Uma segunda vida para a fotografia

DAIGO OLIVA

Em algumas vezes, mais importante do que o próprio resultado final das imagens, é necessário entender o processo percorrido pelo artista.

Para complementar o texto que uma das metades do blog escreveu para o caderno Tec, da Folha, sobre a pós-fotografia, entrevistamos o catalão Roc Herms, 34.

Enquanto participava de jogos on-line, o fotógrafo decidiu documentar sua experiência dentro da plataforma “Playstation Home”, ambiente virtual similar ao Second Life.

A série “Postcards From Home” narra os encontros do artista com os avatares que encontra pelo caminho. Ele falou com o Entretempos por e-mail e publicamos aqui a versão integral da conversa.

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Entretempos – Como começou o projeto?

Roc Herms – “Postcards From Home” começou durante as milhões de aventuras que vivia durante jogos on-line, quando me dispus a fotografar uma série de retratos para recordar minhas vivências. Foi então que me dei conta de que, nesses mundos virtuais, tinha o controle absoluto do movimento do meu avatar e uma visão em primeira pessoa. Essas são as variáveis que me permitem trabalhar como fotógrafo: controlar o olhar, enquadrar e capturar a imagem quando gostamos do que vemos. Um dia aterrissei no “Playstation Home”, o mundo virtual da Sony, e ali percebi que não só poderia fotografar meus companheiros, como também documentar a vida de milhões de pessoas que estão nesses entornos virtuais. O projeto se tornou um álbum de viagem.

ET – O que mais te surpreendeu durante a execução de “Postcards?

RH – Uma das propriedades que mais me fascinou foi a possibilidade de fotografar palavras. Nessa plataforma não se escuta, se lê, e isto me permitiu ampliar os limites do que conhecia como fotografia. Durante essa viagem, vi desde festas de fim de ano a cultos de igrejas evangélicas. Conheci gays que encontraram ali o amor de sua vida, avós de 70 anos com dezessei diferentes avatares e até uma espécie de seita virtual com mais de mil fiéis. Todos esses “inputs” modificaram completamente as ideias preconcebidas que tinha sobre esses entornos e me fizeram descobrir uma série de propriedades que a fotografia do mundo físico nunca poderia me oferecer.

ET – No texto que Joan Fontcuberta escreveu sobre o projeto, ele fala sobre a “invenção de uma nova personalidade”. Pode falar mais sobre isso?

RH – O mundo virtual que explorei é, conceitualmente, muito parecido com o Second Life. Uma das características que compartilham é, por exemplo, o feito de liberar nossas consciências de nosso corpo físico enquanto vivemos nele. Podemos desenhar e decidir como queremos ser, definir nossa altura, peso e cor, nosso sexo. Isso nos oferece muitas ferramentas se desejamos construir uma nova personalidade. Outra das características que definem nossa personalidade é o entorno que vivemos. Nosso trabalho e nossos amigos, o tipo de relações que estabelecemos. Tenho amigos que viveram mais de dois anos jogando World of Warcraft, um mundo virtual como o Senhor dos Anéis. Durante todo esse tempo eram magos e guerreiros. Passavam tardes inteiras recorrendo a ervas em montanhas virtuais ou matando dragões em profundas cavernas, trabalhando em equipe e fazendo comércio entre eles. Todas essas experiências estavam definindo parte de suas personalidades? Com certeza. Se conseguimos simular algum dia um mundo deste tipo, podemos ser um elfo?

ET – A maneira de fazer fotografia mudou? Se vivemos 24 horas por dia conectados a internet, tem sentido não incluí-la na forma de produzir imagens?

RH – Faz apenas 500 anos que os monastérios compreenderam a palavra escrita como ferramenta. E, ainda assim, tiveram que passar muitos séculos para que a grande maioria utilizasse a escrita para se comunicar. Há 50 anos, se passava o mesmo com a fotografia, apenas quatro ilustrados tinham acesso a ela. A revolução digital democratizou a fotografia como linguagem. Creio que, da noite para o dia, essa mudança é mais importante do que as modificações sofridas na forma como fazemos as imagens. Pouco a pouco, por outro lado, estamos traduzindo nossa vida para zeros e uns, migrando parte da nossa existência até o interior de um computador. Todo o tempo que passamos diante do nosso campo visual define a tela que vemos, por esses pixels viaja nosso olhar. Se uma fotografia é um recorte do que vemos, por que não poderia ser uma captura de tela?

ET – Que linha divide uma série como essa, entre um projeto de arte e uma piada?

RH – A finalidade de uma piada é fazer rir, a de um projeto de arte creio que seja fazer pensar. Se decidi publicar meu projeto é por que busco a última finalidade. Muita gente não está preparada para processar esse tipo de imagens, mas é um problema cultural do qual não há culpa. Minha geração é a primeira que cresceu com videogames, que tem o cérebro acostumado a consumir visualmente gráficos gerados por um computador e que é capaz de entender que por trás de cada avatar há pessoas de carne e osso, que vivem experiências tão reais e intensas como as que vivem no mundo físico. Gostaria de compartilhar os conhecimentos adquiridos e tentar desvendar essas realidade a todos aqueles que as desconhecem ou que pensam que se trata apenas de uma piada.

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