Simbiose auto-humana
Sobre uma ponte, à noite, um fotógrafo registra a intimidade de motoristas que circulam pela rua abaixo.
Sem se esconder, dispara flashes que revelam flagras de consumo de drogas, brigas, sexo ou apenas o tédio do trânsito.
“Karma”, recém-lançado fotolivro do espanhol Óscar Monzón, 32, rompe com a sensação de isolamento com o espaço público que os carros parecem oferecer.
As 69 imagens invasivas de Monzón em Madri escancaram tanto a fragilidade das cápsulas transparentes dos automóveis quanto a simbiose entre veículos e seus donos.
“O carro é a manifestação de instintos primários e anseios do ser humano. Muitos automóveis lembram animais predadores e estão pensados para exercer poder. Quem desenha carros tem isso em mente”, frisa o espanhol.
Para materializar essa interação profunda entre homens e máquinas, Monzón organizou, junto aos flagras, dípticos em que dispõe texturas que emulam a pele humana ao lado de cortes fechados da lataria dos automóveis.
Concebido desde 2009, “Karma” difere da maioria dos ensaios fotográficos de rua, nos quais os artistas atuam como voyeurs.
Ao utilizar flashes fortíssimos, o espanhol optou por deixar claro que estava documentando a privacidade de desconhecidos. E, assim, como parte do projeto, dar ao fotografado a chance de reagir ao registro (com gestos obscenos, por exemplo).
Finalista na categoria livros de estreia do prestigioso Aperture Paris Photo Book Awards, “Karma” é permeado por um trato agressivo do comportamento humano encaixotado em carros. Embora o tom do livro seja crítico, Óscar Monzón diz não ser do tipo que odeia carros.
“Longe disso. Dirigir não é tão patético como aparece no livro nem tão maravilhoso como mostra a publicidade. Mais do que um ataque ao carro, [a obra] oferece uma mensagem contrária aos valores de poder, independência e liberdade que as propagandas têm associado ao uso de automóveis”.
Veja abaixo a entrevista na íntegra com Oscar Monzón, autor de “Karma”.
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Entretempos – “Karma” demorou muito para ser lançado. Quanto tempo demorou o processo todo? Além do nome [originalmente a obra se chama “Sweet Car”], o que mais mudou desde a concepção do livro?
Oscar Mónzon – Comecei o projeto em 2009, com a intenção de fazer uma série menor e centrada no enfrentamento entre fotografia e intimidade. O carro era uma desculpa para isso, um espaço que o usuário entende como privado, porém dentro do espaço público. “Sweet Car” era uma piada relacionada com esta ideia. Tinha claro que esse não era um título definitivo. Quanto mais fui ficando obsessivo com o projeto, muitas outra nuances foram aparecendo e comecei a dar cada vez mais importância ao motorista, a pensar na relação entre homem e máquina. Por que os carros têm um aspecto entre o humano e o animal, que carências nos levam a construir, desejar e utilizar de maneira descontrolada estas máquinas? O projeto foi se tornando mais complexo e extenso até que foi necessário fazer um livro e encontrar um título que englobasse tudo isso.
ET – Diferente de muitas obras de estilo voyeur, você utilizou um flash muito forte neste trabalho. Qual a intenção dessa linguagem? Existe a ideia de que o fotografado deve saber que está sendo fotografado?
OM – Para mim, era fundamental não me esconder, dar ao fotografado a possibilidade de ter uma reação à invasão de sua intimidade. Um flash, com a potência que usei, faz com que todo mundo se dê conta do que está acontecendo ali. Algumas imagens mostram esta reação. O fotógrafo de rua está constantemente se justificando, dando explicações a pedestres, polícia ou seguranças do porquê faz seu trabalho. A situação em que se chegou na França é incrível e muito simbólica, tendo em conta o quanto se cuida da fotografia ali. Temos aceitado que certas instituições nos espiem, nos fotografem e nos gravem na rua, mas desconfiamos de nossos semelhantes. Incluindo o simples olhar de um desconhecido por mais de dois segundos, que pode ser muito incômodo. Este incômodo ou desconfiança é o que nos leva a estar mais cômodos dentro dos nossos carros. A luz do flash vem para romper esta espécie de segurança e sensação de separação do resto, e nos traz a realidade no momento. Tive reações muito violentas em alguns casos, ainda que não era nada cômodo para mim, por conta do que eu estava buscando.
ET – Como o carro pode materializar o comportamento humano?
OM – O carro é a manifestação de instintos primários e anseios do ser humano, que tem se mantido ao largo de suas muitas vidas. Quem desenha carros tem isso em conta. Muitos automóveis lembram animais predadores selvagens e estão pensados para exercer poder através deles. Se conectam diretamente com instintos muito escondidos dentro de nós mesmos, mas que sempre estiveram aí.
ET – “Karma” é um livro muito direto, muito objetivo. Crê que seja um contraponto ao universo contemporâneo na fotografia, quase todo muito subjetivo?
OM – Desde o primeiro momento tive muito claro que devia ser uma linguagem muito direta. Grande parte de seu conteúdo se encontra na superfície e são imagens que podem ser lidas muito rapidamente. Buscam estimular o espectador, mas que obrigam a utilizar a mente para decifrar o significado. Considero fundamental que qualquer leitor possa entendê-lo, e não unicamente quem está muito familiarizado com a linguagem dos livros de fotografia. Isto não quer dizer que pretendo agradar a todo o mundo. Há espectadores que se incomodam e reagem violentamente igual a alguns dos retratados, e isto também é parte da mensagem. Ainda que eu goste de certos livros que necessitam de tempo e esforço para serem entendidos, ou que tenham uma linguagem, em algumas vezes, muito secretas, acredito que isto deve estar justificado e realizado de maneira natural por alguém com autoridade intelectual suficiente para fazê-lo com propriedade. Atualmente acontece que há muitos autores que buscam deliberadamente ser secretos e complicados, acreditando que dessa maneira, seu trabalho é mais pessoal. E que isto será mais valorizado em certos círculos ou editoriais. Mais do que projetos pessoais, parecem quebra-cabeças. Isso me preocupa, mas também acho que desaparecerá como qualquer outra moda.
ET – Você também está produzindo uma projeção a partir do livro, não é?
OM – Estou terminando um audiovisual em que estou trabalhando paralelamente ao livro. Cada vez me interessa mais a experiência que se pode gerar em um espaço mediante a imagem em movimento e com som. Não se trata de complemento para dar promoção ao livro, mas uma peça autônoma, com a mesma entidade. Gravei muito material em vídeo, aparecem algumas fotos, escrevi e produzi a música. Se trata de um techno, de inspiração pós-Detroit, onde aparecem vários padrões cíclicos que remetem ao funcionamento de um motor e ao comportamento igualmente cíclico da vida humana nas cidades. Detroit foi a cidade do motor e o lugar onde nasceu o techno, precisamente por inspiração da indústria do automóvel. É um audiovisual apocalíptico.
ET – Você odeia carros?
OM – Longe disso, me atraem bastante. Em projetos anteriores, ao trabalhar a edição, me dava conta de que fazia muitas fotos de carros e, geralmente, os incluindo na paisagem como se fossem seres vivos que ali habitavam. Esteticamente, me conecto muito com seus desenhos e materiais. Gosto de observar como evoluem, ainda que nunca tive o desejo de possuir um. Entendo que o projeto possa ser lido como um manifesto de ódio ao carro, mas não é assim. Qualquer projeto fotográfico é uma interpretação, e portanto, uma manipulação da realidade. Dirigir não é tão patético como aparece no livro, nem tão maravilhoso como mostra a publicidade. Mais do que um ataque ao carro, [o livro] oferece uma mensagem contrária aos valores de poder, independência e liberdade que a publicidade tem associado a aquisição e uso de automóveis e que, particularmente, acho que são os motivos reais de seu abuso.
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Excelente ensaio, intrigante, uma relação observador e observado em duas vias.
Instintos primários e humanos, mecanismo único e que conduz a humanidade à uma complexidade ímpar.