Negativos do ‘Última Hora’ exibem a permanência da edição sem pudor no fotojornalismo

DAIGO OLIVA

Num carro conversível, Juscelino Kubitschek aparece glorioso, acenando para o estádio de São Januário lotado. Atrás do automóvel, além de arquibancadas tomadas, dezenas de pessoas carregam faixas de apoio ao presidente, que participava das comemorações ao Dia do Trabalho. Quem olha a imagem original restaurada agora pelo Arquivo do Estado de São Paulo, dentro do projeto que digitaliza 166 mil ampliações e 600 mil negativos da massa falida do “Última Hora”, jornal criado em 1951 por Samuel Wainer (1910-1980),  logo percebe que se trata de uma montagem grosseira, em que imagens de diferentes perspectivas são sobrepostas à base de tesoura e cola.

Já quem viu o registro no jornal “Última Hora”, em 1956, talvez não tenha notado ou se importado com as manipulações pouco ortodoxas nas fotos, publicadas sem indicação de que foram montadas. Como explica Vladimir Sacchetta, curador da mostra sobre o acervo, no processo para impressão da imagem, imperfeições das colagens eram automaticamente minimizadas.

Embora a montagem no fotojornalismo fosse prática mais comum e mais aceita à época, retoques para realçar partes das imagens seguem sendo feitos sem pudor. Em 2006, a agência Reuters afastou o fotógrafo libanês Adnan Hajj após investigação apontar alterações digitais em fotografias de um prédio em chamas em Beirute. Na foto, a fumaça que sai do edifício é mais preta e alongada, prova de que o autor “clonou” partes da nuvem negra.

No Brasil, em 2003, um registro da posse de Lula, feito pelo fotógrafo da Folha Eduardo Knapp, em que o presidente acena em um carro conversível ao lado de sua mulher, Marisa, foi publicado na revista “Veja” manipulado. O rosto da primeira-dama ganhou picotes de papel, enquanto sumiram os que cobriam partes do rosto dele. Se casos famosos são muitos, pequenas alterações, feitas silenciosamente todos os dias, são incontáveis, um elemento intrínseco à história do fotojornalismo. A manipulação de imagens não nasceu na era digital, e a recuperação do arquivo do “Última Hora” comprova isso.

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