Relação entre fotografia e fetiche move britânico em autorretratos com burcas

DAIGO OLIVA

“Não há absolutamente nenhuma maneira de provar que esta história é real. Eu posso imaginar o prazer de 2041 quando eu disser a ele que um jornalista perguntou isso. É este tipo de questionamento que lhe dá prazer no que faz.”

Assim Lewis Chaplin defende o trabalho recente que descobriu e editou pela Here Press. Sob o nome de 2041, um suposto engenheiro elétrico aposentado de Londres produziu mais de 60 mil imagens em que registra a si mesmo com o corpo todo coberto. Usando burcas –vestes usadas por algumas muçulmanas, que não mostram nenhuma parte do corpo, nem os olhos– ou gambiarras que unem lenços e tecidos, o agora artista explora um fetiche que compartilha em grupos hospedados no serviço de armazenamento Flickr.

Foi desta forma que Chaplin encontrou o trabalho de 2041. Sem revelar a identidade do autor nem a página de onde as imagens saíram, o editor falou à Folha por e-mail. Ele explica que o trabalho de 2041 “é uma forma particular de um jogo fotográfico, que fala sobre como percebemos outras formas de fotografia, como o autorretrato”. Mais do que isso, enxerga na obra do britânico uma maneira diferente de relacionar fotografia e fetiches. Para Chaplin, a fotografia quase sempre serviu apenas como ilustração, enquanto a obra de 2041 constitui um processo mais elaborado.

O caminho entre a preparação para a câmera, a escolha das roupas e a divulgação do trabalho se tornou uma performance. “A produção da imagem e a criação para a câmera são a concepção de um fetiche”, explica. Veja abaixo trechos da entrevista com Lewis Chaplin. O autor, 2041, negou qualquer tipo de contato. “Ele é um artista, dramaturgo e cantor de coral. É engraçado sem demostrar emoções. Nós jantamos na semana passada”, diverte-se Chaplin, que trabalhou ao lado de Ben Weaver na edição do livro.

Entretempos – Li em entrevistas como você encontrou estas imagens. A conta no [serviço de armazenamento] Flickr ainda
está ativa? É possível ver estas imagens em sua fonte original?

Lewis Chaplin – Sim, a conta no Flickr de 2041 ainda está on-line e ativa. Ele posta fotos regularmente e em algumas eu apareço –ou dei uma mão na produção. As formas de composição vistas em nossa publicação ainda são práticas que ele continua fazendo com a proposta de compartilhar e explorar seu fetiche e de se comunicar com os outros. Mas é importante saber que as imagens que publicamos tem duas “vidas” separadas. Enquanto ele quiser as duas partes separadas, pela ideia de total anonimato contida em nosso livro, ver as fotos na sua fonte original não será uma informação que forneceremos.

Você disse ao “British Journal of Photography” que encontrou as imagens de 2041 enquanto buscava por “grupos dedicados à arte de cobrir todo o corpo”. Você encontrou muitas pessoas que compartilhavam este tema. Por que as imagens de 2041 ganharam
a sua atenção? O que há de tão especial nelas para publica-las?

Há uma grande diferença entre como ele faz as imagens e a maneira
como eu vejo outros com interesse similar. Para 2041, os atos e processos fotográficos, a preparação da imagem e a criação de uma performance para a câmera são a concepção de um fetiche, enquanto as fotografias são peças complementares a outras práticas e gestos. Por causa disso, a meticulosidade e a composição de seu trabalho, mais a regularidade e o cuidado que tem, são completamente únicos. Eu voltava, voltava e voltava às suas obras e comecei
a ver que a arte produzida por ele está acima e além do uso comum da fotografia como fetiche. Geralmente, a fotografia é utilizada como ilustração, apresentada com o objetivo de gratificação imediata. Há cuidado e tempo gasto nessas fotos: 2041 geralmente fotografa 40, 50 imagens por vez.

Como foram os primeiros contatos com o homem por trás das imagens? O que você pode contar sobre ele? Onde ele consegue todas aquelas roupas? Por que o nome 2041?

Não quero dar muitas informações sobre 2041. O livro em si é sobre mistério e fantasia, sobre falta de visibilidade. Ele é um artista, de uma grande família de pessoas criativas. É dramaturgo e cantor de coral. Ele é engraçado sem demostrar emoções e é fascinante. Nós jantamos na semana passada.

Após o terrorismo em Paris provocado pelos cartuns do “Charlie Hebdo”, você ficou com medo de algum tipo de retaliação?

Esta é uma questão que, de alguma forma, passou pela cabeça de todos os envolvidos no lançamento. Como artista, algo em que estou interessado é a maneira como o contexto e as camadas de informação com que cercamos uma fotografia nos faz decifrar uma modernidade centrada na imagem. Muitas vezes, é por meio de mudanças sutis e subversões desses contextos que se pode obter uma visão sobre os mecanismos da produção de significados. Fazer o livro tem sido uma experiência enorme no processo de entendimento do quanto o contexto é importante para entender uma imagem. Nós recebemos muitos pedidos de entrevistas sobre este livro e alguns deles recusamos por esta razão. Esta obra não é uma forma de provocação política nem de sarcasmo ou um exercício de ironia. É uma reprodução sincera de uma forma particular de um jogo fotográfico, que, espero, fale sobre como nós percebemos outras formas de fotografia –o autorretrato, por exemplo. Isto faz com que seja ainda mais importante que o livro seja bem apresentado na mídia, por nós, em resenhas, entrevistas etc.

Esta história é muito boa para ser verdade. Como você pode provar que o homem por trás destas imagens é um engenheiro elétrico aposentado de Londres? Ser real é algo que importa?

Não há absolutamente nenhuma maneira de provar que esta história é real. Eu posso imaginar o prazer de 2041 quando eu disser a ele que um jornalista me perguntou isso. É exatamente este tipo de questionamento que lhe dá muito prazer no que faz. Pode ser qualquer pessoa.

O arquivo original de 2041, segundo você, tem 60 mil imagens. Qual foi o critério para decidir o que seria mostrado no livro?

O processo de seleção foi inicialmente guiado pela edição do próprio 2041, pela maneira como ele apresentava seu trabalho on-line ou fazia a edição em seu computador. Daí começamos a desenvolver sequências e uma narrativa, que muito sutilmente permeia o livro. Depois, mergulhamos fundo em seu arquivo para encontrar as jóias escondidas. Foi um exercício cansativo para encontrar uma edição coerente de imagens muito similares. Mas, na maior parte do tempo, fomos guiados pelo instinto. As fotografias que são impenetráveis e lúcidas para ele são cheias de sugestões sombrias.

Embora a maneira como o flash é usado nas imagens seja simples, é totalmente de um jeito contemporâneo, parece algo feito por um artista atual. Os editores tiveram alguma contribuição na maneira como ele fotografou as imagens que estão no livro?

Não. Mesmo que 2041 e eu tenhamos trabalhado juntos em várias imagens, ele fotografou apenas usando suas próprias técnicas. Nenhuma das imagens no livro têm alguma intromissão da nossa parte. Ele é visualmente informado, claro, conhece as técnicas de pintores como [Peter Paul] Rubens, [Diego] Velázquez e outros. Sua estética contemporânea é algo muito mais funcional, ele está preocupado em mostrar seus disfarces com uma luz direta.

Você vê esse trabalho como uma performance? Li algumas pessoas defendendo que as imagens parecem um protesto feminista. Para você, o que o autor quis expressar com essas fotografias?

Como mencionei, para 2041, eu sinto que fotografar se tornou uma performance em si. Ele se veste para a câmera, seu fetiche é cristalizado
com o ato de fotografar, desde a produção até a edição e distribuição da imagem on-line. Até certo ponto, todos os fetiches incorporam um elemento de performance, que envolve você sair de si mesmo. Sobre o que ele quer expressar, vejo a performance como uma forma de comunicação, de estabelecer e divulgar a relação com uma ideia ou uma coisa. Ele se
apresenta como alguém apto a instituir um diálogo com outros que têm interesses similares. Algo que ele e eu estamos fazendo agora é canalizar a energia desta performance em vídeos, em que esta construção, talvez,
esteja ainda mais visível. Mas é uma história para outra hora.

2041
AUTOR 2041
EDITORA Here Press
QUANTO £ 37 (cerca de R$ 158, 120 págs., importado)

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