Feche as cortinas

DAIGO OLIVA

O assunto não é novo, o próprio Entretempos já abordou a questão, mas toda vez que um fotógrafo assume a posição do voyeur ressurge a mesma polêmica. É correto fotografar pessoas desconhecidas sem prévia autorização?

O ensaio “The Neighbors”, do fotógrafo Arne Svenson, 60, recoloca em pauta uma discussão que poderia soar velha e batida, mas que reaparece válida em 2013. Num mundo coberto por câmeras de segurança gravando ininterruptamente, em que o momento decisivo inexiste, quais os limites na invasão da privacidade de pessoas que nem imaginavam ser documentadas durante os momentos mais espontâneos de seus cotidianos?

Svenson vive em Nova York e, após herdar uma lente de grande alcance, passou a fotografar constantemente o apartamento vizinho, repleto de grandes janelas que vão do chão ao teto. “Os nova-iorquinos são mestres em ser tanto o observador quanto o observado. Vivemos tão densamente juntos que o contato é inevitável -mesmo porque nossas casas estão empilhadas uma diante das outras. Entendemos que a privacidade é fluída e o vidro é verdadeiramente transparente”, disse Svenson à revista americana “Slate.

A privacidade é fluída, mas não foi assim que os vizinhos do fotógrafo entenderam. Embora as imagens não revelem rostos, os retratados sentiram sua intimidade violada por conta da presença de crianças nas fotos.

A relação entre fotógrafo e personagem incosciente realmente parece injusta. Talvez seja possível alegar que o artista não revelou nenhuma identidade, mas mostrou objetos que tornam os ambientes dos retratados reconhecíveis, assim como outras razões que o colocariam em uma complicada situação jurídica. Casa é espaço privado, não é como a rua, lugar de encontro e falta de controle.

Recentemente, o brilhante blog “Conscentious” –indicação eterna para barras de favoritos– publicou um artigo questionando a ética da fotografia de rua. O autor do site diz que “seria impraticável perguntar a cada pessoa fotografada se está de acordo”. “Porém, se alguém não quer ser fotografado, então acho que esse desejo deve ser respeitado”. Mas e fora do mundo ético e jurídico, o que as imagens de Svenson podem significar?

A perfuração da vida via perfil em redes sociais, de poses em fotos de fim de semana e o controle obssessivo da auto-imagem inviabiliza reconhecer a nós mesmos, a não ser pela leitura do ser humano como um negativo.

Sabemos mais como queremos ser do que o que realmente somos. E o ensaio de Arne Svenson é um suspiro dentro desse universo. Mesmo sem mostrar rostos, mesmo por trás de cortinas, ou mesmo sem fazer absolutamente nada que seja polêmico ou incriminador, o ser humano dentro de sua casa está nu.

No texto de apresentação do ensaio, o fotógrafo se defendeu dizendo que agiu como um observador de pássaros. E isso é o que mais aproxima a fotografia da antropologia. Na balança entre descobrir quem somos e ser invadido pelo olhar do outro, a conclusão é uma só: pimenta nos olhos dos outros é refresco.

A mostra “The Neighbors” está na galeria Julie Saul até 29/6.

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Comentários

  1. O que eu acho mais interessante nessa dicussão, não é somente a questão legal, parece-me que nem mesmo os americanos ainda se acharam nesse ponto. Mas sim a ilusão que estamos sozinhos e protegidos nos nossos apartamentos. É muito interessante ver que os vizinhos – na minha opinião – não ficaram putos, no final, por causa das imagens (afinal, não da para reconhecer ninguém), mas porque foram vistos…pela janela! Objeto que tem um lado interno e externo, que você vê o mundo e é visto.
    Aqui, vale lembrar a velha metáfora da janela como objeto que serve como uma camera, onde faz o papel do buraquinho da lente que capta e reflete a imagem, com as suas cortinas que abrem e fecham.
    Se eu estou na janela do meu apartamento olhando para o mundo e vejo, troco olhares com o vizinho da frente, que também esta na sua janela. O que eu faço? Se eu me sentir desconfortável, o que eu posso fazer?
    Eu até entendo os vizinhos do Arne ficarem ofendidos com o seu trabalho, mas não deixa de ser bonito pensar numa metropole cheia de gente, onde uma das interações seja por esses quadradinhos. E eu acho que eles não deveriam ficar tão bravos assim, porque no final, não são eles que estão retratados. Não são a Mary, o John e o Stuart. É a menina da cadeira, a mulher da tesoura, a moça da cortina.
    Considerando o trabalho do Arne em si, tudo fica ainda mais interessante porque a partir dessas imagens quase banais, ela nos inspira histórias e enredos que, muito provavelmente, sejam mais fantásticos que as do cotidiano.

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