Livro resgata embalagens, anúncios e conta história do comércio fotográfico
A memória está espalhada em pedaços. Pedaços que, muitas vezes, são objetos do desprezo voraz, como se não carregassem nenhum valor. Na tentativa de reconstruir a história da fotografia brasileira, sobretudo de seu comércio na primeira metade do século 20, o pesquisador Rubens Fernandes Junior reuniu embalagens, anúncios, guias, revistas e outros tantos impressos “descartáveis” para seu novo livro, “Papéis Efêmeros da Fotografia”, com lançamento marcado para este sábado (16), em São Paulo.
“A quantidade de informação que você pode retirar de um efêmero é enorme. Minha preocupação foi recolher tudo o que cerca o fazer fotográfico, tudo o que tinha a palavra ou a ideia fotografia”, explica o também professor e diretor da faculdade de comunicação da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado). Fernandes realizou uma profunda e difícil pesquisa em que relaciona o material recolhido durante mais de 30 anos –principalmente embalagens para acondicionar negativos e papéis– com a trajetória de lojas e marcas essenciais para a disseminação da fotografia amadora no Brasil.
Este papéis efêmeros revelam também a forte presença de estrangeiros na produção de ilustrações –e, junto a eles, a vinda de escolas de design europeias para o país– e a figura educativa de empresas como Kodak e Agfa para ensinar a seus consumidores como melhor utilizar seus produtos. Por meio de impressos que na maioria das vezes são rapidamente jogados no lixo é possível traçar a história de instituições e de costumes de uma época.
Leia abaixo trechos da entrevista por telefone com o autor, que inaugura, junto à publicação, uma mostra com cerca de cem efêmeros até 12/7, na Casa
da Imagem, em São Paulo. Todas as informações estão no final da postagem.
Entretempos -No começo do livro, você usa muitas vezes as palavras “violência”, “esquecimento” e “desprezo”. Esta pesquisa
é uma reação ao modo como lidamos com as memórias hoje?
Rubens Fernandes Junior – É isso mesmo. Na verdade, acho que a ideia de que o passado não tem importância é cada vez mais acelerada, ainda mais entre os jovens. O fato de o papel ser uma coisa muito frágil faz com que as pessoas joguem tudo fora. É natural se desfazer de coisas, mas a minha preocupação era evitar essa dispersão e, consequentemente, o esquecimento. A quantidade de informação que você pode retirar de um efêmero é enorme.
É uma camada da história que não pode se perder.
Antigamente, os sacos de padaria, de levar pão, levavam brasões, desenhos e frases como “servimos bem para servir sempre”. Hoje, assim como os efêmeros fotográficos, esses papéis são cada vez mais minimalistas ou não têm nada escrito. Por que essa preocupação visual com embalagens descartáveis se perdeu?
Eu não se foi o conceito da embalagem, mas sim o empobrecimento social e cultural da sociedade globalizada. Na medida em que você padroniza a escala de produção, por que você vai gastar mais tinta ou trazer um designer para criar uma embalagem, uma letra, uma frase, se você pode simplesmente usar um papel que certamente vai para o lixo? A sociedade está mais globalizada, pasteurizada e padronizada, então esse padrão vai impondo um desprezo pela singularidade. Eu tenho embalagens dos anos 1990, contemporâneas, que não têm nada escrito. É só “Labtec, avenida Angélica, número tal”. Não tem mais nenhum tipo de informação. Quanto mais você reduzir, mais você economiza. Numa sociedade em que o dinheiro tem que girar mais rápido, em que o consumo é exagerado, menos é mais para quem está arrecadando. E, consequentemente, o consumidor vai perdendo a elegância do consumo.
Você pesquisa esta documentação há 30 anos. Em que lugares encontrou os efêmeros? Achou algum colecionador?
Já conversei com muita gente, tanto no Brasil quanto fora, com amigos e pesquisadores de fotografia, e posso dizer que esse livro é inédito em termos do produto que ele aborda. Eu encontrei algumas obras similares, mas que falam de rótulos de cerveja, outros tipos de efêmeros. Voltado para fotografia, não vi nenhum. Fui recolhendo esse material em sebos e feirinhas –são 33 anos no Bexiga, na Benedito Calixto, em sebos que frequento. Minha preocupação foi recolher tudo o que cerca o fazer fotográfico, tudo o que tinha a palavra ou a ideia fotografia. Muitas revistas, anúncios de fotógrafos e de filmes. Tenho hoje quase mil efêmeros. Quando os vi reunidos, percebi que era possível contar uma história. Eu tive muita sorte de conviver com Thomas Farkas por mais de 20 anos e fui perguntando como as coisas aconteciam. Falei também com o Fernando László e seu avô, János László, que era da Kosmos, além do [German] Lorca. Fui levantando uma memória oral. Perguntava quem era o laboratorista, se lembrava de algum balconista, mas infelizmente encontrei poucos. Minha esperança é que os jovens pesquisadores olhem para isso e aprofundem esse estudo.
A pesquisa é centrada em São Paulo. Que outros lugares do país também produziram efêmeros importantes?
Seguramente: Recife, Salvador, Rio, Belém do Pará e Porto Alegre. Tenho pouquíssimo material dessas capitais, por isso só mostrei Recife e Rio no livro, mas, de novo, minha esperança é que alguém olhe a publicação e queira recolher os efêmeros desses locais. Essas cidades devem ter um material importante porque tiveram forte presença estrangeira e parte expressiva dos ilustradores eram de origem europeia. Você tem ilustrações que lembram Bauhaus, art déco, art nouveau, que são tipos de cultura que o estrangeiro trouxe para o Brasil e misturou com a nossa informalidade.
Quais eram as particularidades dos impressos brasileiros?
Basicamente é a informação de que os produtos foram adaptados para o clima tropical. Mas isso não é verdade, é só uma questão de venda. A Kodak não adaptou nada, trouxe tudo pronto. A fábrica de São José dos Campos só nasce nos anos 1960. Nos anos 1920, 1930, 1940, ela não tinha adequado nada para a luz tropical. Mas ela dizia, para ter uma conexão com o seu fotógrafo amador, que o produto dela era bom para o clima local.
A pesquisa também aborda a importância do sistema inteiro do comércio de filmes e ampliações. E aí tem a figura do balconista, que orienta o cliente. É uma figura que praticamente desapareceu. Quais são os efeitos disso na produção fotográfica?
Naquele momento, o grande propagador do consumo fotográfico e das marcas era, em primeiro lugar, o lojista, depois o balconista, o laboratorista e o retocador. Só aí tem três figuras, com exceção do dono, que desaparecem da cena cultural. Se você olhar para o impresso, você tem o ilustrador, o design e a gráfica que imprimiu tudo aquilo –quase nada assinado. É duro resgatar esses cidadão todos que criaram caldo para a historia da fotografia, mas que não foram contemplados. Minha ideia era valorizar esse trabalho “anônimo”, que a gente desconhece a importância hoje.
E como você fez para encontrar esses designers?
O [Bernhard] Rudofsky é o único que assinou os materiais que produziu. Talvez porque a Fotóptica registrou muitos momentos da sua história. Mas a casa Kosmos, por exemplo, que tem aquele sol, quase um poema concreto, que parece um obturador, pode ter sido um Décio Pignatari! Pode ter sido um concretista ou alguém com ligação com os poetas concretos… No entanto, a gente não conhece a autoria. Eu tentei encontrar os autores, mas não achei. Se aparecer, entra na segunda edição. Mas quando eu falo do papel educativo dos efêmeros, o balconista é o professor, é a mediação entre o fabricante e o consumidor. Tudo isso era por meio do balconista e do laboratorista que ia orientar se o negativo era bom, como fazer a ampliação etc. A gente perdeu essa interlocução. Hoje a gente vai na internet e aprende. Sem nenhuma nostalgia, eu digo que a gente perdeu esse laço humanitário que existia entre as pessoas naquele momento.
Mas além do laço humanitário, você acha que rendeu algum efeito estético ou técnico na produção fotográfica?
Hoje, o automatismo dos dispositivos fez com que o aprendizado seja quase nulo. Eu estou generalizando e sendo um pouco cruel, mas falo pelo o que vejo com os meus alunos, pelo senso comum. Todo aquele repertório que existia quando a fotografia tinha outro procedimento ficou muito fácil e você resolve questões sem saber por que está fazendo algo. A pessoa faz porque a máquina manda ela fazer e ela executa a função. Estamos num estágio automatizado, mas não temos o menor domínio da linguagem.
PAPÉIS EFÊMEROS DA FOTOGRAFIA
AUTOR Rubens Fernandes Junior
EDITORA Tempo d’Imagem
QUANDO lançamento neste sáb. (16), às 11h, na Casa da Imagem (rua Roberto Simonsen, 136 B), tel. (11) 3241-1081; exposição de ter. a dom.,
das 9h às 17h; até 12/7
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