‘Método Abramovic’ é questão de fé
Se eu entrasse em uma das salas da retrospectiva de Marina Abramovic, no Sesc Pompeia, e desse de cara com algum amigo manejando um cristal, é provável que eu não segurasse o riso. Mas não havia amigo algum, era eu mesmo quem estava lá. De fora, a cena certamente foi ridícula, mas não é fácil explicar o que senti ao tocar, durante cinco minutos, com as mãos espalmadas, um cristal da obra “Objetos Transitórios para Uso Humano”.
Considerada a mais importante artista de performance viva na atualidade, Abramovic inaugurou a mostra “Terra Comunal” na última terça (10), em São Paulo. A exposição traz os principais trabalhos realizados pela sérvia, desde “A Artista Está Presente”, produzido no MoMA, em 2011, em que ficou sentada em uma cadeira encarando os visitantes do museu, até a performance “Rest Energy”, concebida junta a seu ex-companheiro, Ulay, nos anos 1980.
No vídeo, como numa representação da confiança entre um casal, Ulay e Abramovic compartilham um arco e uma flecha. Enquanto ele segura o dardo mirado no coração da artista, é ela quem mantém o arco preparado para o tiro em sua própria direção. São quatro minutos em que só há a convicção no outro. Com performances deste tipo, Abramovic se estabeleceu como símbolo do uso do corpo na arte contemporânea e, na mesma medida em que produziu mais e mais trabalhos centrados na resistência física e mental, também criou uma aura de devoção e mística ao seu redor.
Mística que ainda ganhou contornos pop há poucos anos, quando numa cruzada para criar o seu instituto, o MAI (Marina Abramovic Institute), trabalhou com os músicos hiper badalados Lady Gaga e Jay-Z, o que fez sua audiência crescer exponencialmente. Foi em meio a este contexto de ceticismo diante de sua personagem marqueteira e aberto a sensações que
me tirem da mesmice do dia a dia que visitei a retrospectiva da artista.
Paralisado diante de uma pedra roxa, pensando com um pouco mais de tempo sobre questões do trabalho, da família e dos amigos, me despi de qualquer preconceito hippie. Foi uma quebra na rotina de toneladas de WhatsApp por segundo, de 20 mil abas do Google Chrome abertas ao mesmo tempo e da paranoia com o déficit de atenção. De tão comum, o distúrbio hoje já nem pode mais ser chamado assim. Os minutos grudados no cristal foram tão estranhos e contemplativos que me impulsionaram ao “Método Abramovic”.
No método, “coração da mostra da artista sérvia e versão reduzida de suas sessões de treinamento para performers, seus discípulos passam uma semana sem comer nem falar, para aprender a ‘estar presente'”, explica o repórter Silas Martí em texto publicado na “Ilustrada” na última quarta-feira (11).
Embora seja preciso se inscrever pela internet para participar do treinamento, há sempre uma fila de espera para quem não o fez com antecedência. Segundo os funcionários do Sesc, é difícil alguém ficar de fora. Não me inscrevi, peguei uma fila de dez minutos e logo entrei no espaço que serve para o aquecimento. Após guardar seus pertences, um grupo de cerca de 40 pessoas encontra Abramovic em telas de TV dando instruções de como será realizado o método. Quem pratica ioga ou meditação não vai se surpreender com os exercícios, que, basicamente, são estímulos sensoriais. “Com o polegar esquerdo, tampe a narina esquerda e inspire nove vezes”, “esfregue as mãos para criar energia e calor”, “faça massagem nos olhos”. Quem olha de fora, dá risada do delírio coletivo, mas quem está lá se diverte.
Em tempo: toda a experiência ocorre em um lugar cercado de biombos. Só quem estiver na parte superior do Sesc, onde ficam as mesas para leitura e estudos, com alguma boa vontade, consegue ver o que está acontecendo lá embaixo. Também não há contato físico com outras pessoas nem é preciso ficar pelado, caso o leitor imagine o método como uma peça teatral como as de Zé Celso. Depois de 15 minutos ativando as terminações nervosas, vem então o circuito do método. Os participantes recebem fones que isolam os ruídos exteriores, como aqueles usados na construção civil, e, divididos em quatro grupos, alternam sessões de 30 minutos em cada exercício.
Comecei pela caminhada em câmera lenta. Em modorrentos passos, acompanhado de um batalhão, fui de uma parede a outra do galpão do Sesc. A caminhada em si não foi nada demais, mas era incrível o nível de atuação dos participantes para limpar o suor da testa. Somos todos atores. Os braços pesavam quilos, o movimento era completamente calculado, as pernas tremiam. Em seguida, meu grupo se deitou em camas de madeira, claras e escuras, com um cristal na ponta. Lá estava eu encarando um cristal de novo.
Fiquei tão relaxado que dormi por uns dez minutos. Até ali, o método era algo tranquilo de ser realizado e, embora não fosse nada transcendental, ao menos me tirava um pouco da neurose do celular, da lista do supermercado, do jogo do São Paulo que acontecia naquele momento e, principalmente, dos embates eufóricos nas redes sociais sobre as manifestações deste domingo (15).
Mas a terceira etapa mudou toda a minha percepção. De pé, sobre bases, ficamos de frente a uma tábua vertical com três cristais cravados na madeira. Ao meu redor, muitos seguiam com a postura ereta, o olhar concentrado, o corpo todo em riste, quase num tique militar. De alguma maneira, ao menos para mim, era possível ver que as pessoas estavam em uma conexão real com o método. Meu lado cético apitou e os cristais viraram apenas apoios para a minha paciência. Meu corpo virou símbolo do deboche e só queria se sentar, embora tenha me comportado de maneira digna até o fim do exercício.
Talvez o “Método Abramovic” seja uma questão de fé. Assim como nas religiões, você se entrega a uma força que te levará a um outro estado de espírito, para uma experiência inimaginável. Não há dúvida que aqueles que estavam ali, compenetrados com seus cristais, ainda que seja em um nível mínimo, elevaram suas mentes para outro patamar. Por outro lado, eu, cético, senti um efeito rebote. Lembrei-me de quando assisti ao documentário “Super Size Me”, de Morgan Spurlock, em que o norte-americano coloca à prova como seria viver 30 dias apenas se alimentando no McDonald’s.
Mesmo diante de todas as desgraças da junk food mostradas no filme, ao terminar o longa, a única vontade era sair e comer um sanduíche horroroso. Na última parte do método, minha cabeça já estava inundada novamente por todas as futilidades e tarefas para serem realizadas ao longo da semana. Por fim, fiquei de frente a uma parede branca, ainda sem ouvir nada do mundo lá fora, mas com a cabeça baixa e os pés inquietos. Abramovic não é nenhuma charlatona. Ela apenas mexe com nossas crenças sobre o cotidiano. Ainda preciso de muito treinamento físico e mental para passar dessas barreiras.
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