Arquitetura da Barra Funda e sonhos da rua das Noivas se mesclam em exposição de Dulce Soares

DAIGO OLIVA

Dulce Soares é cheia de contradições. Começou a fotografar porque queria registrar a infância dos filhos, mas passou grande parte de sua carreira documentando prédios. Carioca, encontrou em São Paulo os assuntos que buscava. E, quase 40 anos depois, exibe dois ensaios que realizou nos anos 1970 juntos pela primeira vez. Ao mesmo tempo, porém, Dulce é coerente. Para atender à Secretaria de Cultura do Estado, que lhe pediu para retratar o bairro da Barra Funda, a fotógrafa estabeleceu uma linguagem coesa que reúne edifícios da região dentro de uma mesma tipologia.

Quem for ao IMS (Instituto Moreira Salles) de São Paulo a partir deste sábado (30) encontrará imagens de fachadas que seguem certas regras. Nos registros, os prédios são vistos na maioria das vezes a partir de suas esquinas, enquanto a perspectiva das construções se espalha pelos cantos das fotos. Diferentemente da estética modernista em voga no país naquele período, os registros de Dulce prezam por uma abordagem direta, seca –sem sombras voluptuosas ou construções visuais hipergeométricas–, na qual a identificação dos lugares se sobrepõe a uma plasticidade exuberante.

Adquirida pelo IMS em 2003, a obra da carioca ainda não havia sido exibida pelo instituto desde então. A ideia de trazer o trabalho à tona foi de Valentina Tong, 27, curadora da mostra. “Eu sou arquiteta, e isso criou laços com a Dulce”, diz ela. A série sobre o bairro, que domina grande parte da exposição, partiu de um projeto do Estado para documentar os bairros do Brás, do Bixiga e da Barra Funda. Enquanto Cristiano Mascaro e Pedro Martinelli foram escolhidos para registrar o Brás, Dulce ficou com a região da zona oeste. O Bixiga, por sua vez, acabou não sendo fotografado.

Além de dividir a encomenda com Dulce, Mascaro foi professor da artista na famosa escola Enfoco, cuja orientadora era Maureen Bisilliat. Ele lembra da aluna como uma pessoa “extremamente organizada”. “Uma vez fui visitá-la e vi que tudo na casa dela era etiquetado. Tudo demandava um cuidado excessivo, o que se reflete em seu trabalho”, afirma ele. Talvez por isso, Dulce ressalte que, antes de sair fotografando pelo bairro, fez uma grande pesquisa sobre a área, o que a guiou até pontos como a Chácara do Carvalho, as Indústrias Matarazzo, o Theatro São Pedro, a casa do escritor Mário de Andrade e o salão São Paulo Chic, onde hoje existe a boate gay Blue Space.

O perímetro fotografado pela artista é o miolo onde o bairro originou-se, entre a Chácara do Carvalho e o Minhocão. “Essa região ficou espremida e não se desenvolveu tanto, diferentemente de outros pontos da Barra Funda, onde a especulação imobiliária avançou”, explica Valentina. “Essa área documentada está ‘preservada’. Há muitos prédios novos, as coisas mudam, mas muitas dessas esquinas permanecem. Mudam os usos, mas os edifícios antigos continuam lá.”

A arquitetura, contudo, é uma parte da exposição. Uma sala menor apresenta a série “Vestidos de Noiva”, realizada na rua São Caetano, conhecida como a rua das Noivas. Dulce vai a lojas de vestidos e fotografa vendedoras, costureiras e vitrines. “É a coisa da mulher, do manequim, essas indagações que a gente tem”, diz ela. Indagações que aparecem representadas numa fileira de retratos de cabeças de manequins intercaladas a rostos de mulheres, confundindo o que é sonho e realidade. Essa dualidade é reforçada pelos depoimentos femininos que colheu.

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“O que o casamento significa para mim?”, perguntava um concurso da época cujo prêmio era um Fusca. Além de tomar algumas das respostas dadas à competição, Dulce replicou a questão para lojistas e noivas que entrevistou. As réplicas quase invariavelmente discorriam sobre ilusão.

Se a ilusão permeia as imagens das noivas, Dulce teve a certeza de que era fotógrafa a partir de um comentário de Bisilliat. Ao analisar as fotos que fez do Palace Hotel, em Poços de Caldas, em 1974, a autora de importantes ensaios sobre sertanejos e índios percebeu que Dulce havia impresso ali uma linguagem própria e exclamou: “Nasce aqui uma fotógrafa”. As imagens do hotel também serão exibidas, mas a partir do próximo sábado (6/8), na entrada das salas de cinema do Espaço Itaú no shopping Frei Caneca (r. Frei Caneca, 569, 3º andar , tel. 11-3472-2368).

A linguagem própria desenvolvida no ensaio foi a base para obras da carioca desde então. Dulce ainda trabalhou para publicidade e revistas, editou livros, participou da formação do bacharelado em fotografia do Senac e documentou agências do Unibanco, muitas delas desenhadas pelo arquiteto Roberto Loeb. As imagens de “Barra Funda” e “Vestidos de Noiva”, no entanto, estavam intocadas há quase quatro décadas. Aos 72 anos, a artista afirma que “o intercâmbio com Valentina está sendo muito interessante, porque ela está trazendo um olhar mais jovem à obra”. “O trabalho é o mesmo, mas a forma de apresentar de lidar com ele é bem diferente.”

VITRINES E FACHADAS
ARTISTA
Dulce Soares
ONDE Instituto Moreira Salles, r. Piauí, 844, tel. (11) 3825-2560
QUANDO abertura nesta sábado (30), às 11h, com visita guiada junto à fotógrafa e a curadora; de ter a sex., das 13h às 19h, sáb. e dom., das 13h às 18h; até 20/11
QUANTO grátis 

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