Ponto crítico: ‘Ramos’
À convite da “Ilustríssima”, uma das metades do blog escreveu mais uma vez sobre “Ramos”, de Julio Bittencourt. A crítica foi publicada neste domingo.
Em frente à câmera ninguém é inocente. Quando alguém percebe que está sendo fotografado, torna-se ator. No piscinão de Ramos, praia artificial na zona norte do Rio, esse espetáculo é feito de litros de descolorante, boias e formas generosas, que transbordam de sungas e biquínis diminutos.
“A praia é um parque de diversões”, escreveu o fotógrafo britânico Martin Parr no texto que acompanha “Ramos”, de Julio Bittencourt, ensaio lançado agora como fotolivro [Cosac Naify e editora Madalena, 80 págs., R$ 80].
Corpos esbeltos e outros nem tanto se divertem em piqueniques, rodas de fofoca e nas horas gastas em busca do bronzeado perfeito. No piscinão do subúrbio carioca, mas principalmente nas tintas pesadas de Bittencourt, a praia ganha ares ainda mais folclóricos. Numa das cenas, enquanto o blondor escorre pelo corpo de uma garota de biquíni com estampa de flores, o desenho do Cristo Redentor abre os braços em uma toalha estendida sobre a areia escura, na qual ainda repousa uma garrafa de refrigerante Convenção.
Em outra, uma mulher de costas, também com descolorante, está bem no centro de uma página dupla, o que escancara um grave problema de encadernação para uma publicação de fotografia. As folhas não abrem por inteiro, e muitas vezes é preciso forçar a obra para ver as imagens com clareza. Trata-se de uma falha frequente nos fotolivros brasileiros.
Publicado pela primeira vez há seis anos, o ensaio do fotógrafo paulista ganhou prêmios e rodou exposições mas também despertou críticas. Há muitos que condenam esse tipo de abordagem sobre camadas populares, que traria um olhar sarcástico de superioridade sobre seus personagens.
A influência da linguagem consagrada por Martin Parr, que declarou sua admiração pelo trabalho de Bittencourt, é inegável. Nas fotografias do artista britânico, porém, as críticas ao comportamento consumista da classe média vem banhado em um humor corrosivo, mas ainda assim sutil.
O artista paulista deixa a leveza escapar na edição posterior à realização das imagens. Confere às fotos um tratamento de cor pesado, que dá ao ensaio um visual forçado. Embora Bittencourt não priorize o absurdo –o espetáculo da praia está ali por si só–, os tons sombrios acabam por reforçar a estética do excêntrico. É uma contraposição à captação das imagens.
Durante todo o livro, não se vê a busca pelo bizarro. Quem for até o piscinão de Ramos certamente encontrará os elementos retratados pelo fotógrafo em abundância, e não como uma exceção. Ele também trata seus personagens com respeito. Em muitas fotos, opta por esconder os rostos –importa o espírito coletivo do que retrata, e não a personificação. Quando é inevitável revelar expressões, o faz com consentimento dos retratados –alguns deles claramente posaram para Bittencourt.
Mais: em lugares públicos como esta praia artificial, que concentram grande fluxo de pessoas ao mesmo tempo, não há como ser totalmente honesto, justo ou qualquer outro adjetivo que satisfaça a sanha do politicamente correto. Talvez quem critique essa abordagem acredite que ser flagrado usando blondor, tomando cerveja, comendo farofa ou com areia grudada nas costas seja um demérito.
“Ramos” vem na esteira de obras da fotografia brasileira contemporânea relançadas em formato de fotolivro. Assim como o ensaio de Bittencourt, são exemplos desse movimento “Ninguém É de Ninguém”, de Rogério Reis, e “Aeroporto”, de Cássio Vasconcellos, além do já publicado “Albinos”, do mineiro Gustavo Lacerda.
O fotolivro finalmente se consolida no país como a forma mais completa de expressão para fotógrafos. Não se trata apenas de enfileirar fotografias. É preciso uma narrativa que conduza o leitor a partir de uma estrutura coerente. É assim no cinema, é assim na literatura, é assim na fotografia.
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