Flávia Junqueira escancara relações de poder e submissão com pai em mostra
Os balões murcharam, as máscaras de bichinhos se foram e as montanhas de brinquedos foram colocadas fora do quarto. Das imagens coloridas e caóticas, cheias de objetos que remetem à infância, só as ruínas que serviam de cenário permanecem, agora de uma maneira mais abstrata. Enquanto o verniz aparentemente alegre dos registros de carrosséis e caixas de presentes embaçava relações familiares conturbadas, agora a paulistana Flávia Junqueira escancara o tema com crueza e um pouco de perversão.
Na mostra “Em Nome do Pai”, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, a artista expõe uma instalação em que coloca, junto a um confessionário e a três pedras de granito com gravações sobre as quedas de Cristo na via-crúcis, três fotografias nas quais retrata a si mesma e seu genitor.
Em um dos autorretratos, o pai da artista aparece ajoelhado aos seus pés.
Em outro, a situação inverte-se. Flávia mergulha em uma simbologia bíblica que mistura submissão e agradecimento para expressar uma situação que embaralha dependência e parceria. A inclusão da terceira fotografia, na qual
a fotógrafa se veste com a ajuda da figura paterna, foi proposta pela curadora Paula Borghi e gerou controvérsia entre a dupla. Para Flávia, a foto “torna óbvia uma relação que já está implícita nas outras imagens”. Procurada, a curadora não quis comentar a questão “por motivos profissionais”.
Na abertura da exposição, o confessionário foi ocupado por um padre de verdade –amigo da artista–, que realizou confissões durante todo o evento. Abaixo, trechos da entrevista com Flávia durante uma visita à mostra.
Entretempos – Você tem um trabalho cheio de referências ao período da infância, e agora faz uma quebra. Por quê?
Flávia Junqueira – Não é uma quebra, na verdade é um desdobramento, porque eu continuo fazendo aqueles trabalhos. E eles já estavam indo para um lado em que a infância alegre e doce não estava tão explícita. Quando eu colocava um carrossel para girar no sentido contrário, só com o barulho da máquina, já estava invertendo uma coisa super querida da infância. Estava procurando um efeito mais perverso, mais assustador. Até mesmo na série produzida na Ucrânia com os brinquedos, que estavam todos em meio a um monte de coisas destruídas, já tinha esse lado de trazer algo mais decadente e oculto da infância. No fundo, essas cenografias de princesas e mascotes sempre são meio estranhas. Já viu final de festa de criança? É muito feio, com balão destruído, tudo murcho, pipoca no chão…
Mas agora tem algo bem explícito, você fotografou o seu pai.
Eu tenho uma relação com meu pai que sempre foi pautada pelo poder e pela submissão. Sempre foi muito mais pautada pela dependência do que por qualquer outra questão. Eu saí de casa aos 21 anos, hoje tenho 30, mas sempre existe esse retorno para casa, que não é alheio, independente. É um retorno que acontece por necessidade. Mas eu não era totalmente submissa. Nem ele. Era um equilíbrio. E teve um momento em que eu precisei muito dele, e foi quando tive a ideia de fazer esse trabalho. Naquele momento, mesmo que eu estivesse muito dependente, parecia que ele estava ajoelhado aos meus pés. Pensei: é quase uma simbologia bíblica, da imagem de quem se ajoelha como sinal de devoção, ao mesmo tempo em que quem levanta as mãos está agradecendo. O agradecimento às vezes é para baixo, às vezes é para cima. Por isso eu tive essa ideia de pedir para que ele me vestisse, porque em algum momento eu também levanto os braços para ele. Mas eu achei mais forte quando eu fiz a imagem dele ajoelhado. Quem ajoelha, na verdade, está ajudando, mas na foto parece que está submisso, venerando, e o outro ereto.
Você pode falar que situação da sua vida foi essa?
Não. Não gostaria de dizer, mas foi um momento muito crítico. E foi nesse momento que eu fui procurar o meu amigo padre, que estudou comigo e me ajudou muito. Meu pai também me ajudou muito. E as palavras padre e pai são praticamente a mesma coisa, o que me fez pensar sobre essa relação de poder e submissão que eu comecei a desenvolver com essas duas pessoas. Ele me fazia confessar, e por isso coloquei o confessionário. Falar coisas
que você nunca falaria também é se ajoelhar.
Como seu pai reagiu ao convite? Ele já visitou a exposição?
Não foi uma coisa muito boa para ele, e eu não contei que ia fazer a foto.
Eu o chamei no estúdio e comentei que iria fotografá-lo amarrando os meus sapatos. Foi difícil, não foi agradável, e ele não viu a final. E eu também não o convidei para a exposição, não queria que ele ou minha mãe vissem. Eu entendo, também é pesado para mim. E quem conhece meu pai, olha a foto e fala: “Nossa, como você teve coragem?”. Até porque a minha relação com ele é muito difícil, não é um paizão que vê o que eu faço e diz “beleza”. É uma pessoa super conservadora, que talvez quisesse que eu estivesse fazendo direito [a artista chegou a cursar a disciplina]. Então fazer com que ele se ajoelhasse e ainda dizer que aquilo é para arte… Mas é uma parceria muito forte também. São duas pessoas muito diferentes juntas em uma foto.
Embora seus trabalhos anteriores tivessem vários desses elementos, isso é bem diferente do que você já produziu.
Foi meio natural. Meu primeiro trabalho era muito construído na estética do bonito. Mas, depois, a vida foi ficando mais difícil também. Acho que tem a ver. E fui colocando um lado mais ruidoso, mais duro. Antes, quando eu fazia Faap, minha vida era muito encantada. Depois foi desencantando.
De que forma?
De todas as formas. Você vai vendo que tudo não é tão simples e controlável. Quando eu fiz a série na “Companhia dos Objetos”, eu vivia com meus pais e tudo estava muito no meu controle. Tinha a sensação de que tudo era uma grande fantasia. A vida faz curvas. Inseri isso no trabalho.
Você me disse que há uma imagem na exposição que você não gostaria de incluir. O que aconteceu?
O que a Paula [Borghi, curadora] fez de muito bom para mim foi dar força para escancarar coisas que estavam muito claras, mas que eu não queria enxergar. A gente é preto e branco. Na abertura foi engraçado, ela veio de branco e eu de preto. Porque ela é esse lado mais perverso. Não é que seja má, só que é de um jeito mais real. E eu sou mais ficcional, sou aquela que acha que vai ficar tudo bem. E ela acha que não, que não vai ficar tudo bem. Ela queria focar no lado do meu trabalho que fugisse da infância, sem o lado lúdico, balões, encenação, festa. Foi uma negociação. Por mim, eu não incluiria essa foto. As outras imagens já mostram uma relação que não é tranquila entre pai e filha, que tem poder, submissão e um pouco dessa coisa meio pedófila, porque eu estou com aquela roupinha meio menininha que vai para a escola, e ele está como o homem que vai trabalhar. Por outro lado, eu fiz questão de colocar as velas na entrada da exposição. E não me arrependo, acho que ficou animal. Sabe aquela coisa de missa, velório, silenciosa, mas com uma luz que é quase uma presença de Deus? Ela não queria, achava que era dar um ar muito cenográfico. Ela queria a coisa mais crua. Silêncio, foto, sem nada. Ela acha que essa encenação ainda é uma forma minha de maquiar. E eu ainda coloquei um som de mosteiro. Em troca disso, deixei aquela foto.
EM NOME DO PAI
ARTISTA Flávia Junqueira
ONDE Oficina Cultural Oswald de Andrade, r. Três Rios 363, Bom Retiro, tel. (11) 3221-5558
QUANDO seg. a sex., das 9h às 21h; sábados, das 10h às 17h30; até 26/9
QUANTO grátis
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