Conhecidos de vista

DAIGO OLIVA

Depois das últimas duas semanas de protestos, as metades do Entretempos tentam voltar ao seu ritmo normal de uma postagem por dia.

A gente promete, dependendo do tamanho das manifestações. 😉

Hoje, excepcionalmente, não publicaremos a seção “De dentro”. Em seu lugar, o blog edita uma versão maior da entrevista com a gaúcha Letícia Lampert, ganhadora de uma das categorias do prêmio Pierre Verger deste ano.

A conversa foi publicada originalmente no caderno de Imóveis da Folha.

Vai lá!

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A gaúcha Letícia Lampert, 35, venceu o prêmio Pierre Verger de fotografia deste ano na categoria “Trabalhos de Inovação e Experimentação”.

Para o ensaio “Conhecidos de Vista”, além das imagens que contrapõem o interior de apartamentos com sua vistas não existentes, a artista captou depoimentos de moradores de edifícios vizinhos e constatou que a proximidade entre prédios não é proporcional ao nível de relacionamento.

Atualmente, as conjugações entre proximidade e isolamento parecem ser uma obviedade da vida nas metrópoles. Vive-se muito próximo, amontoado pelo crescimento desordenado das cidades, onde a vista se anula pela pequena distância em que outro prédio foi construído.

Porém, a vizinhança forçada não se traduz em uma comunidade. O dia a dia dessas relações revelam interessantes particularidades que a artista conta ao blog.

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Entretempos – Porto Alegre não é muito conhecida pela verticalização. Em que momento você percebeu que isso era tão presente a ponto de virar um ensaio?

Letícia Lampert – Na verdade, não partiu da percepção da verticalização. Comecei o ensaio por uma outra série que chamo de “Vista Para”. Nela, fotografo a vista da janela em diferentes cidades sempre que for tapada por paredes e prédios. O que o projeto propõe é esta perda das referências geográficas e o embaralhamento dos lugares pelo crescimento das cidades. Se não fosse pelo título [em que a artista cita o lugar], não teríamos como identificar a que cidade cada conjunto de fotos se refere. Me dei conta de que poderia fazer esta relação em prédios: precisaria de dois edifícios, muito próximos, onde a vista de um fosse a janela do outro. Assim, poderia ir dos dois lados e “abrir” os edifícios para colocar em oposição fachadas e interiores. Quando fui fazer a primeira experiência, perguntei para os moradores que me receberam se conheciam alguém do prédio da frente. Me chamou a atenção que as pessoas quase sempre falavam que não conheciam seus vizinhos, mas acabavam dando dicas de que horário era mais provável encontrar o outro morador.

ET – O que mais os moradores conheciam de seus vizinhos?

LL – A grande maioria das pessoas não se conhecem de fato, mas ainda assim há uma sensação de familiaridade por conhecer os hábitos uns dos outros. Não é uma questão de voyerismo também, a maioria prefere não ver ou tentar fugir dos olhos alheios, mas um certo contato é inevitável. Em um depoimento, uma senhora disse que cuidava de outra pessoa, que morava na frente, pela janela. Ela se preocupava por ser uma senhora de idade morando sozinha, e então ficava atenta pra ver se ela abria a janela todos os dias de manhã. Uma outra curiosidade é que os jogos de futebol parecem ser o que mais aproxima nesta configuração. Vários vizinhos se conheceram por torcer pelo mesmo time e gritar junto, cada um na sua janela.

ET – Você acha que essa relação nas cidades, em que pessoas vivem muito próximas, mas isoladas, permanecerá por muito tempo?

LL – Acho que sim, cada vez mais. Parece que quanto mais alto os prédios, mais difícil o contato, maior o abismo. Eu queria sempre tentar fotografar o mesmo apartamento onde estava pelo lado de fora… Mas como é difícil! É quase impossível saber qual número de apartamento corresponde àquela janela determinada que se está olhando. Se este contato era difícil para o projeto, imagine nas relações de vizinhança. Mesmo estando muito perto, as pessoas nunca se cruzam realmente, só se veem, não tem como se falar, se aproximar.

ET – Os moradores encaram com naturalidade a não existência das vistas?

LL – Sim. Mais do que com a questão em si, se surpreendiam com meu interesse em fotografar a vista. “Mas eu nem tenho vista, só este prédio feio aqui na frente”, diziam. Ou então, “não prefere fotografar aquela outra janela? É bem mais bonita a vista de lá”. Frases assim foram uma constante. Minha percepção é que esta não-vista é incorporada com naturalidade ou como inevitável na maioria das vezes.

Na próxima quinta-feira, a Casa de Cultura Mario Quintana recebe a exposição do projeto em Porto Alegre, na Sala Augusto Meyer. Para saber mais é só clicar aqui.

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