O selo da solidão
Uma das metades do Entretempos está na Armênia para uma temporada de projetos pessoais. O blog aproveita para explorar os artistas da região.
É possível falar sobre o Cáucaso, sobre ser uma fotógrafa mulher em um ambiente machista e sobre documentar transexuais. A armênia Nazik Armenakyan abriga todas essas características. O Entretempos conversou com a artista em um café parisiense em Ierevan, capital do país.
Mãe de dois filhos e casada com um georgiano, Armenakyan, 37, resolveu se dedicar à fotografia há dez anos. Tarefa nada fácil e pouco aceita em uma sociedade que, ainda hoje, continua conservadora em relação à mulher.
Mas a fotógrafa resolveu ultrapassar outra barreira ao fotografar transexuais, tema quase invisível no país. Pouco se sabe do assunto e pouco se quer falar sobre. Armenakyan passou seis meses pesquisando a questão enquanto afirma ter sofrido preconceito até de seus próprios amigos. A pesquisa gerou o livro e exposição “The Stamp of Loneliness” (O Selo da Solidão).
Antes, ela foi a única mulher na Armenpress, agência de fotojornalismo local. A fotógrafa conta que todos os homens achavam que ela estava brincando. “Vá para casa, não cansou de brincar de fotografia? Seu lugar é em casa, cozinhando e cuidando do lar. Você não vê que não pertence a esse espaço?”, eram frases que ouvia com frequência, diz.
Ao menos em casa, Armenakyan tinha apoio. Cresceu em um núcleo familiar moderno, que lhe deu suporte para a profissão, inclusive, a primeira câmera. “Desde criança, via o que não deveria ver. Procurava pelo proibido, por imagens que nem sabia a força que tinham. Sempre vi mais do que devia.”
Com os transexuais foram três anos de projeto. Entre 2010 e 2013, em que passou o primeiro ano dedicada apenas à convivência, sem nem levar a câmera, Armenakyan conta que entrou nesse universo trocando confidências e truques de maquiagem. “Elas viraram minhas ‘best girlfriends‘”.
“Claro que no começo eu ficava apavorada. Era um submundo que na Armênia se torna ainda mais obscuro. Passava sete horas com essas pessoas e não ia ao banheiro, não bebia água, quase não sentava nos lugares de suas casas. Para mim, era a indústria do sexo. Eram homens e eu só ficava pirando ao imaginar o que poderiam fazer comigo ali. Eram estranhos.”
“Enquanto eu fazia esse projeto, colocava a minha vida em risco, e ainda mais a da minha família. Mas precisava fazer isso por esses homens, por essas pessoas e também por mim. Eu mudei. Elas me mudaram”.
Ao todo, foram seis personagens. Muitas de suas amigas já se mudaram para a Europa e outras tantas têm o mesmo plano. Nas clínicas cirúrgicas no país não são realizadas mudanças de sexo, apenas próteses de silicone e injeção de hormônios. Atualmente, associações se dedicam ao tema e há uma pequena parada gay na capital. Por outro lado, há dois anos, um bar frequentado por gays, lésbicas e simpatizantes foi violentamente atacado por extremistas do país. Hoje, não existe mais um local onde eles possam se reunir.
Quando seu livro foi lançado, a fotógrafa promoveu uma exposição de apenas um dia, fechada em um apartamento alugado no centro de Ierevan. Armenakyan afirma que os próprios protagonistas não puderam comparecer por medo de alguma reação. Ainda assim, a obra pode ser encontrada em algumas das livrarias da capital. “Sofro preconceito até hoje. Um ex-político pegou a publicação em uma loja e rasgou. Agora, usa o livro em debates na televisão e em fóruns para difamar meu nome para a sociedade armênia.”
Ao lado de outras duas fotógrafas, Armenakyan fundou a 4 Plus Documentary Photography, centro dedicado à produção de projetos documentais e hoje colabora para agências internacionais. Não pretende sair de Ierevan, mas continua desenvolvendo trabalhos que lidem com temas extremamente delicados para essa sociedade, ainda rodeada de tantos pudores.
Curta o Entretempos no Facebook clicando aqui.
História incrível.