Desespero e tesão de Antoine D’Agata vêm ao Brasil para o Paraty em Foco
O texto abaixo foi publicado na “Ilustrada” desta terça-feira (28).
Depois de uma punhalada, muitos socos e um olho perdido, o fotógrafo francês Antoine D’Agata volta ao Brasil. A punhalada ocorreu no México, há dois meses. O olho se foi aos 20 anos, quando brigou com a polícia e tomou três tiros. Já a saraivada de murros é a lembrança mais marcante de uma das três passagens por São Paulo, quando tentaram roubar sua câmera.
Maior festival de fotografia do país, o Paraty em Foco recebe D’Agata, 53, como destaque de sua 11ª edição, que será realizada entre 23 e 27/9. O universo em desconstrução do francês, no qual registra a si mesmo com dois de seus amores —prostitutas e agulhas cheias de heroína—, será o gancho para discutir representação e autorrepresentação na fotografia atual.
Como em quadros de Francis Bacon (1909-1992), os corpos captados nas imagens de D’Agata aparecem em simbiose, todos retorcidos —misto de desespero e tesão. “Vejo as selfies [publicadas em redes sociais] como uma maneira de trazer conforto. As pessoas tranquilizam suas inquietudes com fotos que digam: ‘Eu estive aqui com essa pessoa, e fizemos isso’”, comenta.
“Mas o autorretrato é uma forma de confrontar. São perguntas, enquanto as selfies são respostas. Esquecemos que fotografia é explorar e mudar a percepção sobre o mundo.” Percepção essa que ele controla por meio de períodos de abstinência e de imersão nas drogas.
Segundo D’Agata, cada vez que se vê dominado por elas, sem poder trabalhar, impõe a si mesmo um “detox”. Da mesma forma, quando se vê muito lúcido, retorna à antiga rotina porque sabe que é preciso “se perder”. Este “jogo perigoso, cheio de riscos” está longe de ser divertido, mas o também membro da Magnum afirma que esta é uma maneira necessária para se manter vivo.
Após visitar prostíbulos na região da Luz, em São Paulo, e pontos de venda de crack em Salvador —viagens registradas no fotolivro “Noiá”—, D’Agata vai a Paraty junto com o australiano Max Pam, o historiador espanhol Horácio Fernández e o finlandês Arno Rafael Minkkinen, entre muitos outros nomes.
Leia abaixo a íntegra da entrevista, por telefone, com Antoine D’Agata.
Entretempos – Você realizou ensaios em São Paulo e em Salvador. Qual é a memória mais marcante que tem do país?
Antoine D’Agata – Nos últimos anos, trabalhei três vezes no Brasil. E as três experiências foram muito fortes, muito intensas, com encontros muito densos. E com muita violência também. Em uma das vezes, em São Paulo, acabei no hospital. Três garotos quase me mataram, bateram-me na cabeça, mas fiquei com a câmera, nunca deixei a câmera. Em Salvador também passei muito medo. Fotografei por duas semanas um lugar de venda de crack e foi intenso, com muito medo, muita tensão. O trabalho que desenvolvi no Brasil
é muito importante, mas agora eu não tenho força para continuá-lo.
Então não vai aproveitar a viagem para fotografar no país?
Não sei. Gostaria de fazer mais um livro, porque foram três viagens e muitas fotos. Sempre busco esse nível de tensão, mas em algum ponto esse nível de tensão chega a outra coisa. E então se torna impossível trabalhar. Quando o nível de medo e violência vai além de um ponto, você fica sem ter o que fazer.
O que aconteceu com você em São Paulo?
Queriam roubar a câmera. Em Salvador foi o mesmo. Eu tive que tomar coisas para ter coragem de trabalhar. É como um círculo vicioso. Ao mesmo tempo, isso gerou uma experiência muito preciosa, muito única, muito forte.
O tema do festival é representação e autorrepresentação. Como você vê esse tsunami de selfies na fotografia atual?
Vejo as selfies como uma maneira de trazer conforto. As pessoas têm que confortar seus medos e inquietudes fazendo fotos que digam: “Eu estive aqui com essa pessoa, e fizemos isso”. Para mim, o autorretrato não é uma maneira de conforto. É uma maneira de perguntar, de explorar, de confrontar. Os autorretratos são perguntas, as selfies são respostas. São muito diferentes.
Ao mesmo tempo há muitos trabalhos que discorrem sobre a vida dos artistas. Estamos mais narcisistas?
Nos últimos 20 anos, vi uma evolução muito forte da fotografia. Chamo essa geração de geração Facebook, porque está muito interessada em si mesma. Com intenções boas: querem viver melhor, com pessoas melhores, em um ambiente ecológico. Mas a melhor maneira de conhecer o mundo é confrontando-o, confrontando os outros. Tomando alguma atitude de risco, abrindo-se à comunidade, aos estrangeiros. Sim, vejo a fotografia mais narcisista, mais egocêntrica. E esquecemos que a fotografia é explorar o mundo e mudar o entendimento sobre ele. A missão da fotografia é enfrentar a realidade e regressar a uma outra maneira de se relacionar com o mundo.
Em entrevistas anteriores, você fala abertamente sobre consumo de drogas e a sua dificuldade para se manter sóbrio. Como está a sua situação hoje em relação a este tema?
Eu sigo experimentando. Sempre usei das drogas e do sexo para chegar em algum tipo de inconsciência, de pureza. Quando vejo que a droga me domina, e não posso pensar nem trabalhar, faço “detox”. Agora mesmo estou em um momento em que o vórtex, a espiral, parece-me improdutivo. Não me afasto para me salvar disto, mas para voltar com mais controle. É um jogo perigoso, com riscos muito grandes. Tenho o privilégio de fazer as coisas que eu escolho fazer. Conheço muitas pessoas na fotografia que nunca puderam escolher nada. Essa liberdade me permite desenvolver o que faço, ver o mundo como vejo e compartilhá-lo. Tenho muito respeito pelas pessoas que eu fotografo, porque elas vão muito mais além do que eu nunca poderia ir. Estou numa posição complicada em relação às pessoas que fotografo. Trato de me levar a elas, mas ao mesmo tempo sei que tenho uma liberdade de movimento que eles não têm. Minha fotografia está em um equilíbrio impossível entre a vida e a arte. Interessa-me muito esse limite ideal quando a vida e a arte se confrontam. Quando a fotografia supera a vida, tudo fica muito consciente e vazio. E quando a vida supera a arte já não há arte. Estou sempre lutando, mesmo que saiba ser impossível chegar a um ponto. Ando de um lado para o outro como uma onda que nunca para. Quando vejo que o vício me pega e me mata, sei que tenho de tomar um pouco mais de controle para algum nível de lucidez. Quando estou muito lúcido, sei que tenho que me perder.
É verdade que você é cego de um dos olhos? O que aconteceu?
Perdi o olho em uma briga com a polícia, quando tinha 20 anos. Tomei três tiros: um na bunda, outro no ombro e o terceiro no olho. Há dois meses, no México, uma pessoa me apunhalou. Mas é importante porque me sinto vivo. Você sente a carne, o liquido que escorre. Não é um jogo divertido, mas é necessário sentir os riscos para seguir vivo. Tenho que fazer o que escolhi, dizer o que tenho que dizer e viver o quanto for possível da maneira mais intensa, mais honesta e mais justa que posso.
Há poucos meses, a Magnum escolheu um novo CEO para resolver suas finanças. Qual é a sua visão sobre a agência hoje?
Obviamente, a agência, assim como muitos meios de comunicação, estão vivendo mudanças muito importantes. Creio que o problema não seja econômico. Tenho muito carinho pela história, pelo mito fundador da agência, pelos seus fotógrafos e seus ideais, mas o que vejo hoje é que as coisas são muito mais pragmáticas, muito mais comerciais. Ainda assim, a Magnum e eu seguimos tentando encontrar um terreno de entendimento, porque não estou de acordo com o pragmatismo financeiro e comercial deles hoje. Ainda que alguns poderiam me acusar de idealismo ou de niilismo, acredito que seja mais um problema de valores do que de sobrevivência econômica. Há um desacordo profundo com a agência neste momento.
Você está na Dinamarca neste momento para uma série de workshops, algo que faz com certa frequência. Qual é a lição mais importante que você quer passar aos seus alunos?
Mais do que falar sobre fotografia, trato de dar responsabilidade para as pessoas. É sobre a vida. No final, é tudo uma questão de assumir uma posição na vida, em sua existência. Ser o mais coerente possível, e que esse é o dever do humano. Não sabemos muito, não sabemos nada no final, e com o pouco que sabemos temos de inventar um destino mais digno possível. É sobre isso que trato de compartilhar com eles: de ir um pouco mais além, de esquecer um pouco o meio profissional. Não é um problema da fotografia, é um problema da vida. É a força de cada dia de reinventar riscos e destinos.
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O nome do fotógrafo no título da matéria está escrito errado.
bruna! muito obrigado! que lapso terrível. foi corrigido.