O conservadorismo do World Press Photo 2013
Saiu hoje a lista dos vencedores do maior prêmio do fotojornalismo mundial.
Embora a fundação tenha contemplado diversos trabalhos que realmente mereçam a menção, o tom geral é conservador.
Destoando da seleção de 2012, quando muitos ensaios tinham assuntos e abordagens diferentes e até humor, é possível detectar que os conflitos e guerras voltaram com mais força do que nunca.
Causa estranheza também que a categoria “Arte e Entretenimento” tenha desaparecido neste ano. Uma grande pena.
O Brasil está presente em pelo menos dois premiados. Felipe Dana, excelente fotógrafo da Associated Press no Rio, ganhou menção honrosa pelo retrato de Natalia, uma usuária de crack de 15 anos, encarando e, ao mesmo tempo, impassível ao chorar para a câmera.
O Rio pacificado, às vésperas da Copa do Mundo e das Olimpíadas, parece ter se tornado o grande fetiche dos estrangeiros. Frederik Buyckx, belga, também recebeu uma menção honrosa pelo ensaio nas favelas tomadas pelas UPPs. Surpreendente? Nem um pouco.
Surpreendente como o prêmio principal, que contemplou uma foto de Paul Hansen (acima). Embora seja indiscutível a qualidade de composição e força desta imagem, a fotografia do sueco não é daquelas que te deixa confuso, inspirando grandes reflexões. É até bem resolvida demais.
É mais um retrato clássico do conflito em Gaza, mais um.
O que falta ao World Press Photo é ter a ousadia de olhar o fotojornalismo de outra maneira, com outras abordagens, outros temas – mesmo dentro das guerras – e dar o prêmio principal a esse novo olhar.
Trazer a tona também assuntos não conhecidos pelo público em geral.
Há ótimas exceções, como a incrível e chocante foto de Dominic Nahr, que funde literalmente morte e céu, o ensaio de Maika Elan sobre casais gays no Vietnã e “Mournful“, de Ebrahim Noroozi (abaixo), linda série sobre o ritual do luto de mulheres xiitas.
O World Press Photo tem excelentes momentos, mas precisa dar a eles maior destaque.
Outro ponto negativo, ao menos na opinião do blog, é o tratamento de imagem forçadíssimo presente em muitos ensaios, como se estivéssemos olhando para telas de videogame.
Porém, entre todos os premiados, um deles deixou uma das metades do Entretempos especialmente satisfeita.
Rodrigo Abd, fotógrafo argentino que vive hoje na Guatemala, cobriu brilhantemente o conflito na Síria por três semanas.
Pouco antes da guerra civil de Bashar Assad inundar todos os noticiários, quando a quantidade de jornalistas no país era muito menor do que atualmente, uma das poucas fontes de incríveis imagens disponíveis vinha de Abd.
Abaixo, o blog reproduz um texto do próprio fotógrafo, em março de 2012, relatando como foi fugir da Síria com a ajuda de rebeldes até a fronteira com a Turquia, em Antakya.
A traducão é de Clara Allain.
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“Explosões iluminavam a noite quando corremos, esperando conseguir escapar da Síria depois de quase três semanas cobrindo um conflito que o governo parece estar determinado a impedir que o mundo veja.
Projéteis disparados desde tanques atingiam as ruas da cidade, atrás de nós, balas disparadas por atiradores de elite zuniam em volta de nossas cabeças, e os rebeldes que nos escoltavam estavam quase sem munição. Nos pareceu um bom momento para sairmos da Síria.
Com as forças do regime sírio cercando a cidade de Idlib, no norte da Síria, controlada pelos rebeldes, o cinegrafista da Associated Press Ahmed Bahaddou e eu partimos no domingo para a vizinha Turquia, em um trajeto que nos levaria por uma passagem escura como breu e quilômetros de olivais barrentos, sob temperatura gelada.
Enfrentamos atrasos e perigos a cada passo – desde combates entre forças rebeldes e do governo até um encontro com nosso guia que acabou não acontecendo. Coordenamos nossa fuga com o ELS (Exército Livre da Síria), a força rebelde que luta para conservar o controle de Idlib, mas a situação estava se deteriorando rapidamente. Os atiradores de elite, as explosões e as granadas estavam cada vez mais próximos. “Vamos todos ser mortos!” me disse um ativista sírio apavorado, desabando em lágrimas.
Um combatente do ELS disse que era certeza que as tropas do governo retomariam o controle da cidade, porque as munições dos rebeldes estavam chegando ao fim. Um comandante rebelde disse que compreenderia se seus combatentes quisessem fugir, salvando suas vidas. “Quem quiser partir e não lutar, deixe sua Kalashnikov aqui”, disse ele. Ninguém o fez.
Foto premiada na edição 2013 do World Press Photo, por Rodrigo Abd
Na semana passada tropas cercaram Idlib e a cidade começou a ser bombardeada desde a manhã até a noite por morteiros disparados de tanques. Rebeldes corriam pelas ruas, escondendo-se atrás dos cantos de edifícios enquanto entravam em choque com os soldados. Combatentes feridos eram empilhados em caminhões para serem levados a locais onde poderiam ser tratados. Vi um homem carregando um menino pequeno. O casaco do menino estava encharcado de sangue. Eu soube mais tarde que o garoto tinha morrido.
Na terça-feira, um dia apenas depois que conseguimos sair, forças militares sírias conseguiram recapturar Idlib, desferindo um golpe contra a força rebelde. O regime alega que está combatendo terroristas estrangeiros e gangues armadas; ele nega que o levante que teve início há um ano seja uma revolta popular. Mas o que vimos em Idlib não se parece em nada com o que o governo descreve.
Os moradores da cidade apóiam a revolta; cada família parecia ter um combatente nas ruas ou conhecia alguém que estava combatendo. Os rebeldes do ELS eram sírios, da própria Idlib. Não vimos nenhum estrangeiro combatendo. O maior desafio dos rebeldes não era seu fervor em lutar; todos pareciam estar dispostos a morrer para derrubar o regime do presidente Bashar Assad.
Eles estavam armados com pouco mais que granadas impelidas por foguete, metralhadoras Kalashnikov e granadas. Nos últimos dias a palavra de ordem da oposição vem sendo um apelo por armas. A chegada de um fluxo de mísseis antitanque e outros armamentos pesados poderia significar uma virada no conflito.
Mas, quando as forças do governo entraram em Idlib, na semana passada, só conseguíamos pensar em Baba Amr, o bairro da cidade síria de Homs que suportou quase quatro semanas de bombardeios do governo. Centenas de pessoas foram mortas no cerco, e a situação humanitária era catastrófica. Entre os mortos estavam dois jornalistas: a americana Marie Colvin, veterana correspondente do britânico “Sunday Times”, e o fotojornalista francês Remi Ochlik, de 28 anos. Os dois morreram quando um morteiro caiu perto deles.
Acreditava-se que Idlib seria o próximo alvo, agora que o governo já recapturou Baba Amr. Enquanto os rebeldes se reuniam em esquinas, as famílias colocavam alguns objetos em bolsas e corriam para deixar a cidade. Mulheres e crianças se esconderam em porões para escapar dos morteiros. “É claro que tenho medo!” gritou uma mulher síria em um dos abrigos onde uma dúzia de mulheres e crianças foram se esconder no sábado. “Até os homens estão com medo.”
No sábado muitas pessoas fugiram de Idlib em direção aos povoados em volta da cidade. A eletricidade foi cortada durante a maior parte do dia, tendo funcionado por apenas cerca de três horas, numa provável tentativa do governo de levar a população a sair. Todo o mundo se preparava para um cerco, fato que tornava nossa fuga ainda mais complicada.
Decidimos passar a noite entre os feridos em Idlib, atrasando nossa fuga, porque estávamos com muito medo de nos deslocar. Enquanto dirigíamos de carro pelas ruas escuras, o motorista apagou os faróis para que ninguém nos detectasse, o que significava que tampouco nós podíamos enxergar qualquer coisa.
O ribombar trovejando dos morteiros era constante e implacável. Quando acordamos na manhã seguinte, os resultados da violência da qual tínhamos conseguido escapar de alguma maneira eram evidentes: feridos, incluindo mulheres e crianças, se espalhavam à nossa volta em roupas ensanguentadas. Muitos tinham evidentemente sido atingidos nas pernas e nos braços por franco-atiradores. Muitos ostentavam feridas enormes deixadas por estilhaços de bombas e morreram em suas camas. Não havia lugar para mais corpos no necrotério, então as famílias tomavam medidas para enterrar os mortos imediatamente. Cerimônias fúnebres estavam fora de questão, devido ao perigo de ficar ao ar livre.
Quando a noite caiu, decidimos deixar a cidade. A ideia era correr por uma área aberta da qual os franco-atiradores e tanques tinham vista, mas nossos guias sugeriram que ao invés disso fôssemos por uma passagem subterrânea. Tivemos que caminhar até a passagem, conduzidos por um combatente do ELS que nos fez esperar por meia hora enquanto os combates corriam soltos nas ruas. Avançamos com cuidado por uma cidade que não apresentava nenhum dos sons normais da vida – sem buzinas de carros, sem ninguém na rua –, apenas silêncio rompido por explosões e tiros.
Foto de Rodrigo Abd na Síria; Criança brinca em parque transformado em cemitério em Idlib
O corredor era estreito e tão escuro que não conseguíamos enxergar nossas mãos em frente de nossos rostos. Agachados para caber dentro dele, avançamos por 40 metros, mais ou menos, até chegar ao outro lado, que, por sorte, ficava fora da área delimitada pelo regime. Foi apenas depois de emergir que percebemos que o combatente que nos escoltava carregava granadas caseiras em seu colete – explosivos instáveis que poderiam facilmente nos ter detonado enquanto estávamos no túnel.
O trecho seguinte do percurso nos levou a um campo enorme e inteiramente coberto de lama em que os pés afundavam. Não havia como atravessá-lo a pé ou mesmo de carro. Mas nosso contato do lado turco da fronteira tinha conseguido o meio de transporte perfeito para nos tirar do país: um trator vermelho. Subimos no trator e percorremos o lamaçal por meia hora até atravessar uma fronteira não assinalada, em grande medida porosa. Ninguém nos barrou nem mesmo nos notou.
Enviar relatos desde a Síria foi arriscado, mas foi a única maneira de cobrir a história corretamente, sem estar à mercê de agentes do governo que procuram controlar quem você vê e com quem se encontra. No último ano a Síria restringiu drasticamente o número de vistos que concede a jornalistas, e aqueles que conseguem entrar precisam ser acompanhados por escoltas do governo.
No sábado o Ministério da Informação sírio emitiu um aviso, dizendo que jornalistas que entram no país ilegalmente (como Ahmed e eu) “acompanham terroristas, promovendo os crimes destes e fabricando notícias destituídas de fundamento”. A declaração aludiu às mortes de Marie Colvin e Remi Ochlik, dizendo que as empresas de mídia são “legal e moralmente responsáveis por qualquer coisa que possa acontecer com esses jornalistas devido ao fato de acompanharem terroristas”. Mas, para Ahmed e para mim, a viagem foi uma oportunidade de apresentar um retrato honesto de um conflito que ainda ocorre em grande medida oculto do mundo”.
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* Adendo às 14h00: O World Press Photo disponibilizou o áudio da ligação telefônica para Paul Hansen informando que ele é o vencedor da principal categoria do prêmio. É só clicar aqui para escutar e se emocionar. Bem bacana.
Relatos como esse de Rodrigo me fazem sentir orgulhoso da profissão que escolhi. É preciso ter muito amor no coração para se entrar numa guerra e muita determinação e compaixão para denuncia-la. Nobre profissão, parabéns colega.
bem legal
apesar do conservadorismo apontado pelo título da matéria, de nada a Folha faz para inovar no fotojornalismo.
De fato, as fotos de guerra são tão exploradas, tão repetidas, tão piegas, que já cheiram a “truque”, a “tearjerkers”, e não emocionam mais.
É um contrassenso se admirar o trabalho exercido de forma tão corajosa e muitas vezes brilhante em guerras e não querer que sejam premiados. Parece que todo mundo agora quer fofices, diversão, entretenimento passageiro e esquecem do mundo que vivemos. Realmente temos um geração que se importa mais com foto de gatinhos fofos do que com o que acontece a nossa volta.
Conservadora é a Folha, criticando o World Press Photo. Será porque a foto vencedora choca o mundo para os crimes de Israel contra os palestinos? Essa foto será um ícone do fotojornalismo mundial.
Marcos, o blog reflete diretamente a opinião dos editores deste espaço, Cassiana e Daigo.
Como foi dito no texto, o problema não é a foto, que além de muito boa, mostra um conflito complicadíssimo e a consequência dos ataques israelenses sobre territórios palestinos.
O que está sendo discutido aqui é a escolha do wpp por uma abordagem do fotojornalismo que é tradicional, conservadora.
Se você reler o texto, perceberá que o que está sendo discutido não é a temática nem a qualidade da foto premiada, mas sim a escolha de uma forma de fotografar que já está desgastada.
Obrigado pela sua mensagem.
Vocês têm notícia da exposição em SP? Eu visitava todos os anos no Sesc Pompeia mas depois o World Press deixou de ser exposto aqui. Virá neste ano?
Um abraço
Entendo a questão levantada pelo blog. Sinceramente, a foto de Rodrigo Abd apresentada abaixo, da menina brincando no parque que se transformou em cemitério, está mais fixa e martelando em minha cabeça do que a foto que venceu o WPP. Ela aborda o mesmo tema da foto vencedora, só que de uma forma bem diferente, irônica e ao mesmo tempo marcante.
Também concordo, Fred.
A foto do parquinho cria muitas reflexões e um choque que não é instantâneo. Demora pra assimilar o que aconteceu…