Maquiado pelo batom de Tunga

DAIGO OLIVA

Neste sábado (15), a galeria Millan inaugura a primera mostra póstuma de Tunga, morto em junho deste ano em decorrência de um câncer. O curador Daniel Rangel, que foi assistente do artista no período entre 1998 e 2001, escreveu para o Entretempos sobre uma memória de 2001, quando participou da montagem de “Resgate”, exposição que marcou a abertura do Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo.

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“Esta fotografia minha foi captada por Tunga na noite de 21 de abril de 2001, logo após a abertura da exposição ‘Resgate’, que inaugurou o Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo.

Na época, então com 25 anos, vinha trabalhando como assistente de Tunga em vários projetos, e sem dúvidas ‘Resgate’ foi o mais relevante deles, tornando-se uma referência essencial em minha vida.

Possuo lembranças de Tunga falando sobre a ‘vontade de trazer a pulsante vibração do entorno, do centro de São Paulo, para o interior do edifício’ e que visualmente gostaria ‘que a instalação como um todo apagasse a opulente arquitetura’ da recém-restaurada sede histórica do banco.

Foram mágicos os vários dias de montagem. Guardo muitas recordações do processo, e uma delas ficou literalmente marcada; na noite anterior à abertura fiquei sozinho dando os últimos retoques na sala de Lúcido Nigredo, quando deixei escorregar um sino de vidro e cortei meu pulso esquerdo.

Após voltas pelo centro de São Paulo em busca de um posto de saúde, fui resgatado por André Millan e acabei em um hospital com alguns pontos trançados no pulso, uma pequena Teresa que carrego em mim.

Contudo, sem dúvidas, a maior marca que tenho de ‘Resgate’ é imaterial, e está sobretudo conectada à força e à potência como Tunga ativou suas instalações durante a performance do evento de abertura.

A ocupação espacial era integral, os três andares do suntuoso edifício foram tomados por obras; do hall de entrada, passando por todas as salas, o cofre inferior, os corredores, escadas. Até mesmo a bela claraboia foi tapada por balões infláveis gigantes.

Instalações em que os elementos se repetiam em diferentes materiais: vidro, ferro, lona e outros. Elementos conceitual e esteticamente escolhidos minuciosamente pelo artista, de curvas isomórficas que se encaixam: sinos, cálices, garrafas, caldeirões e funis.

Uma grande ópera tunguiana foi composta por objetos que fizeram parte de seu universo. Pelas instalações ‘Lúcido Nigredo’ e ‘Os Heraldos’, pelo vídeo ‘Hell’s Heaven’, por enormes tranças de Teresa feitas por cobertores cinzas, que também encontravam-se espalhados pelo chão, e por uma iluminação densa, que ia do vermelho à luz negra, em um ambiente de pura imersão.

Tunga agiu durante o happening como um maestro alquimista orquestrando sua grande instauração, nome que deu a estes grandes atos performáticos simbólicos de ativação de suas instalações.

Estava acompanhado por um grupo de ninfas dançarinas da coreógrafa Lia Rodrigues, de Arnaldo Antunes, Haroldo de Campos e de 21 pessoas comuns uniformizadas como prisioneiros que faziam tranças e serviam sopa de beterraba aos visitantes.

Uma verdadeira catarse artístico-energética que conseguiu de fato ‘animar’ as supostamente inanimadas instalações artísticas. Assim ele deu a vida à arte! Fiat Lux! Ars Vivus!

Estava ali, testemunha-ocular-participativa; observando, interagindo, aprendendo, começando minha trajetória, e posso afirmar que desde então estou maquiado eternamente pelo batom de Tunga.”

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