Photoquai: a rua é o lugar do encontro

DAIGO OLIVA

A pedido do Entretempos, o fotógrafo Gustavo Lacerda escreveu sobre o Photoquai, festival de fotografia que acontece em Paris de setembro até o meio de novembro.

Gustavo foi um dos artistas selecionados para a quarta edição do evento, em que exibiu o ensaio fantástico, e já célebre, “Albinos”.

Em seu relato, o fotógrafo traz alguns trabalhos e nomes até então desconhecidos pelo blog, o que é justamente a ideia deste espaço.

Ao mesmo tempo em que falamos de artistas já estabelecidos, o que queremos oferecer é um constante esforço para valorizar fotógrafos emergentes e desconhecidos.

Não há sensação maior do que descobrir o novo.

Obrigado, Gustavo!

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No último mês de setembro, vivi uma bela experiência.

Tive a sorte e a honra de participar da Photoquai 2013, em Paris. O festival é uma grande exposição a céu aberto que acontece à beira do rio Sena, próximo à torre Eiffel.

O objetivo é mostrar um recorte panorâmico do que tem sido produzido na fotografia mundial fora do eixo Europa/Estados Unidos, com enfoque no ser humano e o seu entorno sócio-cultural.

Apesar do cenário de crise na Europa, a Photoquai ainda consegue reunir dezenas de artistas e curadores de diferentes continentes. Resultado: quase uma semana de intensa atividade artística e cultural e a oportunidade única de conhecer e conviver por alguns dias com autores de trabalhos super engajados no universo da fotografia contemporânea mundial.

Pude trocar ideias e experiências com diversos artistas -alguns que já conhecia o trabalho, assim como outros ainda totalmente novos para mim- os mexicanos Alejandro Cartagena e Roberto Tondopó, o israelense Yaakov Israel, os chineses Qingjun Huang e Rongguo Gao, a colombiana Adriana Duque, o taiwanês Stanley Fung, o australiano Toni Wilkinson, a corena Sunmim Lee, os indianos Amit Madheshiya e o também brasileiro Pedro David, entre tantos e tantos outros.

Ao todo, eram 40 artistas de 28 países diferentes, selecionados por 8 curadores espalhados por todo o planeta. Confesso que a qualidade, edição e direção artística foram bem além das minhas expectativas.

E olha que eu já esperava algo bacana pelo alto nível de organização durante o extenso processo de produção. O espaço onde a exposição foi montada foi totalmente remodelado para receber a Bienal, como também é chamada.

Desde o piso à iluminação.

Mais de 200 metros à margem do rio Sena, formando uma enorme passagem… Num misto de corredor e quase um labirinto de imagens.

No detalhe, dá para ver também que uma das artistas presentes na Photoquai é a deslumbrante Evgenia Argubaeva e o ensaio “Tiksi”…

As fotos foram impressas em grandes painéis com mais de 2 metros de altura e ali ficaram, expostas ao sol e à chuva, mas intactas. Se para alguns estar fora do museu pode “desmerecer” uma obra, para mim foi uma grande alegria ver meu trabalho impresso na rua. Ainda mais numa cidade onde se valoriza o espaço do “público”, do encontro.

Nesse sentido, acho que a Photoquai leva de volta para a rua aquelas obras que trazem as ruas de tantos lugares do mundo para dentro dos museus. Gosto disso.

Do que vi, vou destacar alguns trabalhos que tive a chance de conhecer melhor pela proximidade com os autores e entender um pouco das suas intenções.

Amit Madheshiya, fotógrafo indiano, 31, vive em Mumbai. Desde 2008, ele vem viajando por pequenos vilarejos de seu país fotografando a reação das pessoas diante dos filmes que eventualmente são exibidos em grandes tendas montadas nesses lugares.

É ali que muitas das pessoas retratadas realizam seu primeiro contato com o mundo dos sonhos massivamente fabricados em Bollywood. “At a tent near you” é um trabalho simples, que poderia até ser banal, mas construído com extrema delicadeza e com um olhar calcado muito mais na pureza do que no rigor técnico que poderia aprisioná-lo.

O México teve 3 bons e bem diferentes trabalhos representados na Bienal. “La casita de Turrón”, que acabou de ser apresentado no Paraty em Foco, é impressionante.

Acabei me tornando amigo do Roberto Tondopó, autor e tio do casal Andrea e Angel, os garotos retratados nesse trabalho realizado entre 2010 e 2012.

Vistamos museus e andamos muito por Paris juntos e vi o quanto Roberto é a cara do seu trabalho. Tem 35 anos, mas uma fotografia com frescor de 16.

Ele conta que fotografa faz poucos anos, mas já faz um tempo, vinha tentando buscar o seu próprio estilo -iniciou-se na fotografia comercial de moda, retratos e um bocado de tudo pra sobreviver- e só começou a descobrir qual era a sua fotografia quando parou de procurar externamente.

Voltou as lentes para seu próprio universo e para a rotina dos seus enlouquecidos sobrinhos hiperativos. Sua história é narrada com humor, delicadeza e grande intimidade. O “Turrón” do título é o apelido de infância do próprio fotógrafo.

Já “Twins”, trabalho do jovem, simpático e super tímido chinês Rongguo Gao foi um dos que mais me marcou. Acho que pela simplicidade e pelo poder de contar tantas histórias nos seus calados perfis de gêmeos univitelinos.

Gao conta que, a partir da curiosidade sobre os destinos tão díspares dos 3 pares de gêmeos que conheceu nos tempos de escola, visitou centenas de vilarejos em busca de seus ex-amigos e outros gêmeos.

O chinês partiu do paradoxo astrológico do filósofo grego Carneades que dizia que aqueles que nasceram no mesmo dia não teriam necessariamente o mesmo destino, assim como aqueles que experimentam situações de vida semelhantes não precisam ter nascido no mesmo tempo.

Os retratos simples, porém rigorosamente bem compostos, funcionam como espelhos e anti-espelhos, afinal nem sempre tudo é o que parece…

Quando Stanley Fung, nascido em Hong Kong e vivendo em Taiwan, me disse que não era fotógrafo e sim pastor, fiquei curioso. Conversei várias vezes com ele (no nosso inglês “bem moroles”, é verdade) e deu pra perceber que, de verdade, ele não se julga um fotógrafo, mas um missionário de sua fé.

De família religiosa, filho do fundador da primeira igreja metodista de Hong Kong, aos treze anos decidiu se converter ao cristianismo.

Estudou fotografia e passou a usar a arte para expressar sua crença. Seus modelos são os seus próprios “fiéis”, algo que daria certamente boa dose de discussão filosófica e moral.

Mas confesso que a força e a potência pictórica de sua obra me falam bem mais, tornando tudo isso quase um detalhe na história. Ele fotografa em filme, num pequeno cômodo debaixo da sua igreja, sempre com uma velha nikon 35mm e num preto e branco de belíssimo grão.

Apesar de seus personagens encenarem leituras bíblicas com perfeição, são nos sutis detalhes de uma posição de mão ou num encostar de pés que a sua sensibilidade artística se mostra.

Outra artista que foi incrível ter conhecido pessoalmente foi a russa Daria Tuminas. Ela expôs o trabalho “Ivan and the Moon” nos jardins do próprio Musée du Quai Branly.

Seu trabalho se constrói sob a perfeita sintonia entre um olhar sensível/poético e o domínio estético da imagem.

Ela narra três anos da vida dos adolescentes Ivan e Andrey, cujo apelido é Lua. Os irmãos vivem seus últimos anos na remota aldeia a quase 1000 km de Moscou.

Seus interesses nada tem a ver com o jovem urbano. Vivem isolados, mas sabem que dentro de dois ou três anos terão que sair para estudar e cumprir o serviço militar. Daria, que ama literatura, escreve em imagens quase que uma carta de despedida.

Ainda que com os garotos nas fotos, o silêncio prevalece… É como se aqueles inóspitos lugares já estivessem vazios antes da real despedida.

Bom… Se eu fosse falar aqui de tudo que me agradou seriam posts e mais posts no blog.

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Por favor, Gustavo!
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