Entretempos https://entretempos.blogfolha.uol.com.br Artes visuais diluídas em diferentes suportes, no Brasil e pelo mundo Sun, 28 Nov 2021 14:42:12 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Mais vale adiar o dia – Ensaio Palavra-Imagem com Ana Martins Marques e Felix Gonzalez-Torres https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/16/mais-vale-adiar-o-dia-ensaio-palavra-imagem-com-ana-martins-marques-e-felix-gonzalez-torres/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/16/mais-vale-adiar-o-dia-ensaio-palavra-imagem-com-ana-martins-marques-e-felix-gonzalez-torres/#respond Sun, 16 May 2021 11:23:33 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/perfect-lovers120220-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22263 Combinar as palavras sempre tão bonitas da poeta Ana Martins Marques com as obras do cubano-americano Felix Gonzalez-Torres (1957-1996) neste Ensaio Palavra-Imagem de hoje me faz sentir aquela alegria profunda. Ana, autora de “Da arte das armadilhas” (Prêmio Biblioteca Nacional em 2012) e “O livro das semelhanças” (2015) lançará em junho pela Companhia das Letras (já em pré-venda) seu mais novo livro “Risque esta palavra”. Eu já sabia que estava para sair suas palavras novas e precisas, mas depois de ler um trecho no Jornal Literário Pernambuco em uma dessas noites frias, só conseguia pensar nas imagens de Felix. Pareciam feitas umas para a outras, como se fossem um prolongamento natural. Quando dei a ideia, Ana me disse que adorava o trabalho dele e tive a sensação de que o diálogo entre esses dois artistas seria lindo. Conhecido por suas instalações, boa parte da obra de Felix González-Torres é baseada na sua experiência diante da pandemia de Aids. Ele perdeu seu companheiro para a doença e, algum tempo depois, ele mesmo foi vítima do vírus HIV nos anos 1990. Suas obras trazem o rastro, o tempo, a memória e a saudade e, junto com Ana Martins Marques, provocam um daqueles ensaios que fazem a gente suspirar, refletir e sentir.

 Alba

 

É dia

e daí?

Relógios e amantes

acordam em desacordo.

Por que levantar agora?

A noite não foi cheia de afazeres,

como um dia de escritório?

Não é também labor

uma noite de amor?

Como o corpo desses livros

que lemos no leito

o seu não guardou as marcas

do meu manuseio lento?

Mais vale adiar o dia.

O alarme do celular:

que triste cotovia.

O que eu mais gosto do teu corpo

 

 A parte do teu corpo

que procura pelo sol

como os gatos pela casa

 

a parte que permanece imóvel

quando cantas, a que se move

quando estás parado

 

a parte que apenas a mim

e de relance, por descuido

revelaste

 

a parte onde guardas as memórias

de infância, a parte que ainda anseia

pelo futuro

 

a parte que demora

a acordar

depois que acordaste

 

a parte que discorda

ainda de mim

quando já cedeste

 

aquela que adere

mais fortemente

ao teu nome

 

a parte que guarda

silêncio enquanto

falas

 

a parte que

quando estás cansado

ainda não se cansou

 

a parte ainda noturna

quando é dia, diurna

quando é noite

 

a parte que

tem parte

com o mar

Aquele quarto de hotel

 

O tempo concentra-se no encontro

como a doçura no figo

confundem-se teu nome e o nome do mar

estrangeiro

teu corpo e a laranjeira acesa

no pátio do hotel

e ainda todas as pequenas coisas

que não aconteceram

a partir deste encontro

para nenhum futuro

“Untitled” (Double Portrait), 1991

Porque sua camiseta secou ao sol ela tem a cor do sol

porque seus cabelos secaram ao vento seus pensamentos têm

a velocidade do vento

 

porque você disse noite sua boca

tem o gosto do mar noturno

 

porque você não conheceu meu avô você me amará menos

porque não te conheci quando criança eu te amarei mais

 

porque você conheceu meus livros antes de me conhecer

você nunca vai me conhecer

Untitled (The End), 1990

 

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No fundo da última gaveta da cômoda – Ensaio Palavra-Imagem com Sofia Boito https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/09/no-fundo-da-ultima-gaveta-da-comoda-ensaio-palavra-imagem-com-sofia-boito/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/05/09/no-fundo-da-ultima-gaveta-da-comoda-ensaio-palavra-imagem-com-sofia-boito/#respond Sun, 09 May 2021 10:27:57 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/envelopes2-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22248 Este Ensaio Palavra-Imagem veio diferente. Foi pensado, discutido e elaborado com Sofia Boito ao longo de duas semanas. Mais do que imagens que servissem como inspiração para as palavras de Boito, o Ensaio pedia o oposto disso. Não cabia dar rostos ou figurar a palavra, mas deixar no vestígio, nos rastros, no que foi, no que poderia ter sido e no que será. O nome do seu primeiro livro, “No fundo da última gaveta da cômoda”, lançado este ano pela editora Patuá, disparou o pensar-imagem: uma mistura de memórias da família de Boito com álbuns antigos dos meus avós. Sofia Boito é uma artista-pesquisadora, interessada em linguagens de fronteira entre artes cênicas, literatura e artes visuais. Doutora e Mestre em Artes Cênicas pela ECA-USP, realizou um ano de pesquisa de doutorado na Sorbonne Nouvelle. Interessada em obras site-specific, em questões de gênero e no trabalho a partir de seu próprio corpo, tenta estabelecer uma investigação teórico-prática encarnada. Atualmente, é professora temporária no departamento de Artes Cênicas da ECA-USP (2019-2021). O resultado deste Ensaio é de um tempo. Tempo este que você escolhe qual é.

Fotografias em 10X15

Ela na cama,

e, então, fechando os olhos, está numa noite de dezembro, sentindo aquele cheiro úmido do jardim inundado de luzes de natal. Mas é julho e daqui alguns dias fará aniversário.  As meias aqueciam demais os pés fora de época, os cobertores se embolavam entre as coxas… puxava os tecidos, descobria os membros e passava frio. Levantava. O banheiro parecia lhe chamar a cada minuto. E pensa – de porta aberta enquanto escuto o xixi batendo no vaso – que se pudesse escolher estaria na semana do natal, voaria seis meses à frente, em direção ao futuro, ou voltaria seis meses atrás, em direção a si mesma. Na mente desfilavam assuntos – nenhum de ordem onírica, todos tão ásperos e duros como grandes móveis que não podiam passar pela porta -. Os pensamentos encalhavam e ficavam, assim, no meio do caminho,  não deixando ela sair nem se desvencilhar. Se pudesse escolher algum mês: dezembro; se fosse para escolher algum dia: segunda; se desse para ser alguma outra hora: meio-dia. Mas, ao invés disso, era sábado em uma madrugada quente de inverno. Uma madrugada que, quanto mais adentrava a escuridão, mais se tornava estupidamente insone e dolorosa. Voltava a cabeça para uma posição desconhecida. Imaginava sonhos possíveis. Tentava em vão se convencer de que o mundo onírico poderia lhe salvar – apesar de ter passado a noite anterior imersa nos piores pesadelos. Lembrava que em algum momento da vida já pudera escolher quem encontrar nas horas adormecidas. Fechava os olhos e decidia para onde e com quem ir. Mas naquela altura as costas doíam e lhe parecia que a hora de adormecer já tinha passado, como se houvesse, afinal, uma hora que não poderia ser escolhida, mas apenas colhida como um fruto que está, naquele exato instante, no ponto.

Ela tomando um vinho no sofá,

como se estivesse sozinha. E estamos. Todos. É acordar e perceber isso, que ela já sabe, a cada sete dias. A segunda-feira consegue ser um alívio, a rotina, dela, só dela, pode ser um respiro. Um dia ela escreveu algo assim: “Hoje me injetei mais uma vez de domingo e domingo é morrer um pouco.” Domingo é estar em um lugar que lhe colocaram, não é o dia em si, é a descoberta de uma natureza dela, é se perceber aqui dentro, de si, sozinha, um lugar em que me colocaram e no qual só eu posso estar. É um fim trágico, domingo, de um herói que se encontra no final, sem saída. É a culminação de tudo, é um pequeno fim de mundo, mini-apocalipse… “Um dia eu vou acabar em um domingo.” É falar do mundo e de tudo consigo mesma, sem ter fim. E nesse falar perceber, sempre, que o mundo é essa coisa horrível que está aí fora – A vida essa coisa linda e triste que está aqui dentro. Percebe? Que a dor permeia tudo, e não pode haver fim? Até que haja realmente? Ela costuma sonhar sempre que está prestes a morrer. São sonhos ruins, mas ela nunca acaba  realmente morrendo. Seu corpo, a ponto de sucumbir, acorda. É como se ela estivesse se preparando, e não dói, é uma sensação pura, de redenção. É finalmente a dor se esvaindo… Ela não pode acabar com os domingos, porque ela precisa deles. Ela precisa ainda sentir-se viva. Já tentou disfarçá-los de sábado, mas o domingo retorna fantasiado de qualquer outro dia. Como um herói trágico. O domingo. Um dia. Vai ser seu fim. E tudo bem, porque enquanto não é assim sente que a dor que toma seu sangue é uma dor simples. Uma dor que não machuca mais que o necessário. É como o fim de uma longa viagem, é olhar para as fotos que estão em uma gaveta e precisam ser olhadas… Com toda a saudade e alegria que isso possa causar. Essas duas últimas semanas tiveram muitos domingos. E isso acontece, às vezes. É quando todos os dias se rebelam e resolvem descansar, domingo é o sétimo dia, dizem que nele Deus descansou. E tudo parou, e tudo se doeu enormemente. Há de ter sido a primeira dor da história…

Instantâneo fotográfico

A Praia de Copacabana

Uma mulher cava um buraco na areia. O céu brilha de estrelas cristalinas. O passado não existe. Janis Joplin toca na vitrola do primeiro andar em um labirinto de fumaça. A mulher faz uma ligação. Um homem a encontra na esquina. O ar está frio para dezembro. Eles rumam em direção ao nada. O mar bate nas pedras. Grandes aracnídeos. Pequeno quarto com vista para a praia. A prostituta passa acompanhada. Os alemães só vêm para o Brasil para fazer turismo sexual. A passagem do tempo é mais cruel para as mulheres. Passa batom na boca, passa. E não come chocolate, não há metafísica nenhuma em barras de cacau. O homem no farol vende a um real. Fura o vermelho. E se lança no asfalto.

FOTOS 3X4

 

querer ser vento

querer soprar do fundo

do pulmão da terra

sair voando, sem tempo

 

invadir os espaços

carregar o mundo em redemoinho

derrubar as placas

as sinalizações

 

rasgar os peitos e deixá-los nus

corações expostos

ser o precipício

a queda livre

 

o segundo que antecede o choque

as nuvens

o vapor

o último suspiro

 

invisível e profundo

inaudível  e triste

imperceptível e selvagem

para que os homens tentem me inventar e não consigam

UM CARTÃO-POSTAL

Vista do Rio Sena, Quai d’Orléans, Île Saint-Louis, Paris.

 Estou sentada à beira do rio, bebendo um gole d’água, sob a sombra de uma  árvore, descansando as pernas pesadas. Hoje: dia desses em se que acorda no meio da noite com a sensação interna de que vai desaparecer pelos orifícios do corpo, em que sente a cabeça latejando por conta do calor impiedoso, um dia comum e quente, as pessoas passando à minha volta, aproveitando o feriado, tomando sorvete, refrescando-se com água gelada… É num dia como esse que se pensa… Nada pode ser tão terrível assim. O corpo sente a opressão do sol, mas tudo passará quando a noite cair – lá pelas 21:30h – quando o céu de um azul celeste se tornará azul marinho, para depois se tornar negro… A ordem da vida segue. É o que ela sente, tomando um gole d’água que desce pela garganta gelando momentaneamente os dentes e depois o cérebro. As escolhas que fazemos – impreterivelmente – são muitas, porém pequenas. São poucas as escolhas que farão realmente diferença. Que verbo usar? Utilizar este ou aquele pronome? A literatura não é na realidade tanto. Nem tão pouco. Apenas é. Um conjunto de palavras colocadas umas depois das outras, que formarão frases, parágrafos, páginas… E que mais alguém chamará – ou não – de literatura. O processo contínuo de existência. De escrita. De leitura. Do outro. De textos não escritos e que ainda estão por vir. Ao meu lado uma gaivota olha para o nada – em uma surpreendente atitude de contemplação. Mas ela não contempla. Ela sente o ar parado, antigo, nostálgico e ao mesmo tempo tão vivo desta cidade luz. Os homens, mulheres, crianças, um dia se tornarão velhos, velhas, adultos e se lembrarão – cada um deles – de uma forma diversa deste dia. Ninguém está à altura de ninguém. Ninguém está à altura da gaivota que contempla. Nas profundezas deste rio urbano, controlado, que perdeu aparentemente seu estado selvagem, uma correnteza fria consola a atmosfera quente. Uma brisa que sopra dos pulmões do mundo e que não se sabe. O silêncio do calor ecoa. Ninguém tem coragem ou energia de soltar um GRITO num dia desses. Nem mesmo ela, no momento em que acordou de madrugada com a nítida sensação de que estava desvanecendo. Ela não esgotará as possibilidades… Não cantará às gaivotas, não criará alegorias… Ela não contemplará as nuvens – que não estão ali. Ela não se jogará no vazio. Não conhecerá uma cartomante. Não lerá seu futuro em uma palma de mão. Ela não descobrirá o mistério da vida em um letreiro. Não mudará o rumo da humanidade. Ela não conhecerá o dia de sua morte. Nem se reconhecerá no silêncio. Ela não fará cálculos inimagináveis. Não inventará movimentos, não escreverá manifestos… Ela é muda, cega e surda; mas ao mesmo tempo é completamente saudável. Ela não caminhará de olhos fechados. Não pegará nas mãos de um estranho. Não aprenderá o significado de nenhuma palavra. Ela não se lançará da ponte e tampouco cravará no muro um coração com uma seta. Não arrancará pedaços do pavimento, nunca construirá barricadas. Não fará a revolução, não atravessará a avenida em chamas. Não desaparecerá sem deixar rastros. Ela não se afundará no solo. Nem deixará marcas. Ela não inventará versos. Não comunicará o som de sua verdade. Não conseguirá alcançar o topo. Não cravará nenhuma bandeira. Não se perderá para sempre em ruas avenidas calçadas ou continentes…Não desenhará um mapa-múndi. Não saberá a medida de seus erros e tampouco conhecerá a dimensão de seus acertos. Pois sou apenas isto que vemos sentada à beira do rio. Parte da paisagem, como todos. Eu aumentarei os teus batimentos cardíacos. Suarei por todos os poros. Desmaiarei enquanto durmo e morrerei num dia desses em que o calor nos aproxima e nos afasta.

E todos nós sucumbiremos às forças do clima para acabar nos abraçando em pensamento…

 

 

 

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Infinitude movente – uma coleção de nuvens na arte contemporânea para refletir sobre o tempo https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/infinitude-movente-uma-colecao-de-nuvens-na-arte-contemporanea-para-refletir-sobre-o-tempo/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/infinitude-movente-uma-colecao-de-nuvens-na-arte-contemporanea-para-refletir-sobre-o-tempo/#respond Thu, 25 Mar 2021 19:26:17 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/nuvens-11-Vik_Muniz_1-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22067 “Vamos sonhar com o efêmero, e demoremo-nos um pouco mais na formosa tolice das coisas.” Kakuzo Okakura

Leandro Erlich

Sempre estive desperta a pequenos rituais diários que permitissem a porosidade das coisas, a tempos suspensos, vividos segundo por segundo em seus micro acontecimentos, respeitando os brilhos, as sombras, os aromas e todas as mutações que o tempo carrega. Talvez, desde o início da pandemia há um ano, cada mini ritual tenha mais importância a cada dia que passa entre o ontem e o amanhã. Octavio Paz define: “instante privilegiado da corrente temporal, ungido com uma luz especial. Nesse aqui e nesse agora algo principia. O tempo cronológico sofre uma transformação decisiva: cessa de fluir, deixa de ser sucessão instante que vem depois e antes outros idênticos e se converte em começo de outra coisa.” Observar os ciclos que se formam ao nosso redor e deixar que nos atravessem em forma de imagem, palavra ou de um profundo suspiro. 

Fabian Burgy

“O presente é a infinitude movente, a esfera legítima do relativo… O taoísmo aceita o mundano conforme é e, diferentemente dos confucianos e dos burgueses, tenta encontrar beleza em nosso mundo de angústia e inquietude. ” Kakuzo Okakura

Glenda León

Há duas semanas participei do Curso-Experiência “Chanoyu – a essência da arte do chá com a Erika Kobayashi na plataforma Momonoki. Dois sábados de tempos suspensos com um apanhado de conceitos importantes da cultura japonesa que se expressam através da cerimônia do chá, passando por aspectos históricos, filosóficos e estéticos refletidos pelo olhar contemporâneo de Erika, que começou a estudar a cerimônia do chá em 2011. Mestre em Sociologia pela Sorbonne, ela faz parte do “World Tea Gathering, grupo de artistas que compartilham a essência da cerimônia do chá no mundo contemporâneo, tendo feito performances em diversas capitais desse mundo. Eu precisaria de anos para entender todas as sutilezas e nuances que permeiam o universo do chá, mas essas duas aulas já foram um bálsamo para o meu ser-sensível abrir-se à porosidade dos pequenos acontecimentos. 

Olafur Eliasson

“A utilidade de um jarro de água está no vazio onde a água pode ser posta, não na forma do jarro ou no material de que ele é feito. O vácuo é todo poderoso porque tudo contém. Só no vácuo o movimento se torna possível. Aquele que fizer de si mesmo um vácuo, no qual outros possam entrar livremente, se tornará dono de todas as situações. O todo sempre domina a parte.” Kakuzo Okakura

Ian Fisher

Habitar a morada do vazio que abriga um impulso poético, leva ao vácuo que tudo contém, criando rituais que atravessem a poeira do mundo que chamamos de cotidiano. A sala do chá é como um refúgio para o viajante, da mesma forma que o corpo é um refúgio viajante para a alma. Kazuo Ohno, o maior nome do butô, diz para não termos receio do nada, da pausa, do silêncio, pois o espaço vazio é um espaço cheio e é nele que precisamos submergir.

Araki Nobuyoshi
Vik Muniz

“O aposento do chá era um oásis no monótono deserto da existência, um lugar onde viajantes exaustos podiam se encontrar para beber dessa fonte comunitária que é a apreciação da arte.” Kakuzo Okakura

Cailtin r.c. Brown & Wayne Garrett

Com isso tudo voltei ao meu “O livro do chá”, de Kakuzo Okakura, para pensar esses conceitos japoneses e relacionar com a arte. “Mas são conectados?’ vocês podem se perguntar.  Na minha forma de enxergar arte, sim. Cada artista cria seus pequenos rituais para se conectar ao processo criativo. Cada espectador também, para aguçar o sensorial, abrir canais e penetrar no significado de cada obra ou simplesmente observá-la por horas. O caminho que uma obra percorre até cada um de nós é único e reverbera de acordo com o nosso repertório. Apesar de se propor uma experiência coletiva, quando se está no presencial.

Benjamin Lozninger

Diante dessa experiência e desses devaneios, decidi fazer uma seleção de imagens de nuvens de diferentes artistas para ilustrar o tempo: algum tempo, nosso tempo ou a ausência dele. Talvez seja um convite para visitar o avesso de todas as coisas e a imensidão íntima das pequenas coisas. Estar presente no aqui-agora e a apropriação do devir.

Daniel Arsham
Rinko Kawauchi
Tomas Saraceno
Berdnaut Smilde
Candice Japiassu
Kohei Nawa
Cassiana Der Haroutiounian
Calen Knauf
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O instante imóvel entre um tempo e outro – Ensaio Palavra-Imagem com Iara Biderman e Wang Wei https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/03/21/o-instante-imovel-entre-um-tempo-e-outro-ensaio-palavra-imagem-com-iara-biderman-e-wang-wei/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2021/03/21/o-instante-imovel-entre-um-tempo-e-outro-ensaio-palavra-imagem-com-iara-biderman-e-wang-wei/#respond Sun, 21 Mar 2021 12:13:55 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/Screen-Shot-2021-03-18-at-06.57.36-320x213.png https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=22060 O Ensaio Palavra-Imagem chega hoje com o ritmo do vento, que nos tira do lugar, provocando novos pontos de fuga invisíveis e soprando as palavras. É o que nos resta nos dias habitados do hoje. Com a palavra, a jornalista Iara Biderman, que escreve sobre dança e outras artes do corpo e das palavras, além de refletir sobre saúde, comportamento, educação, cultura e o que mais vier. Freelancer, Iara vive nessa polifonia – ou tenta viver, porque é disso que gosta. Com a imagem, o chinês Wang Wei, que é bom em usar uma visão nova para expressar a paixão e o impulso da juventude atual. Essa atitude “jovem, selvagem e livre” transborda em cada uma de suas fotos e cria um mundo único para ele e para os espectadores. O resultado entre os dois é uma dança-salto livre imaginada, sonhada e idealizada.

 

Quando nasceu, um anjo torto tremeu as asas e disse: vai Wang, e era quase uma cacofonia.

Recebo de Cassiana um convite para o escrever aqui: palavra imagem entretempos. Algo com dança.

Chegam as imagens, o instante imóvel entre um tempo e outro dos movimentos. Fotos de Wang Wei, um chinês do insta. Nunca ouvi, vou atrás. Seguir.

Wang Wei é um fotógrafo de moda. Vive e trabalha em Beijing, onde captura a cultura underground da juventude chinesa — sua série de fotos mais famosa, parece, chama-se “Jovens, selvagens e livres”, tudo o que gostariamos de ser agora, aqui, nesse mundo velho, doente e encarcerado.

O anjo esconde o rosto, constrangido. Não quer ver o corpo nu enrolado no plástico, uma dança de vento, olha, não são asas nascendo nas costas? Ou não quer ver a criatura ao se levantar, grudado na pele o plástico usado para se proteger à noite, ao deitar-se numa esquina da Beijing como os sem-teto de Santa Cecília?

Não precisa ser nada jornalístico, é palavra imagem. Como fotografar o movimento antes que escape. Na dança, a melhor foto é tirada um milímetro antes do ápice do movimento, o lugar impossível onde está contido inteiro, em silêncio. Escuta: o plástico dança a música do vento, o anjo tapou os ouvidos, coitado, não pode ouvir. Confunde-se entre as músicas das baladas, as buzinas de Beijing, prateleiras de supermercado, a minissaia vermelha da menina de coxas pálidas.

Um dia Wang Wei fugiu da cidade e seguiu os olhos do anjo para inventar uma dança no campo. Porque o fotógrafo chinês é muito jovem, nem trinta anos, ainda, e gosta de moda, e corpos, e meninas sem blusa escondendo os seios com hambúrgueres do McDonalds, e a dança dos casais transando embaixo da escada.

Antes de ser jovem, selvagem e livre, Wang Wei foi poeta e pintor, no século 8. Suas palavras imagens eram a natureza. Silêncio. Em 1988, no suplemento Folhetim, desta Folha de São Paulo, o poeta Haroldo de Campos publicou “Três versões do impossível”, transposição criativa de três poemas de Wang Wei, o velho. Uma delas, “O Refúgio dos Cervos”:

Montanha vazia não se vê ninguém

ouvir só se ouve um alguém de ecos

raios do poente filtram na espessura

um reflexo ainda luz no musgo  verde

Quando Wang Wei, o jovem, seguiu o anjo, encontrou o corpo nu e ereto sobre a grama verde, nem novo, nem antigo, dançando a música do vento. O fotógrafo viu tudo enquanto o anjo tapava os olhos e ouvidos com suas asas.

Mas como era um anjo de verdade, enxergou. E como era um anjo de verdade, caiu. E manchou com sua sombra a grama verde. Deixou suas roupas brancas na noite, e vestiu vermelho, que é uma cor mais adequada para os anjos caídos e o fotógrafo gosta muito de cores sólidas e da vibração vermelha no musgo verde. Então o anjo abriu uma asa, na diagonal, a outra mão e um pé bem fincados na terra.

 

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À procura de coisas imprecisas – Ensaio Palavra-Imagem com Marcelo Amorim e Nino Cais https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/12/13/a-procura-de-coisas-imprecisas-ensaio-palavra-imagem-com-marcelo-amorim-e-nino-cais/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/12/13/a-procura-de-coisas-imprecisas-ensaio-palavra-imagem-com-marcelo-amorim-e-nino-cais/#respond Sun, 13 Dec 2020 10:39:23 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/90C79700-5D09-4018-AADC-C144BF781760-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=21820 Para esta edição do Ensaio Palavra-Imagem, decidi convidar os artistas Nino Cais e Marcelo Amorim. Os dois – que se conhecem desde 2005 – carregam uma linda amizade e inúmeros projetos de fomento criativo na história. Desde 2009, juntos com a também artista Carla Chaim, criaram o “Hermes”  – palco de tantos devaneios artísticos – e mantém o “Fonte”, ateliê que recebe residentes do Brasil e do mundo, desde 2013. Eles estão sempre juntos. Percorrer o circuito Vila Madalena/Pinheiros – quando isso era mais frequente – era como marcar um encontro com os dois, que certamente estariam por ali, explorando os arredores. Cada um deles, com seu olhar crítico e bonito, se complementa. Eles estão juntos nesse ensaio, que traz a arte, mas também um quentinho no coração. Amorim com suas palavras nostálgicas e precisas e Cais com suas obras emblemáticas de cadeiras. O mundo, principalmente agora, precisa mais e mais de amizades e parcerias como essa.

Nino querido,

Lembrei que a gente se conheceu em um ônibus! Você estava sentado no fundo e usava óculos escuros. Quando o ônibus parou descobrimos que nós dois estávamos a caminho de um mesmo destino, um museu. Nós também estávamos a caminho do trabalho. O seu trabalho naquele momento era ficar sentado algumas horas por dia no espaço expositivo costurando uma camisa que tinha inúmeras tiras pensadas para amarrar e carregar objetos com você. O meu trabalho naquele momento era nos bastidores, diagramando livros, textos, convites.

Eu também estive nos bastidores da maioria dos seus projetos desde então, seja fotografando, escrevendo, editando, dialogando com você. Nós estabelecemos essa cumplicidade em que um constantemente observa o trabalho do outro. Como é difícil ver a si mesmo! É da planície que se observa melhor a montanha, afinal quem escala a montanha deve apenas concentrar-se para não despencar das alturas. Nas nossas excursões aos sebos, antiquários, mercados de pulgas, nunca sabíamos ao certo o que estávamos procurando. Ali ficava claro como nosso olhar havia se tornado sensível ao trabalho do outro, sempre encontrando com mais facilidade os tesouros alinhados à pesquisa do outro. E é desse ponto de vista cúmplice que tenho te observado há anos.

Sua relação com os objetos naquele espaço expositivo me deixava curioso e ainda me instiga. Você sentava atrás de uma máquina de costura e, ao fundo, ferramentas muito brutas e objetos do reino doméstico estavam dispostos na parede. Também me recordo dos seus primeiros desenhos que eram praticamente abstratos, você os chamava de nós. Os mesmos nós que você dava com as tiras da camisa ao redor dos objetos.

Você descrevia os nós como um lugar de silêncio e eram demarcados no papel com manchas de bastão oleoso. Os desenhos sempre foram de alguma maneira projetos, ideias para possíveis ou impossíveis instalações. As marcas, que eram de um bastão vermelho, pareciam indicar pontos inflamados, sensações. Mas eram também indícios de outras materialidades ainda imprecisas que somavam às estruturas enxutas dos objetos.

Os objetos que te circundavam passavam a fazer parte dos desenhos e das instalações e assim o repertório, que era de louças e vidros da casa da sua mãe, virou objetos de plástico, encontrados no comércio popular do Largo da Batata após sua mudança de endereço. Andávamos a pé rapidamente, num passo apertado, sempre carregando muitas sacolas. Íamos nas lojas de móveis usados, nos sebos, sempre em busca de alguma coisa imprecisa. Às vezes comprávamos coisas que se revelavam inúteis para o seu processo e você as doava para outras pessoas rapidamente sem pensar muito em quanto custaram ou que outra serventia poderiam ter.

Sempre lembro de uma cena de um filme chamado “Correndo com tesouras”. O filho chega na casa da mãe e fala que vai fazer um chá. Abrindo os armários da cozinha, encontra-os vazios. Ele pergunta pra mãe sobre a louça e ela diz que colocou a louça disposta no chão do quintal para receber o luar. Ele não tem dúvida e chama a ambulância internando a mãe em um hospício. Eu acho que já cheguei na sua casa e vi cenas parecidas, inúmeros objetos de diversas procedências em composições sem aparente função ou sentido. Eram sempre um mistério pra mim mas também representavam a libertação da casa e seus padrões de condicionamento. A mulher do filme não queria apenas lavar e guardar a louça, ela queria poesia. Eu também acho justo querer mais da casa, quero poder usá-la de outra forma, em outros horários, talvez derrubar algumas paredes…

Mas eis que enfim os objetos povoaram o papel se organizando em composições pouco comuns. Pilhas de objetos. Bules, xícaras, enxadas, martelos, bancos e cadeiras de madeira. Só depois seu corpo também entrou nas composições como um objeto a mais.

Quando perguntaram a você em que momento aconteceu a virada para a entrada do seu próprio corpo no trabalho, a resposta veio das cadeiras. A cadeira chamava o corpo. Era sempre o desenho de uma cadeira antiga, austera, de madeira, quase a ideia da cadeira.

Quando vejo essa série de desenhos mais recentes não consigo desligar de toda essa história que presenciei. A novidade que percebo nesses desenhos vem a ser o design das cadeiras. Não se trata mais daquela cadeira vinda de uma memória interpessoal. Aquela que é a memória do corpo, que era a pura necessidade de acomodar o corpo. Soma-se mais essa camada do design, um projeto utópico de modernidade que pretendia levar arte para todos através da escala industrial, mas que falhou, se diluiu, se perverteu na criação de objetos de consumo e distinção social.

Algumas delas parecem vir de um catálogo ou de uma revista de decoração. Elas trazem também um sinal que não é apenas um valor de uso mas também um valor simbólico. Os desenhos poderiam ser mais uma observação a respeito do lugar da arte: mesmo cheio de intenções e desejos mais profundos, vem a ser sempre tão próximo do lugar da decoração, do design de interiores. Uma arte docilizada, disposta e arranjada meticulosamente em um cenário pensado para persuadir, instrumentalizada para ser esse sinal de distinção em imóveis de alto padrão. Você fez uma exposição que abordava esse assunto e se chamava Decor, lembra? O espaço era forrado por papéis de parede e em alguns momentos o mesmo papel de parede também aparecia emoldurado.

Eu olho para essas cadeiras e encontro novamente ali as manchas contaminando o projeto. O que são essas manchas? Parecem vir da observação de um campo invisível e seus nós, seus lugares de silêncio, seus pontos inflamados. Lembro também das cadeiras de Joseph Beuys que preenchidas com gordura não convidavam mais ao repouso. Seu trabalho sempre opera nesse lugar que tira as coisas corriqueiras dos seus lugares e nos conduz para uma outra dimensão de significados, aspirando à poesia e nos tirando também dos nossos próprios condicionamentos.

Querido Nino! O tempo passou: aquele museu mudou de lugar, não tomamos nunca mais aquele ônibus mas seguimos aqui dividindo nossos ateliês, dando aulas, promovendo residências e exposições. Nestes dias estranhos que vivemos, encontramos forças na amizade para manter não apenas nossas pesquisas em andamento, mas também um espaço independente aberto. Aberto às trocas com outros artistas, somando e dividindo nossos conhecimentos, acreditando que é só através da cumplicidade que o caminho se faz. E assim continuamos caminhando apressados pelo bairro, carregando sacolas, rindo e reclamando da vida, sempre atentos à procura de coisas imprecisas.

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Adeus horizonte – Ensaio Palavra-Imagem com Noemi Jaffe e Gohar Dashti https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/08/09/adeus-horizonte-ensaio-palavra-imagem-com-noemi-jaffe-e-gohar-dashti/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/08/09/adeus-horizonte-ensaio-palavra-imagem-com-noemi-jaffe-e-gohar-dashti/#respond Sun, 09 Aug 2020 12:53:24 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Gohar-Dashti-Iran-Untitled-2013-3-1024x682-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=21314 Para esta edição, convidei a escritora Noemi Jaffe para compartilhar conosco suas palavras, inspirada pelo ensaio forte e delicado da iraniana Gohar Dashti. Noemi é autora de diversos livros, além de crítica, poeta, professora e sócia-diretora  da  “Escrevedeira”. Por sua vez, Gohar, em sua obra, apropria-se principalmente de temas sociais e tem obras em diferentes museus pelo mundo. Nestas fotos feitas no deserto iraniano, ela pensa as imagens como haikus, nas quais  a compreensão é estética e sentimental.  A combinação entre as duas é potente, uma coisa bonita e que aperta o coração da gente. Tá lindo demais. 

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Dizemos que o tempo é fugaz: tempus fugit. Dizemos isso porque o tempo foge. Foge de quê, de quem, foge para onde? Foge, principalmente, de nós, que o queremos fixo ou, ao menos, mais estável. Mas ele não foge de nada e, se paro um pouco para pensar, ele nem foge. Nem passar ele passa: somos nós que passamos por ele, que fugimos numa travessia lenta, cujo fim sabemos qual é.

Fugaz é uma palavra linda para designar aquilo que foge.

Fugitivo não. Não aprendemos a admirar essa palavra tanto quanto sua companheira sinônima, fugaz. Fugitivos são perseguidos, condenados em dobro; não são aceitos, são rejeitados pelo lugar para onde fugiram; são traidores; são desafortunados. São tristes os fugitivos.

Fugazes são os amores de verão, as paixões, os misteriosos, o tempo das coisas prazerosas.

As pessoas à espera são fugazes ou fugitivos?

Como impor limites a uma fuga, cercando-a, mensurando-a, colocando seus participantes em lugares confinados, de forma a que eles estejam imobilizadamente em fuga?

Esse o lugar que ocupamos nesse momento pandêmico. Habitantes de parênteses cujas abas são a quarentena, em estado de fuga controlada. E esse também é o lugar daqueles que hoje estão efetivamente em fuga – no Brasil, na Síria, na Nigéria, no Haiti, na Venezuela – sem saberem nada de seu futuro, nem ao menos se serão recebidos no lugar para onde projetam ir.

Fugas quarentenadas ou quarentenas fugitivas, nos irmanamos na impotência, sonhando com fugacidades: o mar, o horizonte, os beijos, os encontros e a rua.

Um desejo desmesurado de aglomeração perigosa: infectar-me até morrer. Como uma dança de Pina Bausch, sair pelas ruas sem máscara, vestida de branco. Um séquito de noivos inúteis, como naqueles casamentos em massa, na China ou na Índia, mas sem o futuro conjugal. Uma cerimônia infinda, como no filme “Mas não se matam cavalos?”, em que o casal que ficar mais tempo dançando ganha um milhão de reais, ou melhor, ganha apenas um real. Um cortejo de casais que acabam de se conhecer, que se apaixonam à primeira vista e que vivem continuamente em estado de promessa, sem jamais se casar, para assim poderem ser felizes para sempre. Casais já casados há muito tempo, que se encontram todos num lugar impossível, para celebrar o que nunca existiu. Nunca casar-se e trocar de parceiro consecutivamente, numa quadrilha confinada, em que ternos deslocam grinaldas e véus raspam nas lapelas. Sonhar com o parceiro seguinte a cada troca, divisando orgias inumeráveis por cima de um tapete exíguo. Escapar dos limites do tapete e sair em errância pelo deserto, até que um grupo de beduínos nos sequestre e mate.

O que é uma fila? Uma fila é um fio organizado de pessoas com um mesmo objetivo, que aguardam sua vez de atingi-lo. A vida é uma fila para a morte. Algumas definições de liberdade dizem que “a liberdade de um começa quando termina a do outro”. As mães dizem isso para os filhos. Você pode fazer o que quiser, contanto que não atrapalhe nem machuque ninguém. Fique na fila; não fure a fila jamais. Imagino uma fila imensa para ir à praia, por exemplo. Tão, mas tão grande e tão, mas tão organizada, que ninguém consegue chegar ao mar, porque a praia está inteiramente ocupada por filas. Não atrapalho ninguém e muito menos a mim; com medo de interromper a liberdade do outro, não desfruto da minha. “Par delicatésse j’ai perdu ma vie”. Cuidado para não escorregar em cascas de banana, dessas que se distribuem pela vida. Está bem, sempre vou tomar cuidado e não vou escorregar. Caminho olhando sempre para baixo, atento a qualquer possibilidade de queda ou de um escorregão. Se eu escorregar, todos vão olhar e rir de mim. Para escorregar, é preciso um lugar propício. Por que não existem escorregadores para adultos espalhados pela cidade? Balanços, gira-gira, trepa-trepa?

Todos se postam como na Santa Ceia, em atitude de enlevo e contemplação, em homenagem aos filhos do Homem, que cacarejam inebriados de vinho e sangue. Todos bebem do vinho: esse é meu sangue, eles dirão. Todos comem as penas: essa é minha carne. Sangue do meu sangue e carne da minha carne, depois do sacrifício, eles se distribuirão pela terra marchando, em estado de continência permanente, parando aqui e ali para descansar, quando programarão novas rinhas. Riem os soldados do senhor, preparados para construir a igreja, pedra inaugural de um templo que só crescerá, ocupando todos os cantos do mundo, em rituais diários onde fieis beberão do meu sangue e comerão da minha carne. Em cada quintal, em cada varanda, em cada sacada se formará uma concentração para a guerra. Todos estarão em permanente estado de prontidão para quando o Messias voltar, quando então as hecatombes serão não de dois, mas de centenas de milhares de aves cacarejantes.

Adeus. Acenam a despedida os jovens que vão sendo engolidos pelo deserto, pelo espaço e pelo futuro. Adeus, vamos nos encaminhando para o amanhã, que se encontra ali, embaixo da terra, num tempo que nos consome diariamente exigindo que o alcancemos. Adeus dias desocupados da juventude: estamos sendo sugados para o porvir, pois somos o futuro das nações e de nós depende o progresso. Estamos caminhando juntos para o futuro melhor que vocês um dia nos prometeram. Nossos olhos divisam, lá longe, o horizonte infinito: a possibilidade sonhada de um dia escaparmos daqui. Adeus horizonte. Como na “Casa Tomada”, perdemos as chaves e nosso espaço diminui a cada dia. Nesse país é proibido ser jovem e juntar as letras de macarrão. Só quem pode ser jovem são os mais velhos, que comem cremes, cirurgias, pilates e pão sem glúten. A nós resta envelhecer. Adeus, letras de macarrão.

 

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‘Mas antigamente é quando?’ – Ensaio Palavra-Imagem com Simone Paulino e Guido Guidi https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/08/02/mas-antigamente-e-quando-ensaio-palavra-imagem-com-simone-paulino-e-guido-guidi/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/08/02/mas-antigamente-e-quando-ensaio-palavra-imagem-com-simone-paulino-e-guido-guidi/#respond Sun, 02 Aug 2020 11:43:42 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/3880-320x213.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=21264 Hoje o Ensaio Palavra-Imagem vem com as palavras de Simone Paulino e as imagens de um tempo suspenso do fotógrafo italiano Guido Guidi. Paulino é escritora, editora e jornalista. Fundou a editora Nós (da qual quase gabaritei todos os livros) e autora de alguns títulos, entre eles o potente “Abraços Negados em Retratos”, que me atravessou há três meses.  Guidi, com o olhar apurado da pintura, começou a fotografar nos anos 60 trazendo para suas imagens composições silenciosas e de cores contidas. Tá uma coisa de linda e de aguar os olhos essa edição.

 

não esquecer que por enquanto não é tempo de cerejas.

eu vou te mostrar com quantas palavras se faz uma canoa, ele disse no meu sonho intranquilo. A água das palavras dele inundando o quarto, como a maré invadindo a Piazza San Marco. Ele boiando na superfície úmida dos meus olhos. A água borrando as letras das páginas do jornal. Os jornais diários deixados à porta, agora imprestáveis, porque as notícias envelheciam antes que eles fossem atirados de longe nos quintais. Jornais que não serviam mais nem para embrulhar peixe como antigamente. No tempo em que as letras se escondiam sob as escamas. Às vezes um peixe vivo rasgando o papel num espasmo, caindo estatelado e se esbatendo no chão.

Mas “antigamente” é quando?

se o tempo descascava nos muros e nas fachadas a cada volta do ponteiro, e tornava impossível precisar a idade das paisagens e das lembranças. Se os meses nos foram roubados, como se arrancados de uma folhinha ordinária pregada na parede de uma construção abandonada numa estrada da qual não se enxerga o fim. Primeiro nos arrancaram Janeiro. Depois Fevereiro. Março. Abril. Maio. Junho. Julho.  Quantos meses mais? O ano seguia escorrendo de dentro da ampulheta de vidro quebrado esquecida num canto escuro e a gente tentando reter os grãos de areia do agora entre os cinco dedos de uma mão já decepada.

*

sem presente, nem futuro, só nos restava voltar ao passado. Viver de reminiscências. Visitar as nossas pessoas nos álbuns de fotos. Na vigília e no sono, o passado se infiltrava pelas frestas das janelas e do inconsciente, pulando de um cômodo para outro e atravessando longos corredores de lusco-fusco. As pálpebras se entreabrindo como uma cortina pesada pelo pó do tempo parado. E de repente, ao acordar, nos sentíamos velhos. Velhíssimos. Como se tivéssemos nascido no século passado. E sim, era esse o dado trágico. Ser um ser do século passado. Apegado às estações do ano que não fazem mais nenhum sentido. Falar uma língua que ninguém mais compreende. Espécie de esperanto sem esperança. E  ao lembrar de um amor antigo ou de uma casa onde se cresceu, dizer coisas como: “era primavera de 1978” ou “nos mudamos para aquela casa no inverno de 1972”.

*

enquanto a vida… A vida se esvaia, numa sucessão de dias iguais, apenas mais ou menos quentes, mais ou menos frios, mais ou menos secos, mais ou menos úmidos. As estações confusas esmaecendo as fotos e criando um passado contínuo e imperfeito. Já que no agora, encontrar, abraçar e amar se tornara inconjugável. Assim como os verbos de ser, todos, subordinados e subversivos, numa sentença incompreensível. A punição, severíssima. Solidão perpétua. O mundo inteiro preso numa solitária, sem direito a banho de sol ou de chuva. Nem mesmo um toque de mãos entre as grades seria permitido. Uma noite escura e sem fim, onde não fazia diferença se era inverno ou verão, noite ou dia. Um pesadelo do qual ninguém conseguia acordar. A existência reduzida a um prato de comida duas vezes ao dia, passado por entre as grades do condomínio por homens mascarados. E nada de cerejas! Porque não é mais tempo de cerejas compartilhadas em pratos de esmalte como na infância.

Ou então a morte. Irrevogável.

eu ontem comi um cannoli às três horas da madrugada, ela disse com vergonha diabética ao acordar. O açúcar em excesso envolvendo umas memórias involuntárias: As barras das calças boca de sino dos irmãos arrastando no chão de terra durante um baile pré-histórico. A nuvem de poeira levantando a lembrança de quando os discos ficavam pulando no mesmo círculo preto sem mudar de faixa, interrompendo a dança de acasalamento dos jovens. O vinil ondulando sobre o prato gasto de borracha. Na época, comprar uma agulha nova para o toca-discos era um luxo. Então o jeito era soprar a agulha como quem quer amortecer a dor de um machucado ou tirar um cisco do olho. Eles passavam o dedo de leve. O gesto fazia o som do arranhado soar forte, ferindo os tímpanos mais sensíveis. Depois, um pouso leve e então:

 

Per uno che torna
E ti porta una rosa
Mille si sono scordati di te

 

sim, porque às vezes se errava o alvo e a agulha entrava direto no corpo da música. Como a flecha atravessando o coração ao meio que eles desenhavam com canivete no corpo das árvores no bosque de eucaliptos a caminho da escola. Era primavera de 1978. Os irmãos eram grandes e fortes. Como puderam, no depois, morrer de forma tão miserável? Sozinhos, pele e osso, entubados em hospitais públicos. As agulhas enterradas no corpo. Nenhuma música tocando. Só o silêncio de uma solidão atroz. E o coração sangrando.

eu queria juntar os ossos dos meus irmãos. Unir de novo a família: pai, mãe, primeiro filho, segundo filho. Mas pobre não tem genealogia. São árvores de galhos precocemente amputados. Quase sempre fica só uma raiz esquecida a sete palmos de algum chão. Eu queria reunir a família em torno da mesma lápide. E perguntar pra eles dois, muitas vezes, como a criança perguntadeira que fui, puxando-os pela barra larga da calça até que me respondessem a contento essa pergunta que me perturba tanto:

Che cos’è?
C’è nell’aria qualcosa di freddo
Che inverno non è
Che cos’è?
Questa sera i bambini per strada
Non giocano più

 

E por que? Por que vocês ouviam música italiana nos bailes da periferia de São Paulo em 1972? E por que? Por que ninguém dança mais?

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A mesma janela, outro tempo – Ensaio Palavra-Imagem com Luisa Micheletti e Alper Yesiltas https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/06/21/a-mesma-janela-outro-tempo-ensaio-palavra-imagem-com-luisa-micheletti-e-alper-yesiltas/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/06/21/a-mesma-janela-outro-tempo-ensaio-palavra-imagem-com-luisa-micheletti-e-alper-yesiltas/#respond Sun, 21 Jun 2020 10:43:06 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/0d2d8369765061.5b8d34318fac0.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=21086 No Ensaio Palavra-Imagem de hoje, Luisa Micheletti escreveu um texto inspirado pelas imagens de Alper Yeşiltaş. Ela, atriz, escritora e apresentadora, lançará em breve “Dentro do Outro”, seu segundo livro; Ele, advogado e fotógrafo, que vive e trabalha em Istambul, fotografou durante 12 anos a mesma janela vista de seu apartamento. Os dois refletem sobre a passagem do tempo, da vida, das memórias. O resultado? Um devaneio bonito sobre o relacionar-se com o outro.

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JANELAS

Tá perdida?

Não chora

Vô chamá a tia

Pára

Ela te troca

Não

Qual é a tua classe?

Aquela

Vem

Me encontra aqui amanhã

Não quero mais

Última, juro, melhor de três

Dói a costela

Minha mãe disse que é a respiração

Vou beber água

Rápido

Não consegui

Pediram RG?

Pediram

E você?

Não tive coragem

Tinha que soltar o cabelo

Vai você que parece mais velha

Vou

Vai?

Não tenho nada a perder

Ele tem namorada

Quem disse?

Eu vi ele dentro do carro com alguém

Rola carona?

Claro.

Posso fumar?

Abre a janela

Que show né

Foda. Não tinha te visto.

Te vi de longe, mas perdi.

Pode crer. Na tua mãe?

Se for caminho…

Sua mãe é muito especial pra mim

Eu sei

Sinto muito

Obrigada

Ela vai fazer falta

Vai sim

RSVP – vou sim

Agradecemos a presença <3

Ele pirou

Como?

Ameaçou

Advogado

Eu grito a noite

Metade por três meses

Mais estável

Infalível

Quinto ano?

Jajá vai te atender

LANÇAMENTO LIVRO

RES: LANÇAMENTO LIVRO

“Para minha longa amiga. Meu terceiro, com beijos e carinho”

Louco é saber que eu te inspirei

Já pensou?

Olha o que eu mandei no grupo

Ler me enjoa

Áudio 0:53

Áudio 1:32

Áudio 1:01

Os pensamentos me embaralham

Soube da Sandra?

Embrulham, entulham

Tenho saudade

Melhorou?

Chove muito

O que houve?

Deixei chover dentro

Desconecta a cor do tempo

Atravesso e perco

Alagada ao som da estação

Mentira e televisão

Te achei

Não chora

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Os frutos precisam estar maduros – Ensaio Palavra-Imagem com Ana Paula Dugaich https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/05/31/os-frutos-precisam-estar-maduros-ensaio-palavra-imagem-com-ana-paula-dugaich/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/05/31/os-frutos-precisam-estar-maduros-ensaio-palavra-imagem-com-ana-paula-dugaich/#respond Sun, 31 May 2020 12:28:22 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/Giovana-Grigolin-texto-6.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=21007 O Ensaio Palavra-Imagem de hoje vem com toda sua feminilidade possível. Convidei a escritora e roteirista Ana Paula Dugaich que me propôs seis imagens de diferentes fotógrafas para esparramar suas palavras doces e delicadas em seis crônicas interligadas. Ana, mãe de duas meninas e  filha devota da terra, tem como temas literários centrais a terra, o tempo, o corpo e a impermanência. Ultimamente escreveu as crônicas do programa Refazenda na GNT, acabou de escrever seu primeiro romance “Para morrer como os leões” e está trabalhando no desenvolvimento de um de seus roteiros que ganhou edital do (ex) MinC “No verão que eu voei.”. O resultado? Um respiro para esse domingo ensolarado.

Tati Abreu

1

já não é mais maio e junho ainda não é

estou no instante em que o balanço chegou ao limite do seu impulso

mas ainda não voltou

no exato momento em que as lulas e águas-vivas se contraíram todas

para expulsar os jatos de água

tempo quando a gente vai se arrepiando

porque os músculos de um milímetro de comprimento que ficam rentes à raíz dos pelos  se contraem e eriçam

passei exatos sessenta dias respirando com a terra

pescando faíscas

usando sensações frescas no instante que me vinham

e depois exalando e preterindo todas elas como se fossem farelos amanhecidos

uma intensa atividade elétrica iniciou-se nos meus lobos temporais

queria que você tivesse a mesma surpresa que tive quando

destampei um pote de páprica  e vi o condimento se mexendo

micro besourinhos do tamanho de gergelins que foram ovos, larvas, pupas e acabavam de explodir em inseto vermelho

coisas invisíveis tomaram conta da nossa vida

Chana Moura

 

2

a qualidade principal para viver o presente na terra é a paciência

tem um instante seguro para o broto sair da semente

é preciso um tempo para que uma cebola deite sua bainha anunciando que está pronta

os frutos precisam estar maduros

as raízes para serem colhidas precisam ter completado seu ciclo

assim como são necessários nove meses para gestar um filho,

esse é o pulso da vida, o fluxo do metabolismo do organismo da grande mãe

mas nossa civilização quer sempre se adiantar à natureza

e tirar a essência espontânea dos corpos

apressando os instantes, abreviando os ritos.

Katrien de Blauwer

 

3

a folha seca cai da árvore

é desmanchada por minúsculos organismos

depois é mineralizada por fungos e bactérias

e seus nutrientes voltam a ser absorvidos pelas raízes

um processo simples e corriqueiro,
o mesmo acontece com a gente e nossas cinco bilhões de células comandadas por um cérebro

bilhões delas morrendo diariamente e outras bilhões nascendo e o corpo nem tem tempo de lamentar uma célula que ficou para trás, nem de perguntar:

você tá me entendendo?

somos uma porção de elementos químicos correndo de lá prá cá escondendo da gente mesmo o milagre da vida, e eu derramo tantas lágrimas

cada lágrima cai como uma folha seca, pesa trinta e cinco miligramas e é salgada como a água de um rio já chegando ao mar

elas passam por seis canais finíssimos como fios de cabelos

e essas lágrimas todas que eu não canso de deixar correr lembram que essa máquina biológica que hospeda meu espírito talvez tenha a mesma tendência das células cardíacas: contrair, expandir

e os milhões de diminutos canais que suponho serem ocos me atravessam e sopram em mim um calmo prenúncio

Fernanda Frazão

4

acordar no mato é bom

o sol baixo faz as sombras ficarem compridas no chão

tudo começa pálido e vai ganhando cores

amanhecem as plantas, os bichos, o bando de pássaros.

uma cerimônia diária.

estou na dança do ritmo biológico que é sincronizado pela luz, tudo uma questão da luminosidade como se a luz ou ausência dela regesse todo um sistema

nosso organismo se comporta de um jeito na claridade do dia

e de outro jeito nos tempos sombrios

Maureen Bisilliat

 

5

gosto de pensar que os átomos do seu e do nosso corpo foram criados do resto de estrelas, estrelas mortas há muito tempo

que as estrelas que vemos já estão mortas, isso me fascina

que uma supernova atinge seu brilho máximo tempo depois de ter explodido é como uma expansão nas costelas para abrigar mais do mundo no peito

ela explode. e depois de tudo terminado ainda vem a exaltação.

Giovana Grigolin

 

6

respiro como se estivesse me impregnando por dentro

da beleza da terra sendo alimentada da chuva de ontem

a água encharcou as raízes, os troncos,

o ar tem cheiro de depois da tempestade,

do líquido que corre na veia das deusas

e é esse o  perfume mais sutil da vida.

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O que separa um dia do outro? Verónica Flom e Joaquín Boz no Ensaio Palavra-Imagem https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/05/10/o-que-separa-um-dia-do-outro-veronica-flom-e-joaquin-boz-no-ensaio-palavra-imagem/ https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/05/10/o-que-separa-um-dia-do-outro-veronica-flom-e-joaquin-boz-no-ensaio-palavra-imagem/#respond Sun, 10 May 2020 13:27:33 +0000 https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/Joaquín-Boz.-Sin-título.-2018.-Óleo-sobre-madera.-160-x-220-cm-.jpg https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/?p=20922 Para este Ensaio Palavra-Imagem, convidei a curadora argentina Verónica Flom e o artista plástico Joaquín Boz para ocuparem esse espaço com uma parceria feliz entre os dois. Desde fevereiro,  quando conheci a obra de Boz, em Buenos Aires, essas palavras de Flom, vez ou outra, voltam em meus devaneios. Que alegria poder publicar aqui hoje.

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Notas sobre ​Los días, de Joaquín Boz

Existe um fenômeno que a ciência ainda não foi capaz de explicar chamado timidez da coroa. Os galhos de certas espécies de árvores crescem próximos, mas nunca se tocam. Como se elas pudessem se comunicar, cada árvore estabelece as margens de seu próprio espaço, seu próprio território. Longe de apoiar essas teorias, eu sempre acreditei que esse fenômeno fosse o oposto da timidez, como se, ao decidir não se aproximar, cada uma das coroas que formam aquela folhagem tivesse ganhado força, forjado uma identidade ou ainda conquistado seu próprio espaço. Eu encontro a mesma força nas figuras borradas e semi-isoladas que constituem as grandes pinturas de Joaquín Boz.

Ncrekonchoe 3, 2016, 125×95 cm

A força do conjunto, eu acho, está nos componentes que preenchem cada painel de madeira tão vigorosamente que obscurecem a composição e parecem ser o produto de alguma força cega. Diante de seu trabalho, tem-se a impressão de estar dentro de uma gruta pré-histórica, bem diante de uma pintura em caverna criada diretamente na pedra, antes da invenção dos pincéis. A paleta telúrica salpica o painel, como a terra manchando a camiseta de um menino.  Parece uma volta à infância da humanidade, ao exato momento em que nós supomos que o Homo sapiens mantinha um contato direto e imediato com a natureza, antes de sua dominação. É também uma infância das formas, uma vez que os elementos (às vezes manchas, às vezes rodopios de tinta, às vezes nuvens escuras) parecem estar buscando suas formas definitivas, como se ele se movessem entre abstração e figuração, ou em direção a um estado desconhecido.

Sem-título, 2018, óleo sobre madeira, 160 x 220 cm

No melhor caso, mesmo que não associemos a elas um referente preciso, essas imagens isoladas tornam-se significativas para nós, como as pinturas nas cavernas foram significativas e talvez mágicas para o homem ancestral, ou como uma vassoura pode tornar-se uma criatura única, seja encantadora ou aterrorizante, aos olhos da vítima de um bom hipnotizador. Nós percebemos a força latente que elas possuem antes que ela se torne evidente. Nada é claro nessas pinturas. Talvez o principal interesse no trabalho de Boz seja explorar a força que se aninha dentro do borrado, do grosseiro, do nebuloso; dentro da larva que ainda luta para encontrar sua forma. Essa condição evolutiva é destacada pelo artista em alguns trabalhos em papel, que ele ensopa em óleo de linhaça para deixar um desenho inesperado emergir ao acaso. Plantas movem-se em direção ao sol para transformar luz em energia – com essa mesma lentidão deliberada, o óleo flui pelo papel.

Sem-título, 2018, óleo sobre madeira, 400 x 600 cm

É difícil saber se a disposição elegante e equilibrada de cores e formas é devida a decisões premeditadas, como as feitas por alguém caminhando sobre gelo fino, ou se, ao contrário, é um completo acidente de impulsos abruptos em frente à pintura. É precisamente nessa disputa entre o controle e o acidente, entre amarras e liberdade, onde a precisão de seu trabalho reside, tão exato quando um terno sob medida.

Sem-título, 2018, óleo sobre madeira, 300 x 400cm

O que separa um dia do próximo? A resposta pode ser imediata, 24 horas. Mas pode-se intuir que apenas milissegundos distinguem o fim de um dia e o começo do próximo. Certamente, não se pode descrever a passagem do tempo sem usar dias como unidade de medida. Existe uma distância que separa cada unidade de medida entendida como um dia. É provavelmente nessa distância, tão sutil quanto aquela entre as árvores que não se tocam por timidez, onde vive a singularidade: ainda que pareçam similares, jamais existirá um idêntico ao outro.

Sem-título, 2018, óleo sobre madeira, 220 x 160 cm

 

 

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