharem por terem entendido alguma coisa que a imagem não disse. As formas não dizem. E como é difícil para o ser humano não dizer. Inventam objetos que respondam às suas perguntas com gramática e estilo. Ah, que bonito uma obra de arte bem explicada. O galerista ama, o público ama, porque entende e porque agora, a obra faz sentido. Coisa que só gente procura. Sentido. É que pra fazer sentido é preciso comparar isso e aquilo. E se não há nem isso nem aquilo, nem perca tempo. O século 21 briga por sentido, por imagem que combine com a palavra. E se ainda juntarem a ela os bons sentimentos: horário nobre. Um totem em cada livraria com seu novo livro que explica o mundo, que fala a voz do mundo, que não deixa ninguém despovoado, que apazigua a dor ou a deixa com a cara do outro, claro, pra gente ter pena do outro e escrever sobre o outro e falar mais sobre o outro até esquecer-se de si. Mas não é exatamente isso que o século 21 nos deu de presente? Fingir o outro? Porque claro, preciso entender aquilo que o outro quer que eu fale sobre ele enquanto uma imagem enfeita nossa conversa. E escrevo e escrevo até ajudar a outra pessoa que me lê ou que me ouve entender o que está na minha frente. Não na frente dela. Assim o mundo fica menor e menos confuso. Quanto mais a gente entende, mais diminuímos o espaço e a confusão. Então, melhor entender para pertencer àquele pequeno, grande, gigantesco grupo que consome as mesmas palavras e cansam as obras de arte. Caí em minha própria armadilha ao afirmar que uma obra de arte se cansa. Ela envelhece. A poeira consome seu significado. Vira tantas coisas que nem mesmo parece que um dia foi uma obra de arte construída por uma única pessoa. Ganha fama, cria assunto e faz outras pessoas felizes ao entrarem em contato com o que escreveram sobre ela e não com a obra de arte. E quem lê fica feliz porque entendeu o que viu. Alguém viu melhor, maior — razão nada periférica. Terforation é o título. Ao olhar para esse monte de folhas cortadas, eu poderia falar do buraco que fizeram dentro de mim há três anos e que meu livro Nunca juntos mas ao mesmo tempo ajudou a tampar. Mas só vejo buracos, um maior que o outro, e têm cor. Não quero ver mais nada: nem a pessoa, a assinatura ou a artista de nosso tempo. Vejo pedaços de papel pendurados, um atrás do outro, sistematicamente, assim como qualquer pessoa pode enxergar. Papéis fixados na parede, presos por um varal. A projeção da luz nos permite observar umas partes melhores que as outras. A distribuição da sombra e de sua falta criam impressões de que esses buracos são como imagens de um espelho refletido no outro. Quem nunca pôs um espelho na frente do outro? Viu o que pode ser visto. A sensação, cada qual tem a sua. Mas é preciso discutir a sensação para criar escolas e pupilos e seguidores e fãs e mais textos e publicações que façam a obra de arte existir no mundo reduzido das palavras, porque em terra de verbo quem fica calado é mal visto.

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Um pensar pedra: Mono-ha – o movimento de arte criado em Tokyo nos anos 60 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/12/17/um-pensar-pedra-mono-ha-o-movimento-de-arte-criado-em-tokyo-nos-anos-60/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/12/17/um-pensar-pedra-mono-ha-o-movimento-de-arte-criado-em-tokyo-nos-anos-60/#respond Thu, 17 Dec 2020 11:00:12 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/lee-ufan-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=21833 pensar pedra

apesar de tudo

e rochas e rochedos e picos e topos

e lajes e seixos e declives e escarpas

e torsões e sobras e erosão

restos de pedra domesticada em ruas

mesas lápides chãos quem escultura

lamentos de poeira

urros vulcânicos

pedra

Lee Ufan

“O que estou procurando é [gerar] uma experiência através da sua percepção e evocar algo diferente do que vemos no mundo normalmente – algo original, poético e transcendental”. Lee Ufan, artista sul-coreano radicado no Japão.

Representar a essência dos materiais, pensando em elevar suas potências absolutas em instalações únicas e efêmeras, sem nunca se repetir completamente é parte do manifesto do movimento artístico Mono-ha -もの派 – (traduzido literalmente como “escola das coisas”), surgido já como contemporâneo em Tóquio no fim dos anos 1960.

Lee Ufan

A pedra é um dos elementos mais importantes de todo o movimento. Ela é a mãe de tudo e permite ao homem a sociedade industrial. Uma massa que data o tempo geológico da terra. Também o aço, feito a partir dos elementos minerais retirados da pedra.

“Quando criança, eu me deitava entre as pedras da margem quando estava cansado de nadar no rio, eu e as pedras nos tornávamos um com o céu.” Lee Ufan

Kishio Suga, na galeria Mendes Wood

O movimento japonês Mono-ha, usando muitas vezes materiais orgânicos e industriais, foi inicialmente formado por Lee Ufan, que tinha acabado de se graduar em filosofia, e escreveu sobre a escultura Phase – Mother Earth (1968) de Nobuo Sekine. Os integrantes do movimento compartilhavam interesses como rejeitar a arte representacional e se esforçavam para alcançar expressões autênticas da essência dos materiais além das qualidades superficiais. Outros artistas japoneses foram agregados ao movimento, sendo muitos frequentadores da Tama Art University, em Tóquio. Além de Ufan, muitos deles eram escritores ávidos, utilizando a teoria estética para contrariar as suposições do minimalismo ocidental.

Phase Mother Earth, 1968, Nobuo Sekine

pedra armadura para vento

praia
deserto com mar
deserto

praia sem mar

água faz diferença
pedra seca dura
árida ríspida rígida
olhar seco estanca
lágrimas
saudade de umidade
noite
copo que engole luz
sombra deságua
noite esparrama tentáculos
desperta inacabados
portas e janelas de casa
cerrada
serrada

este é um olhar que desarma

Phase of Nothingness, 1969, Nobuo Sekine

Os artistas Mono-ha imaginaram a arte como um projeto experiencial, enfatizando a fisicalidade ao invés da opticidade. A obra de Mono-ha desobjetificou essencialmente o material e descentrou o homem como sujeito da arte. Talvez um dos percalços mais comuns dos escritores contemporâneos seja identificar o Mono-ha como um movimento derivado da arte minimalista convencional. Enquanto os artistas japoneses eram frequentemente mostrados ao lado de seus contemporâneos ocidentais em contextos internacionais, Mono-ha era decididamente não-humanista e abordava o material e a pureza das formas de maneiras muito diferentes dos artistas na Europa e na América.

Kishio Suga

O movimento, de curta duração,  questiona o antropocentrismo e ultrapassou os limites entre o observador, o objeto e o local e, consequentemente, entre o homem e a natureza. Ele propõe reconsiderar a relação entre a natureza e a humanidade olhando para ambas e se preocupa com o processo de revelar sempre em termos concretos essa diferença de sensibilidade, como cada um de nós pensa sobre essas coisas, com as séries de coisas e fenômenos inexplicáveis que existem no espaço que habitamos.

Kishio Suga

e céu e céu e céu o seu eco

para onde o topo de pedra aponta
céu toalha de mesa
palco da dramaturgia
rasurada pelo vento
vento assopra ares
água de nuvem
escorre por dentro
nuvem em fresta de pedras
vapores emanam de pedras
pedras agitam os nervos
brumas de manhã
brumas da manhã
às alturas
torpor leve estende
do chão para o alto
espreguiçando vento sem fôlego
céu grande
tela translúcida de sessão contínua
cinema a céu aberto
ar e fogo e vento e lava
e pedra eleva seu peso
à potência de porção de eternidade
poção da eternidade

este é um olhar que assombra

 

Lee Ufan

Eles acreditavam que o artista não cria, mas adiciona um gesto as obras, modificando algumas partes, apresentando as coisas como elas são, numa tentativa de minar essa modernidade e a ideia de mostrar o mundo como ele é. Eles se interessaram pela relação entre o homem e o material, sem ênfase na autoria. Essa rejeição por parte dos artistas Mono-ha também envolveu a rejeição do crescente mercado de arte moderna, como pode ser encontrado nas composições lúdicas, performáticas e muitas vezes acidentais, questionando profundamente o modernismo ocidental e suas motivações humanistas.

Nobuo Sekine

“A arte não deve envolver-se com o universo do homem, mas com a essência do verdadeiro universo que inclui o homem.” Lee Ufan

Lee Ufan

Uma crítica que Ufan faz a arte moderna é de que ela é ocular e perde a relação com o mundo externo. Uma arte que começa e termina no olho sem passar pelo mental. A ideia dessas obras Mono-há é uma conversa entre a sociedade moderna e a natureza, na intensificação da propriedade de cada coisa, numa relação de alteridade em que o artista constrói. As coisas não são fixas, o mundo não é estável. Tudo está o tempo todo em um constante devir.

 

*todos os poemas acima, são do livro “A pesar, a pedra” de Edith Derdyk.

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Onde as estrelas eram terrenas https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/12/04/onde-as-estrelas-eram-terrenas/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/12/04/onde-as-estrelas-eram-terrenas/#respond Fri, 04 Dec 2020 10:27:12 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/SC00327@AlbanoAfonso-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=21781 “Se a angústia é tão profunda, é porque cada um de nós começa a sentir o solo ruindo sob os pés. Descobrimos, mais ou menos, confusamente, que estamos todos migrando rumo a territórios a serem redescobertos e reocupados.” Trecho de “Onde aterrar – como se orientar politicamente no Antropoceno” de Bruno Latour.

De hoje até domingo, 6, acontece a Miami Art Basel Beach. Destaco o stand “Onde as estrelas eram terrenas” da Casa Triângulo, curado por Priscyla Gomes. O stand me chamou a atenção pelas palavras, inicialmente, que sugerem infinitas reflexões em tempos de grandes crises, anseios e frustrações pelo planeta. Quando sou fisgada pelo conceito, antes da obra, tento fazer um exercício: me permito por algum tempo entender qual o limite para o meu devaneio com o som de cada palavra. Abro livros, ouço uma música, fecho os olhos e me deixo levar, para só depois buscar entender quem são os artistas, principalmente em meio a tantos eventos online, sem viver a experiência sensorial, tátil de cada espaço expositivo. Pensando nisso, conversei com Priscyla, sobre os disparos filosóficos nesta edição.

Thiago Rocha Pitta, Bahia Gótica, 2019 (Foto: Filipe Berndt/Casa Triângulo)

“Quando o convite para uma curadoria na feira aconteceu, ficou clara a necessidade de problematizar aquele momento. Um evento daquele porte, todo sendo realizado virtualmente, colocava uma pergunta sobre o circuito da arte, seus meios de difusão e discussão e, principalmente, sobre o processo de crise que a arte se deflagrou – uma vez que a experiência do contato direto com as obras estava prejudicada pelos protocolos sanitários da pandemia.”

Alex Cerveny, I feel for you, 2020 (Foto: Filipe Berndt/Casa Triângulo)

Ela conta que ao aproximar-se das produções recentes de cada artista, muitas das obras refletiam inúmeras inquietudes que pensou em problematizar. Nesse processo, uma aposta já recorrente no processo curatorial se confirmava. A aproximação com os trabalhos não só abriu importantes frestas para investigação, mas também colocava uma questão primordial: era possível encontrar ecos, seja por intermédio das temáticas, dos processos e de seus questionamentos, de uma situação que atingia a todos.

Eduardo Berliner, House, 2020

“A ausência de um mundo comum a compartilhar está nos enlouquecendo. A hipótese é que não entenderemos nada dos posicionamentos políticos dos últimos cinquenta anos, se não reservarmos um lugar central à questão do clima e à sua denegação. Sem a consciência de que entramos em um Novo Regime Climático, não podemos compreender nem a explosão das desigualdades, nem a amplitude das desregulamentações, nem a crítica da globalização e nem, sobretudo, o desejo desesperado de regressar às velhas proteções do Estado nacional – o que se costuma chamar, um tanto erroneamente, de “ascensão do populismo”. Para resistir a essa perda de orientação comum, será preciso aterrar em algum lugar. Daí a importância de saber como se orientar, e para isso traçar uma espécie de mapa das posições ditadas por essa nova paisagem na qual são redefinidos não apenas os afetos da vida pública, mas também as suas bases.”  Latour, Bruno.

Mariana Palma, 2020 (Foto: Filipe Berndt/Casa Triângulo)

Segundo Priscyla Gomes, nesse processo de reflexão sobre as questões contemporâneas mais latentes, alguns fatos se sobrepunham, sendo impossível ignorar o reflexo da crise política pela qual passa o país e suas implicações nas questões climáticas e sanitárias. Os noticiários nos deram, ao longo desse último ano, números e mais números sobre como o poder vigente parecia se esquivar de enfrentar as reais emergências do país. Os índices de mortos, o ataque e o descaso às populações indígenas, as incessantes queimadas que comprometeram irreversivelmente a flora e fauna eram tidos como desimportantes, ignorados por medidas de sobrevaloração da economia.

Foi a partir desse cenário que a referência a Bruno Latour se tornou determinante. Em seu ensaio “Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno”, recém-publicado no Brasil, o filósofo e antropólogo reflete sobre o contexto político e econômico mundial, colocando a crise climática como um reflexo das posturas das classes dirigentes.

“Migrações, explosão de desigualdades e Novo Regime Climático: trata-se da mesma ameaça. E por mais que a maior parte de nossos concidadãos subestime ou mesmo negue o que está acontecendo com a terra, eles compreendem perfeitamente que a questão dos imigrantes ameaça seus sonhos de uma identidade garantida.” Latour, Bruno.

Albano Afonso, Still Life, n° 1, 2020

“Uma ideia determinante ao ensaio de Latour e que aparece como fio condutor da investigação dos trabalhos é a noção de aterrar. Na abdicação do nosso direito de trânsito livre, uma das questões que nos parece tão latente é como definimos as bases do território onde fincamos nossas raízes, como tratamos com zelo e com responsabilidade seus elementos originários, como garantimos diversidade a ponto de que os direitos não atendam somente a cada um de nós, mas ao todo. O aterrar é tido como uma metáfora sobre nosso local de origem, mas também sobre nossas convicções. É nesse âmbito que a arte emerge como uma potência transformadora. Nossa experiência com as produções artísticas mais diversas foi determinantes nesses tempos tão limítrofes. É através dessa convicção que os artistas selecionados na mostra se aproximam. Há uma intenção clara que se sobrepõe a todo esse cenário tão desolador, a de que a arte pode e deve ser umas das bases no processo de transformação que se avizinha.” Afirma Priscyla.

Ivan Grilo, Study fir sky on earth, 2018 (Foto: Filipe Berndt/Casa Triângulo)

“O que terá se passado? É preciso supor que alguma coisa entortou a flecha do tempo, uma potência antiga e também imprevisível que de início preocupou, depois incomodou, até que finalmente dispersou os projetos dos Modernos de outrora.” Latour, Bruno.

Ivan Grilo, Stay resistant. Be brittle, 2019 (Foto: Filipe Berndt/Casa Triângulo)

A gente não sabe o que vai acontecer, nem mesmo o que tem acontecido. Tudo em uma fruição infinita de tempos, acontecimentos e sensações. Resta-nos seguir refletindo, querendo a mudança, criando em diferentes formas de expressão. Da palavra a imagem, dando voz as transmutações do tempo, da história da sociedade e vislumbrar os devires das contelações. Ainda a distância, ainda…

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Um horizonte silencioso – as paisagens analógicas do dinamarquês Adam Jeppesen https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/09/17/um-horizonte-silencioso-as-paisagens-analogicas-do-dinamarques-adam-jeppessen/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/09/17/um-horizonte-silencioso-as-paisagens-analogicas-do-dinamarques-adam-jeppessen/#respond Thu, 17 Sep 2020 11:07:09 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/flatland-camp-2-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=21509 Transitar pelas paisagens inóspitas do dinamarquês Adam Jeppesen é como uma imersão contemplativa e um aquietar dos olhos, receptivos ao acaso.  Também o é para ele que busca, na maioria de suas obras, um contato profundo e meditativo com o entorno que habita para registrar a experiência vivida em suas imagens.

Parts, 2011-2014

Jeppesen – que vive entre a América do Sul e a Dinamarca – está isolado com a família em La Barra no Uruguai, por conta da pandemia, não podendo mais estar no modo “deslocamento e imersão” que o atrai para executar seus projetos fotográficos.

Uncut, 2009, positivo feito durante expedição ao Polo Norte

Entre uma cabana na Finlândia ou na Suécia, e algumas imersões em paisagens desérticas pelo mundo, Jeppesen mergulhou há 10 anos na jornada solitária mais longa de sua vida. A fim de desenvolver uma nova série de fotografias, ele percorreu, do Polo Norte à Antártica em 487 dias, terrenos baldios nos quais todos os valores culturais da sociedade moderna foram se distanciando da noção tradicional do tempo.

Exposição Flatland Camp Project, no Museu Nacional de Fotografia, em Copenhaga, 2012

“Eu meio que deixei esse sentimento de controle tão planejado desde o começo… A ideia era percorrer todo o trajeto de carro, mas vi que não ia rolar. Vendi o carro, comprei uma bicicleta e por meio dela fiquei muito mais conectado com o entono e com a natureza que eu estava habitando, em uma maneira mais primitiva e direta de viajar. Essa viagem foi importantíssima para me distanciar da perfeição e aceitar o acaso”, contou-me durante nosso papo na terça-feira (15).

Folded, 2014-2020

Decidir experimentar esse período como uma maneira mais profunda de ir ao encontro a essência de seu trabalho não era algo novo para Adam Jeppesen, mas a extensão, nesse caso, foi completamente diferente. Ele locomovia-se de acordo com a lua cheia (que era a fonte de luz necessária e precisa para o disparar da câmera), sendo atravessado por histórias e pessoas, mas permanecendo na solidão, resultando em uma série de imagens melancólicas e silenciosas. Jeppesen fazia diariamente suas impressões e elas eram extremamente necessárias para confirmar suas vivências. Apenas suas fotos poderiam dizer que aquele momento realmente aconteceu.

Folded, 2014-2020

As imagens de paisagens remotas e acidentadas são impregnadas de uma sensação de tranquilidade, reflexão e contemplação. Essa busca pela espiritualidade que se encontra na reclusão também aborda a materialidade e a transitoriedade da fotografia como objeto. A viagem foi deixando rastros e manchas visíveis nas fotografias. Cada negativo impregnado de história real e experimentada.  Adam tem um interesse profundo no valor estético desses elementos imperfeitos e na busca do equilíbrio entre pureza, perfeição e dano, abandonando a paisagem física, mas permanecendo fiel à fotografia analógica. Assim, ele segue o conceito “wabi-sabi”  da cultura japonesa, que é a beleza das coisas imperfeitas, transitórias e incompletas.

Generations, 2012

Jeppesen conta-me que a obsessão por registros fotográficos de paisagens desertas vem da necessidade de refletir sobre a experiência universal de perceber a existência real do mundo e do tempo. A percepção é que o mundo existia exatamente assim naquele exato momento de captação, fazendo referência ao fundamento da teoria da fotografia, de capturar o mundo em um instante preciso.

Parts, 2011-2014

O projeto “Flatland Camp” está entre o sonho e o documental, no qual o artista se apropria de técnicas não convencionais no processo de impressão e apresentação das obras.  As fotos foram tiradas com uma câmera de grande formato dos anos 1940 e alguns dos negativos foram arranhados por areia que, coincidentemente, foi parar na caixa de negativos durante a viagem. Jeppesen apropria-se das falhas de uma maneira estética consciente para adicionar uma aura de algo fugaz e inacabado às fotos.

Parts, 2011-2014

Transitando pela fotografia, mas de forma que toda interferência se tornasse um objeto, fragmentando negativos, pontuando a paisagem com micro alfinetes… Em sua última exposição, no Museu Brandts na Dinamarca, Jeppesen absteve-se de toda imagem fotográfica para se manter puramente na escultura, resultando em uma instalação que remetia à memória e à transitoriedade de tudo na vida, em pequenos castelos de areia ou ruínas alinhados no chão.

The Great Filter, instalação no Museu Brandts (Foto: David Sternholm)

Independentemente do suporte final, suas obras trazem uma narrativa de que nada permanece e tudo perece, trazendo o surgimento do novo, do improvável e do acontecimento não controlado. Talvez por isso suas paisagens me atraiam tanto, por levarem a essa reflexão, nem que seja de forma indireta, para os ciclos da vida, das transmutações necessárias para o dia de amanhã.

 

 

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Um corpo multiverso e presente – a obra de Carla Chaim https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/08/27/os-tempos-circulares-de-um-corpo-multiverso-e-presente-a-obra-de-carla-chaim/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/08/27/os-tempos-circulares-de-um-corpo-multiverso-e-presente-a-obra-de-carla-chaim/#respond Thu, 27 Aug 2020 12:20:05 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/MovimentoSingulardoVerde_stills_CarlaChaim_2008-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=21413 “A mão que escreve parece separar-se do corpo e prolongar-se em liberdade bem distante do cérebro, que também se separa do corpo, que por sua vez parece tornar-se aéreo e observar, bem do alto, as frases inesperadas que saem da caneta”

Trecho de um texto de Marinetti, publicado em 1912, enviado pela artista.

Presença, 2015, vídeo – stills

Um corpo no aqui e no agora. Uma ação que provoca um acontecer espontâneo, sem se deter na perfeição do movimento, permitindo o acaso. Mesmo quando se propõe a repetir uma ação para alguma de suas obras, é sempre no primeiro take que encontra o eixo de seus movimentos. Carla Chaim carrega em seu corpo o instrumento de um desenho, de um vestígio em coreografias espontâneas.

Walking on Prefabricated Natures, 2013, vídeo – stills

Seu corpo e sua mente não são unidades individuais. Se funcionassem separados, talvez não chegassem as epifanias corpóreas pautadas pelo improviso que ela busca, longe da razão. A dicotomia entre um e outro não existe, funcionam como uma dupla de ação em suas fotografias, vídeos ou desenhos, carregados de uma geometria precisa, com um domínio da tradição estética do modernismo brasileiro.

Campo Negro, 2013

Um trabalho que passa pelo instável, numa fruição com o espaço que habita, longe do corpo performático, que veste máscaras, na tentativa de adquirir outro corpo.

Sem título (Carbono Vermelho), 2020

“A máscara, a tatuagem e a pintura instalam o corpo em outro espaço, fazem-no entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem deste corpo um fragmento de espaço imaginário que se comunicará com o universo das divindades ou com o universo do outro.”Michel Foucault, “o corpo utópico”.

Risco de Uma Vantagem Cíclica, 2010

Carla Chaim traz nas impressões corpóreas traços circenses, da dança e das artes plásticas e explora o corpo na sua imperfeição, numa busca não exata de cada gesto, sem tantas regras rígidas. Isso não significa ausência de metodologia, pois parte de seu trabalho é puramente o processo, o estudo do entre e do meio, de cada começo e fim. Mas um corpo como tensionador do espaço, seja em movimentos repetitivos ou no simples ato de dobrar um papel.

Sem título (Cobra), 2017, 2018

Em seus últimos trabalhos, sustenta um corpo mais agressivo, com questões políticas, como num ato de vomitar o que não foi possível digerir, muito pertinente ao momento atual do Brasil e do mundo. “O seu corpo, querendo ou não dá uma desenfreada”, afinal, não é o corpo o primeiro a sentir o espaço a sua volta? Não é o corpo que sintomatiza antes da palavra? Que corpo é esse que se sustenta e se locomove pelo espaço? Que afeta e é afetado mutuamente? Essas e tantas outras questões permeiam a pesquisa de Chaim.

Through Woods And Lines, 2013, vídeo – stills

A resposta talvez nunca venha, já que falamos de impermanência, de acontecimentos espontâneos e contínuos. Quando uma resposta vier, já traz outra questão. Em algumas obras, o seu caminhar é o gesto sem finalidade que exige grandes esforços para não chegar a lugar nenhum, numa experiência do próprio “entre” do começo e do fim da ação. Em outros, há o corpo como vestígio e o corpo presente, como um instrumento para desenhar, proporcionando uma nova paisagem. Um corpo acionado como objeto construindo sua gravura, que permite mapear o corpo, numa observação que se completa no espectador.

Project to Resize The Room, 2017, vídeo – stills

“O corpo é o ponto zero do mundo, lá onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo está em parte alguma: ele está no coração do mundo, este pequeno fulcro utópico, a partir do qual eu sonho, falo, avanço, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino.” Michel Foucualt, “Corpo Utópico”.

Paisagens Impossíveis II, 2009-2014

Carla Chaim transita em terrenos movediços que se transformam com o corpo e vice-versa. Um corpo presente, que se move na fluidez do risco, da linha e da pintura, numa multiplicidade de possibilidades de agir e reagir ao espaço-tempo. O tempo de ação do corpo afeta diretamente a obra, ela me diz. Um movimento que se repete por n minutos e se transforma, se embaralha, em um constante devir.

Risco Carbono, 2020

Para a SP-Arte – que nesta edição acontece online – Carla apresenta obras que acusam uma plasticidade do luto. Em busca de novos materiais e novas significações, com as escalas de tons de cinza, ela traz esse corpo vestígio onde os gestos estão refletidos no papel carbono, indicando um tempo passado de ação e, nos outros papeis, um tempo presente/futuro como uma corporeidade fixada em forma de desenho.

Que corpo é esse que vive hoje? Que corpo é esse que viverá depois de tantos hojes instáveis, incompreensíveis e anormais? Quais as marcas que ela e nós carregaremos em nossos gestos no amanhã? Que parte de nós será preciso que morra e qual será necessária manter-se viva?

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‘Olha, está nuviscando’ – As nuvens inventadas do artista holandês Berndnaut Smilde https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/07/23/olha-esta-nuviscando-as-nuvens-inventadas-do-artista-holandes-berndnaut-smilde/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/07/23/olha-esta-nuviscando-as-nuvens-inventadas-do-artista-holandes-berndnaut-smilde/#respond Thu, 23 Jul 2020 10:52:04 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/NimbusDioclezianoAulaV-72-copy-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=21217 O que amor desalinha

O céu não basta por coberta

Como a nuvem:

o peito

já nascido desfeito

O dedo do menino

ínfimo, aponta o infinito:

olha, está nuviscando!

A nuvem espreita

os olhos do menino

e, em espelho,

vê o céu onde nasceu.

Poema “Nuvem” do livro  Vagas e Lumes, de Mia Couto

Nimbus De.Groen, 2017 (Foto:Berndnaut Smilde, Ronchini Gallery)

Paralisar o que está sempre em movimento. O que remete a passagem do tempo, do dia, da noite e que anuncia o que está por vir. Aquele aglomerado de gotas diminutas de água ou de cristais de gelo em suspensão no ar, um chamado à contemplação. Vive em um infindável devir. Ora branca como a neve, ora em assombrosos tons cinzentos. Às vezes, beira os tons rosados, exuberante em seu estado denso, ou sutil como ópera ou uma canção de ninar. Permitem os encontros, de coletivos ou de alguns poucos individuais. Tornam-se um bloco no céu azul ou um sopro esparramado, quase transparente, que se junta ao horizonte ou atravessa uma montanha.

Nimbus Roebourne, 2017 (Foto:Berndnaut Smilde, Ronchini Gallery)

As nuvens estimulam o olhar. Acompanham o vento em danças contínuas, lentas e ritmadas, sem nunca repetir a coreografia. É a separação entre dois mundos cósmicos em um devir de metamorfoses, em sua natureza confusa, indefinida e impermanente. Na mitologia greco-romana, representam a morada dos deuses. Na cultura islâmica, é a nebulosidade da vida.

(Foto:Berndnaut Smilde, Ronchini Gallery)

A nuvem, tão cheia de simbolismos e mutações, é um dos temas centrais da obra do artista holandês Berndnaut Smilde com quem bati um papo na terça-feira (21). Sempre fascinado pelas dualidades desse fenômeno natural, decidiu construir e paralisar por alguns segundos, em um clique fotográfico, algumas nuvens pelo mundo.

Ele, que sempre trabalhou com instalações e fotografias, em 2010 criou sua primeira nuvem, em uma sala em miniatura onde tudo podia ser controlado. Dois anos depois, essa imagem viralizou e, desde então, suas nuvens já habitaram alguns museus e edifícios históricos pelo mundo, já em larga escala.

Nimbus MAXXI, 2018 (Foto:Berndnaut Smilde, Ronchini Gallery)

O céu holandês e a luz do país já são conhecidas na história da arte, por sua potência difusa e um brilho particular que preenche quadros de inúmeros pintores. “Como não temos montanhas, 2/3 das sensações que você tem é o céu, e a luz que muda e é quase o tempo todo refletidas nas águas do país. Esse lado romântico das pinturas com nuvens sempre me atraiu. E também o lado da mutação constante”, conta o artista.

Nimbus Katoenveem, 2018 (Foto:Berndnaut Smilde, Ronchini Gallery)

Ocupar edifícios históricos que já foram palco para esculturas, pinturas e instalações, com essas nuvens construídas é fascinante, contou-me Smilde. Os contrastes entre esses espaços, as texturas, os brilhos, as rachaduras na parede, as cores, nessa atmosfera incontrolável e sempre única. Perguntei se ele não ficava atiçado por fazer disso uma performance, um vídeo-arte, um “happening, e ele me contou que o que importa é o registro do que aconteceu ali dentro do espaço. A solitude que ele vive em cada nuvem inventada. Como todo o entorno importa para a nuvem, quanto menos pessoas respirando na sala, mais “controlável”, afinal elas são água, gelo seco, e uma luz imitando o sol no contra. Ele fez um vídeo em “slow motion de uma nuvem em movimento, mas completamente em outro contexto: em um estúdio escuro. “Mas mesmo podendo ver o dançar das nuvens ali, é de algo que já aconteceu. Estamos sempre falando do passado.”

Nimbus de Toekomst 2, 2019 (Foto:Berndnaut Smilde, Ronchini Gallery)

O espaço entre os acontecimentos, o que é, já se torna o não ser em milésimos de segundos está sempre presente em sua obra. “Se você chega muito perto de algo que parecia existir, já não é aquilo que você olhou de longe, também. Aquela ‘coisa’ já desapareceu”. Lidar com o não durável tem seu fascínio, porque a ação pode se repetir, mas sempre de uma outra forma. O mecanismo de criar essas nuvens é sempre o mesmo, mas lidar com o incontrolável é o que ele adora. Isso acontece o tempo todo… ainda mais agora onde a imaginação é o que temos nesses dias e as informações e imagens de tudo na internet. Por mais que a gente congele ou salve como referência na nossa “apple iCloud, nunca encontraremos a referência como tal. O céu de algum lugar já não será mais aquele céu quando a gente chegar.

Nimbus Cukurcuma, 2013 (Foto:Berndnaut Smilde, Ronchini Gallery)

A dualidade de sua obra em ter algo construído pelo homem que não se torna matéria palpável. É o puro efêmero em um mundo absolutamente materialista. Não se pode sustentar, segurar e manter a nuvem.  Existe a presença na ausência o tempo todo. Um piscar de olhos e ela já não está mais ali. Uma massa amorfa que pode ser experimentada apenas de longe, não podendo nos tornar participantes ativos dela. Na natureza real também é assim… Olhar para o céu parece quase meditativo, um cinema ao ar livre onde encontros e desencontros acontecem e talvez só você veja. Os fenômenos naturais precisam de olhos atentos, curiosos, à procura da contemplação. Em dias de isolamento acompanhar as transformações naturais, se tornou algo mais presente. Poder atentar-se aos pequenos acontecimentos a nossa volta.

At Teresa’s, BMoCA, Boulder Colorado, 2015 (Foto:Berndnaut Smilde, Ronchini Gallery)

Além das nuvens, ele também cria arco-íris pelo mundo, e busca coletar os pontos antipodais no globo – pontos diametralmente opostos na Terra – e mergulha em uma reflexão de que tudo está absolutamente ligado e que nós, humanos, fomos nos diferenciando com invenção de idiomas, culturas e religiões. “A questão de transitar pelo mundo e sempre imaginar a Terra de cima, perceber que quase tudo é água e que só estamos em lados opostos, é muito intrigante”. As nuvens são fenômenos efêmeros, mas que existem com uma certeza: neste momento, em algum canto do planeta, há um céu cheio de nuvens. A obra de Berndnaut Smilde nos permite imaginar que em alguma parede de algum dos quatro cantos da Terra também existam nuvens que, ao invés de deixar nossos horizontes mais nublados, torna-os mais leves e poéticos.

 

 

 

 

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