Sem desculpa para sua localização e dimensão

DAIGO OLIVA

1.

97 fotografias retiradas do Facebook.

Em todas elas, famílias da classe alta peruana em momentos cotidianos de descontração, festas, tomando drinques ou viajando.

Ao fundo, em segundo plano -ou cortadas nas imagens, onde só um braço, uma mão ou o uniforme as identifica- empregadas domésticas.

2.

60 casas da classe alta de Lima, no Peru.

A partir de suas plantas arquitetônicas, comparando os tamanhos dos quartos, percebe-se que o “quartinho da empregada”, tão diminuto, mas tão presente, é projetado de forma absurdamente menor que os outros espaços.


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No momento em que o Brasil passa por uma enxurrada de discussões em torno das novas leis do trabalho doméstico, as obras da artista peruana Daniela Ortiz documentam a desigualdade entre patrões e empregadas e os traços escravocratas que ainda permanecem no Peru, mas são comuns em toda a América Latina.

“97 House Maids” e “Habitaciones de Servicio” traduzem de forma didática a invisibilidade social a qual as domésticas são relegadas dentro das famílias de seus patrões.

“Encontrei um documentário produzido pela TV australiana ABC, em 1977, sobre o trabalho infantil doméstico. Um trecho mostra o primeiro dia de trabalho de uma jovem, em que a empregadora leva a menina pela casa mostrando os lugares que deveriam ser limpos. E, depois, para o quarto onde dormiria. Senti uma diferença muito forte entre os dois espaços”, explica a artista em entrevista por email.

“Habitaciones de Servicio” é uma pesquisa sobre a arquitetura peruana com exemplos entre 1930 e 2012. Dividida em partes, começa mostrando as fachadas das casas, passa pelas plantas dos projetos e chega até um comparativo de blocos, que explicita a diferença do tamanho dos espaços.

Espaços que, por vezes, tampouco há uma janela.

“Em alguns casos, era completamente possível incluir uma janela. Em outros, como a Casa Chávez, de 1958, apesar de ter um grande jardim e um lote de terreno para construir, implementam os quartos de empregada em um porão. Em outros exemplos, quando o quarto tem uma janela, a vista dá para um pátio ou uma garagem”, explica Daniela.

“Um dos escritórios que aparece no projeto escreveu um artigo em seu blog e foi muito auto-crítico. No entanto, dentro de tudo que foi publicado, estou mais de acordo com a linha que indica que não se trata de fazer um quarto “mais digno”, mas sim mudar o sistema para que o empregado doméstico não tenha que viver na casa dos empregadores”, continua.

Os dois trabalhos da artista peruana ainda carregam um peso extra. Em “Habitaciones de Servicio”, junto aos projetos, Daniela fixou o currículo de cada escritório de arquitetura, enquanto “97 House Maids” corajosamente não borrou nenhum rosto mostrado nas imagens.

Embora tão claro e tão explícito no psicológico de cada família, o silêncio social e vergonhoso que divide patrões e domésticas permanece.

As reações dos empregadores revoltados com as condições que as novas leis impõem revelam que mais do que o peso financeiro, há também um desentendimento -consciente ou não- sobre como enxergamos os resquícios das relações escravocratas dentro de casa.

O que Daniela Ortiz pergunta é: será tão difícil enxergar que esse modelo atual é tão desigual?

Um cartaz com a frase “Quarto de empregada. Não há desculpa para a sua localização e dimensões” foi distribuída pela artista na cidade de Lima, principalmente em escolas de arquitetura.

Para ver mais de “Habitaciones de Servicio” e “97 House Maids” é só clicar aqui e aqui.

Comentários

  1. “Praticamente da família”, a falácia da classe média. Agora, não sei o que desaprovo mais: a crueldade de sequer registrar a imagem da pessoa que cuida do seus filhos ou a falta de noção de composição e enquadramento dessa gente. Vale uma oficina, “Regra dos terços e quadramento – uma ferramenta de inclusão social e respeito”.

  2. Honestamente, eu achei esse trabalho meio canalha intelectualmente.
    A ausencia de empregadas domesticas em retratos de familias e pessoas nao quer dizer nada, alem de que sao retratos de familia.

    Esse trabalho nao foi um achado artístico, fruto de pesquisa ou de aguda percepcao. Ou mesmo, um convite para refletir sobre o tema através de uma obra de arte imagética. É óbvio que não se ia achar retratos de domésticas em retratos de pessoas que não são domésticas!!! Isso mostra o que? Alem de que, provavelmente um pai de familia fotografou a sua filha no aniversario dela? Mas a artista, com sua pesquisa de face, e desenhos de arquitetura, quer mostrar a profunda diferença de classes. Assunto sempre muito rico.
    Pena que foi feita de uma maneira muito superficial e, ate, irresponsavel.

    1. caio,

      honestamente, daniela ortiz não é nada canalha. eu diria que canalha é o comportamento das classes altas de todo o mundo que por anos e anos vem ignorando a presença em todas as esferas dos empregados domésticos em suas vidas, limitando-os a viver marginalizados dentros de suas próprias casas.

      se você visitou o trabalho por inteiro, pode perceber que há imagens em que as empregadas estão ao lado de seus patrões e, mesmo assim, são voluntariamente cortados das imagens, pois eles não representam nada além do que meros serviçais para seus empregadores.

      97 fotos espalhadas em álbuns de famílias e 60 plantas arquitetônicas entre 1930 e 2012 não representa pesquisa? que pena que você pensa assim, não sei nem como discutir isso com você.

      fotografia não é feita apenas a partir da producão de imagens, mas também pode ser usada dentro de um universo já existente, onde é possível resgatá-las e resignificá-las.

      um abraço

      daigo

  3. Oi Daigo, obrigado pelo seu comentário. Deixando claro, eu tambem acho complicado as leis trabalhistas em relação aos empregados domésticos.. Também vejo resquicios do passado nas relações trabalhistas de hoje em dia. O cara que trata mal o seu empregado – e qualquer ser humano – eu não respeito.Mas isso não está em questão aqui.
    Não acho a artista canalha (não a conheco), mas esse trabalho, eu achei, sim, porque quer mostrar uma coisa (o tratamento das empregadas) a partir de uma fonte (retratos de pessoas do facebook) que não é crível. E ainda passa a falsa impressão que é. Mostrar que a empregada foi cortada em uma fotografia não diz nada em relação a sua condição como funcionária ou como é a sua relação trabalhista. É obvio que ela foi cortada porque não era o motivo da fotografia. E não ser o motivo de fotografia não quer dizer que você é escrava. E em algumas imagens nem é mesmo possível dizer que é uma empregada doméstica (tem uma que a pessoa está de costas e sem uniforme). Ou seja, a partir da pressuposição da fotógrafa de como a elite peruana em geral trata mal as suas empregadas, que devemos ver essas imagens. A artista não dá nem espaço para reflexão, ela parece gritar: “a elite trata mal os empregados, vejam isso”. E quando digo que isso é irresponsável, é que são imagens de pessoas reais, em momentos da suas vidas, tiradas de um contexto e colocados todos em uma etiqueta elitista.
    Muito diferente, por exemplo (e comentando a sua colocação sobre a produção de imagens a partir de um universo já existente), do trabalho do Michel Wolf, onde a partir de uma reflexão sua, ele usa imagens pré-existentes, mas criando um outro universo, um outro lugar e ainda deixando espaço para reflexão. Brilhante.
    Agora, eu achei que esse blog estava aberto a discussão, mas quando eu leio o seu comentário dizendo “que pena que você pensa assim, não sei nem como discutir isso com você” eu fico na dúvida.

    1. Caio, sem dramas, por favor.

      Quando você diz que não considera o trabalho “fruto de pesquisa” e de “aguda percepção” me sinto tendo que explicar o óbvio.

      Simplesmente por que isso não é questão de interpretação, mas apenas um fato. Os trabalhos de Daniela são sim fruto de pesquisa e de aguda percepção, fato, não há o que discutir aí. O facebook é uma das principais fontes de compartilhamento de informação e imagens no mundo hoje. Pegar o espectro social daquilo que enviamos para nossos amigos também é documento da forma como o mundo se relaciona.

      Fora isso, 97 (ou 80, se você quiser tirar as forçações de barra que encontrou) retratos onde esse padrão de comportamento se repete é algo relevante. Isso sem contar que é possível ver essas relações acontecendo todos os dias em muitas casas de família por aí.

      Em nenhum momento a artista diz que os empregados são mal tratados ou estavam sendo escravizados por terem sido cortados da imagem, quem está dizendo isso é você.

      O que ela indica e que eu mesmo escrevi no texto é que elas estão totalmente em segundo plano em todas as imagens, isso faz parte da invisibilidade social que esses trabalhadores sofrem todos os dias. Eles são relegados a uma posição de insignificância perante a sociedade, pois estão lá apenas para servir, e não para participar da sociedade de forma horizontal. É isso o que o trabalho da peruana diz e que você leu de forma enviesada.

      Dizer que esse trabalho é canalha é ignorar uma situação que acontece inúmeras vezes ao nosso redor.

      Abraço

  4. Daigo, eu entendo que a artista usa essa imagens quase como uma prova documental do argumento dela. O que eu não acho honesto (e é isso que eu quero dizer quando digo canalha: desonesto).
    Ajuda esse meu entendimento o texto de abertura do trabalho, que fala sobre capitalismo e heranca de pai pra filho etc., e os outros trabalhos dela que tem forte critica social.
    O fato das empregadas “…estão totalmente em segundo plano em todas as imagens” é óbvio e não é consequencia de nada. Porque elas, de novo, não são os motivos das fotos. Na última imagem que está neste post (a da mulher sorrindo) a empregada ao fundo nem deve ser a dela, já que essa esta ajudando uma outra mulher com uma criança. O que dá para enxergar nessa imagem além disso?
    Não nego o problema que existe nessa relação empregada-patrão, só acho forçação de barra enxergar isso com essas imagens, só porque a artista diz que tem. Não vejo um “padrão de comportamento se repete” e sim uma padrão de fotos ruim.
    A fotografia com cunho social existe desde quase sempre. E, para mim, esse não é o melhor exemplo dela.
    Enfim, não quero ser o chato do blog. Adoraria continuar essa discussão com você(s) em outro lugar. Abraços,

      1. você não é o chato do blog, Caio. pelo contrário, adoraria que as pessoas comentassem e participassem como você faz.

        voltando a nossa saudável discussão, você mesmo matou a charada: as empregadas domésticas nunca são os assuntos das fotos da classe alta.

        elas são ignoradas.

        um abraço!

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