Estética do indicado ao Oscar ‘Carol’ é homenagem a Saul Leiter, pioneiro do uso da cor na fotografia

DAIGO OLIVA

Embora recordista de indicações ao Globo de Ouro deste ano, com cinco, “Carol” não levou nada. Quatro dias depois da entrega do prêmio, nova esnobada. Mesmo que tenha contabilizado seis menções, o longa de Todd Haynes ficou de fora das principais categorias do Oscar –melhor filme e melhor diretor. Já as protagonistas, Cate Blanchett e Rooney Mara, nas quais o filme se apóia, foram lembradas, assim como a fotografia, o figurino, a trilha sonora e o roteiro adaptado da obra.

“Carol” é um filme morno, conduzido em banho-maria. A trama, sobre a paixão entre duas mulheres na Nova York dos anos 1950, é delicada ao extremo, mas demora para engatar. É compreensível que a Academia não tenha se empolgado. A quentura do casal parece ter sido preparada num forninho daqueles bem pequenos, e não há a intensidade de “Azul É a Cor Mais Quente”, de Abdellatif Kechiche, referência que surge por se tratar de outro drama lésbico recente.

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Fotografia de Saul Leiter, cuja trajetória foi tema do documentário ‘In No Great Hurry’

A elegância que ronda toda a direção de arte, no entanto, é exuberante. Edward Lachman, cinematógrafo de outras parcerias com Haynes, como “Longe do Paraíso” e “Não Estou Lá”, também foi diretor de “Ken Park” ao lado do lendário Larry Clark. Sua relação com a fotografia “estática” vai ainda mais longe: foi diretor de fotografia do documentário “Don’t Blink”, lançado em outubro de 2015, sobre Robert Frank, talvez o fotógrafo mais importante do século 20.

Mas é para outra figura central da fotografia dos EUA que Lachman presta uma linda homenagem em “Carol”. Saul Leiter, pioneiro no uso da cor numa época em que apenas as imagens em preto e branco eram consideradas obras de arte, está todo traduzido na película. O diretor já havia indicado a referência em entrevista à AFC (Associação Francesa de Cinematografia) e descrito Leiter como alguém que “criou uma visão abstrata da realidade urbana”. Ele tem razão. Para emular o estilo, o cinematógrafo criou tomadas em que as atrizes são filmadas através de vidros embaçados de carros e lojas, algo muito presente na obra de Leiter. Estes reflexos e pontos de cores criam a atmosfera do filme e dão clima de mistério e lirismo para a composição dos personagens.

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Cate Blanchett como Carol, protagonista que dá título ao longa dirigido por Todd Haynes

As referências vão se misturando. Como bem apontou Guilherme Genestreti, repórter de cinema da “Ilustrada”, a paleta de cores do longa é toda sugada dos quadros de Edward Hopper (1882-1967), artista que pintou a solidão das cidades americanas. Lachman faz uso de suportes diferentes que convergem para um mesmo fim. Ainda na entrevista à AFC, o diretor de fotografia menciona Vivian Maier, artista descoberta há poucos anos pelo historiador John Maloof em Chicago. Babá durante toda a vida, a misteriosa mulher deixou, em dezenas de caixas, um acervo inacreditável de fotografias de rua nos EUA e imagens de viagens por todo o mundo.

Mas a citação a Maier me parece muito mais um apoio para a construção de Therese Belivet, personagem de Rooney Mara, do que uma estética aplicada ao longa. Discreta, Therese, fotógrafa amadora que gosta de registrar “janelas, animais e portas”, trabalha em uma loja de departamentos enquanto monta um portfólio. Se o perfil é similar, o preto e branco de Maier está apenas nas fotos que Therese produz. Outra homenagem, esta muito mais sutil, pode ser a William Eggleston, outro importante nome da fotografia americana. Por meio de imagens de placas, letreiros, pratos de comida e automóveis, Eggleston montou um alfabeto visual da cultura dos EUA da década de 1960 em diante. É o que se vê nas tomadas em que Carol e Therese viajam de carro pelas rodovias.

É uma pena que “Carol” não tenha sido indicado a melhor direção de arte. Merecia ao menos ser lembrado na categoria. Lachman, 67, em sua segunda menção no Oscar, –a primeira foi justamente por “Longe do Paraíso”–, disputará o prêmio com o superfavorito Emmanuel Lubezki, de “O Regresso”, que tem a chance de ganhar sua terceira estatueta seguida após “Gravidade” e “Birdman”. Caso a direção de fotografia de “Carol” vença, será também uma vitória da película sobre o digital –“Carol” é filmado em 16mm– e da câmera mais estática contra o balé milimetricamente estudado do mexicano. John Seale, indicado por “Mad Max”, também vai na mesma linha de experiência visual agitada de “O Regresso”, embora bem mais exagerado.

Ainda não assisti a “Os Oito Odiados” nem a “Sicario”, os outros concorrentes nesta categoria. Sei que o longa de Tarantino é filmado em 70mm, que também vai na contramão ao utilizar película. Volto a eles e a “O Regresso” e a “Mad Max” quando já tiver visto todos. Por enquanto, destes três, “Carol” tem o meu voto, porque enternece quem ama a tradição da fotografia norte-americana.

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Comentários

  1. Realmente o filme é lindo demais. Usou muito bem as referências. Sera que vale um post do tipo – “Melhores fotografias de filmes que usaram fotografos ou pintores como referencia” :)))
    Agora, eu não consigo achar de jeito nenhum o doc Don´t blink – robert frank. Nem no “cine torrent”. Vocês viram>
    Abracos,

    1. O documentário só foi exibido em festivais, Caio. Por isso ainda não é possível encontrá-lo. Abraços

  2. Estou conhecendo seu trabalho crítico hoje, li sua avaliação de O regresso, e agora essa de Carol. Achei muito boas, ambas, gostei da perspicácia com relação aos detalhes de cada um dos filmes, me esclareceu sobre o universo dos fotógrafos ‘homenageados’ nos filmes em questão, e achei ótima a menção a Hopper, cuja ‘presença eu também havia sentido fortemente. Gostei muito desses dois filmes, não gostei nada do filmes do Tarantino, e não vi Sicário ainda. Grande abraço, voltarei outras vezes. Vera Maria

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