Crentes e pregadores

DAIGO OLIVA

Na busca de sua santíssima trindade –palco, terreiro e altar–, a brasiliense Bárbara Wagner, 34, retratou jovens evangélicos de Pernambuco e de Alagoas. Fotografou MCs de letras sensuais que agradecem a Jesus pelo sucesso e participou de sessões de descarrego em que pastores dançavam
no altar ao som de uma canção gospel frenética indistinta da axé music.
Os ensaios “Crentes” e “Pregadores” são parte do projeto Offside Brazil, intercâmbio entre brasileiros e fotógrafos da agência Magnum.

Durante a Copa do Mundo, além de Wagner, o italiano Alex Majoli, o norueguês Jonas Bendiksen e os norte-americanos David Alan Harvey e Susan Meiselas trabalharam com os coletivos Mídia Ninja e Garapa mais
os fotógrafos Pio Figueiroa, Breno Rotatori e André Vieira para formar
um documento fotográfico do Brasil no período do Mundial de futebol.

O projeto é o maior destaque da sétima edição da revista “Zum”, do Instituto Moreira Salles, que conta com ensaios do fotógrafo mineiro Assis Horta e do japonês Daido Moriyama e um texto inédito do filósofo Vilém Flusser. O lançamento da publicação acontece neste sábado (1º), às 18h, na Praça das Artes, com debate sobre o Offside mediado pela jornalista Laura Capriglione.

Bárbara, que estará no bate-papo, conversou com o blog sobre o ensaio que produziu para o projeto. Para a fotógrafa, o maior desafio desta pesquisa é entender os preconceitos econômicos e sociais que estigmatizam
os evangélicos. “O crescimento da religião evangélica no Brasil está para questões de gênero, de cor e de classe tanto quanto as manifestações nas ruas estão para a formação de uma nova geração de eleitores.”

Ao final do Offside Brazil, qual é a sua interpretação do projeto? Qual foi o retrato do país feito por brasileiros e estrangeiros?

Desde que o projeto tomou a Copa como mote para uma produção em cidades já bastante documentadas –caso de São Paulo e Rio–, sabemos que há a premissa de desmistificar imagens que circulam nas indústrias jornalística e turística tanto dentro como fora do país. Acho que o projeto pretendia não somente dar conta de situações testemunhadas durante o torneio, mas sobretudo tensionar possibilidades e limitações da própria fotografia documental. Outro fator crucial é que o projeto criou um fluxo de imagens que encontram paralelos e oposições a todo instante. Intrigou-me poder observar como assuntos semelhantes poderiam adquirir conotações tão diferentes a depender do posicionamento de cada autor, de seus interesses,
de suas escolhas éticas e formais. Uma imagem colorida da multidão de anônimos assistindo aos jogos numa praia do Rio, ou um registro dos conflitos entre manifestantes anti-Copa com a polícia poderiam estar ao lado de imagens em preto e branco mostrando personagens ‘VIP’, no mesmo dia, em uma festa na casa de uma socialite carioca. São clichês que podem ser lidos criticamente quando dispostos em paralelo e contextualizados.

Você fotografou evangélicos, um assunto que ganhou ainda mais destaque na eleição presidencial no momento de ascensão de Marina Silva nas pesquisas. Você acha que o discurso de medo por conta da influência da religião, propagado por muitos eleitores contrários a ela –e pela mídia também–, se justifica?

Acho que o medo se justifica quando o Estado laico previsto em nossa constituição é ameaçado por intolerâncias de qualquer natureza. Se por um lado não dá pra falarmos de “evangélicos brasileiros” como uma massa uniforme, porque ela de fato não é, por outro temos de estar atentos ao que
os representantes de denominações evangélicas em cargos públicos têm a dizer ou, na pior das hipóteses, pregar. O que vejo como um grande desafio
na documentação e pesquisa sobre esse assunto é que uma parcela grande dos evangélicos que tenho fotografado são pessoas que buscam sair de situações que a estigmatizaram como alvos de algum preconceito. O assunto do crescimento da religião evangélica no Brasil está para questões de gênero,
de cor e de classe tanto quanto, por exemplo, as manifestações nas ruas estão para a formação de uma nova geração de eleitores e a popularidade das redes sociais: não dá pra falar de uma coisa sem considerar a outra. Estamos num momento em que cada vez mais pessoas se “convertem” ao evangelismo –sendo os neopentescostais os mais populares–, quando já não nascem dentro dele. Quando preconceitos e intolerâncias estão costurados no cotidiano de tanta gente de uma forma tão perversamente sofisticada, qualquer trabalho documental ou artístico que se debruce sobre esse tema tem de levar em
conta essa dimensão econômica e social mais complexa.

Você mora em Berlim. O tempo vivendo fora alterou a maneira como documentou as manifestações populares no Brasil?
Como seus trabalhos são percebidos na Alemanha?

Essa é uma das questões centrais para o meu trabalho como fotógrafa: conseguir “estranhar” aquilo que é familiar. Se é lugar comum dizer que a rotina achata nossos sentidos, viver em trânsito tem o forte efeito de nos alienar… Não é tarefa fácil para nenhum artista dominar a narrativa de seus temas quando se contam histórias de dentro para fora de seu país. Me preocupo sobretudo com essas formas de tradução, e gosto cada vez mais da idéia de fazer trabalhos no Brasil para brasileiros –e sonho em um dia fazer trabalhos na Alemanha para alemães! Não acredito em trabalhos que falem uma língua universal… Gosto, sim, de entender como características culturais intrínsecas de um lugar encontram paralelos em outro. Quando estive na Ilha da Reunião [território francês no Oceano Índico], por exemplo, entendi que poderia estar na Bahia, por motivos não tão óbvios ligados a história colonial da França e do Brasil. Mas meu negócio não são bananas.

Li em uma entrevista recente sua para a “Vice”, que o uso do flash em cenas de dia “traz uma série de códigos que nos fazem entender, rapidamente, hierarquias de gosto e de poder.” Você pode explicar melhor o que significa essa formulação estética? Acredito que seja algo muito marcante no seu trabalho.

O que eu quis dizer é que os estereótipos são poderosos. Se existem códigos sutis criados, reproduzidos e adaptados em toda sorte de mídias a fim de representar status ou bom gosto, esses códigos só sobrevivem culturalmente porque funcionam. São os signos da propaganda, que não se diferenciam dos signos da política, em um sentido subjetivo também. Como me interesso por aquilo que é específico em determinada forma de expressão popular, faço uso de recursos da fotografia de retrato –da pose, do flash–, que trazem em sua superfície uma estética corriqueira, rapidamente compreendida não nas galerias de arte, mas nas ruas. Porque no fundo, o que quero é me comunicar, fazer o trabalho falar. Em outras palavras, não tento reinventar a roda, mas gosto de entender como ela gira, e para que lado ela pode ir.

Além dos estereótipos conhecidos, o que você descobriu sobre os evangélicos, os MCs e os bailes de Recife durante a sua pesquisa?

A primeira parte desta pesquisa, que está em exibição na Trienal Frestas em Sorocaba e publicada na ZUM, resultou em duas séries que intitulei “Crentes” e “Pregadores”, na tentativa de não reduzir o assunto, sobretudo quando batistas se diferem de pentescostais que diferem de neopentescostais. Mas a pesquisa está apenas no início, já que me concentrei na região metropolitana do Recife e em pequenas cidades de Pernambuco e Alagoas. Uma das descobertas mais fortes até agora foi entender que, se no começo do boom do evangelismo no Brasil os cultos buscavam combater o catolicismo –temos de lembrar do pastor que chutou a santa em 1995–, numa ‘sessão do descarrego’ da Igreja Universal em Recife o principal inimigo de Deus, o Diabo, causador não somente de problemas de comportamento ou doenças, mas sobretudo de dívidas financeiras, pode estar ‘encostado’ no fiel por conta de um feitiço feito contra ele no terreiro de candomblé. O curioso é que, para muitos neopentecostais, se as religiões afro-brasileiras são o alvo a ser combatido, a linguagem dos cultos é emprestada delas mesmas. Em uma sessão que participei, na qual tentaram me exorcizar quatro vezes, houve um momento final em que pastores e obreiros dançavam no altar ao som de uma canção gospel frenética, que era indistinta de uma axé music. Já muitos MCs das bandas de brega, “das novinhas” do Recife –gênero musical marcado por bits e movimentos super acelerados com letras que exaltam os prazeres do corpo–, frequentam cultos evangélicos em seus bairros, com suas famílias. Muitos agradecem o sucesso rápido em suas carreiras a Jesus. Toda essa confusão me interessa muito e, como falei há uns meses, talvez não haja mesmo muita diferença entre o palco, o terreiro e o altar.

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