Lina, não vá fazer um café

DAIGO OLIVA

Se há algo de especial na exposição “O interior está no exterior”, curada pelo suíço Hans Ulrich Obrist, é o seu respeito pela Casa de Vidro.

Assim como a própria Lina se curvou à arquitetura da antiga fábrica de tambores da Pompéia para idealizar o seu Sesc, Obrist construiu a mostra para que o espectador enxergasse na casa não apenas um suporte para as obras expostas, mas, principalmente, um protagonista.

Ao percorrer os espaços, a harmonia do desenho da morada com o paisagismo da bela floresta (sim, floresta!) que circunda o imóvel, a levitação de seus pilotis e o elegante mobiliário projetado pela artista saltam aos olhos.

Obrist pensou a distribuição das peças mimetizando com os objetos deixados pelos eternamente moradores do local.

Divagando, é como se tanto Pietro quanto Lina, se ainda estivessem vivos, também escolhessem aqueles artistas para compor a paisagem de seu lar.

E, ainda assim, mesmo diante de tamanho “bom gosto” para “decorar” o espaço, seus convidados ainda iriam se espantar mais com o que Lina fez ao desenhar a casa do que com qualquer outra obra colocada ali dentro.

A Casa de Vidro vazia já basta.

Nesse domingo, fui até lá para conhecê-la fora dos livros.

Além de todo o deslumbre, foi formidável ver jovens, bem jovens, estudantes (de arquitetura, creio) anotando detalhes de tudo o que viam ali.

Eles se somam aos estereótipos que frequentam exposições de arte contemporânea, alguns estrangeiros maravilhados e casais que, assim como eu, tiraram o domingo para passear. E todos eram tudo isso ao mesmo tempo.

O mais importante foi notar que havia inclusive uma fila para visitação.

A outra parte de “O interior está no exterior” está no Sesc Pompéia. E lá, me desculpem novamente os artistas, o que importa também é Lina Bo.

Enquanto esperávamos na fila para almoçar na comedoria, era possível enxergar ao menos quatro situações diferentes: ao fundo do galpão principal, aquele que tem as bilheterias, um grupo de teatro apresentava um espetáculo para crianças. Mais próximo, velhinhos liam revistas e jornais sentados nas cadeiras de madeira projetadas pela arquiteta.

Eram conjuntos de quatro cadeiras, agrupadas como um catavento. Embora preservem uma “cápsula” individual, elas se juntam coletivamente.

Mais atrás dos velhinhos, um batalhão de jogos de tabuleiro se espalhava pelo espaço. O que havia acima não consegui ver, mas aposto que tinha gente estudando e batendo papo.

Fora do galpão, todas as mesinhas da lanchonete, bem próxima ao gigante portão de madeira, estavam ocupadas. A fila para o almoço então, um sucesso.

Diferentes atividades e perfis de usuários se encontravam em harmonia.

Almoçamos ao lado de um casal que nunca vimos na vida. Lá no fundo, perto de uma linda luz que batia nas mesas, uma criança deu seu chorinho habitual.

A coletividade que Lina impõe promove encontros inesperados num mundo que tenta preservar a individualidade a todo custo.

Arquitetura é criar espaços de vivência, onde, dois corpos completamente diferentes devem ocupar o mesmo espaço.

Em 2013, o Sesc Pompéia completa 30 anos. Há, paralelamente a toda a sua programação usual, uma exposição em homenagem a Lina.

Emocionante ler histórias e detalhes que a artista realizou durante as obras.

Se o mundo é machista hoje, imagine então durante os anos 80.

Uma mulher comandando cerca de 400 operários e sendo respeitada e admirada por todos. Lina também não fazia por menos, não os tratava como meros trabalhadores cumpridores de funções.

Um exemplo são os azulejos da cozinha do Sesc, assentados livremente, conforme o gosto do pedreiro.

Ao saber que a empresa que controlava a alimentação da obra trocou o feijão por soja, pediu a realização de uma missa para espantar os boatos de “impotência sexual” que se alastrou e, discretamente, exigiu a volta do feijão.

Isso sem contar as decisões negociadas com arquitetos assistentes, engenheiros, mestre-de-obras e operários que estivessem por perto.

Lina tinha a necessidade de deixar marcas, transformando algo que parece simples e vulgar em peças completamente diferentes, nunca antes vistas. As rendas da chaminé da fábrica de lazer do complexo esportivo, as janelas quebradas sem uniformidade, os parapeitos de vigas de aço…

Há coisas que não precisam ser úteis, mas precisam ser poéticas.

Antes de ir embora, paramos para tomar um café. Lá, a mesma frase que ecoava na Casa de Vidro se repetia. “Lina, va fare un caffè”.

Como explicou Marcos Augusto Gonçalves em sua coluna de hoje, “socialista, Lina inflamava-se em discussões políticas. Conta-se que em conversas com amigos, ao pressentir que a coisa ia engrossar, Bardi sugeria à mulher: ‘Lina, va fare un caffè'”.

A frase foi tomada e transformada em obra por Cildo Meireles.

Aqui, eu peço: Lina, por favor, não vá fazer um café.

Que falta faz alguém que pense como você.

Ps. O almoço no Sesc custou 15 reais, com bebida e sobremesa. Para aqueles que defendem que num restaurante paga-se também pelo ambiente, difícil ganhar de um espaço desenhado por Lina… É a São Paulo honesta que o Sesc promove, não só em sua comida.

Ps2. Todas as fotos do Sesc foram feitas por uma das metades do blog. A imagem da Casa de Vidro é do grande Eduardo Knapp.

Comentários

  1. Impressionante a sensibilidade para com a exposição | obra da lina, tratada no texto!
    Que esses comentários em forma de arte, texto e arquitetura nos contem e inspirem um pouco sobre um outro olhar e significado do espaço, para a relação entre as pessoas e a poesia.
    O momento é exato. Viva lina!

  2. Eu simplesmente amei essa materia! ja fui varias vezes almoçar no sesc pompeia e realmente adoro o ambiente, mas nâo sabia exatamente o porque gostava tanto e essa matéria me fez entender!! O coletivo dentro de uma sociedade cada vez mais individualista é valorizado naquele ambiente e a liberdade de criação do espaço sem se apegar aos padrões estabelecidos naquela época também achei demais!! Parabéns

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