Bob Wolfenson, 62, abre arquivo de fotografias de ensaios de moda, nus e arte nos 46 anos de ofício
O texto abaixo é uma versão ampliada do perfil publicado na revista Serafina deste domingo (30).
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“Bob, igual a nome de cachorro”, diz Bob Wolfenson, 62, a uma funcionária do restaurante de comida por quilo próximo ao seu estúdio, na zona oeste de São Paulo. Antes de adotar o “nome de cachorro”, o fotógrafo –conhecido por retratos e ensaios de nu da época em que a “Playboy” ainda era a “Playboy”– chamava-se Roberto.
O pai, Jacob, não conheceu Bob. Conheceu o Beto. Morreu devido a um câncer quando o filho tinha 15 anos, o que forçou Roberto, o Beto, a se tornar Bob. Naquele momento, em 1970, o adolescente que gostava de política e viria a estudar ciências sociais na USP teve de arranjar um emprego.
Acabou sendo jogado na fotografia. Por intermédio de um amigo de sua irmã mais velha, Silvia, virou assistente de Chico Albuquerque (1917-2000) na editora Abril. Era office-boy de um dos pioneiros da foto de publicidade no país, descontando cheques e carregando tripés. Quarenta e seis anos depois, Bob é um dos maiores fotógrafos do país.
Embora tenha se cristalizado como “fotógrafo de mulher pelada”, o paulistano criado na comunidade judaica –e comunista– do Bom Retiro transita entre diferentes esferas. Na parede de seu escritório na Vila Leopoldina, mantém três grandes fotos penduradas na parede. Ao lado de Gisele Bündchen de pernas abertas e com um short jeans minúsculo, estão uma imagem de “Belvedere”, ensaio que virou livro em 2013, e a fotografia que tornou clássica a sobrancelha arqueada de Caetano.
Além de editoriais de moda, retratos e ensaios autorais, será curador, ao lado de Sergio Burgi, da mostra dedicada a Otto Stupakoff (1935-2009) no Instituto Moreira Salles do Rio a partir de dezembro. Para janeiro, em São Paulo, prepara a exposição de seu trabalho mais recente, “nósoutros”, na Galeria Millan.
VIRANDO BOB
Bob virou Bob por culpa de uma professora de inglês que namorava um de seus amigos. O apelido pegou. Quando passou a colaborar com a revista “Pop”, uma amiga perguntou a ele se conhecia um fotógrafo chamado Roberto Wolfenson. Roberto, que todos conheciam como Bob, obviamente sabia quem era o fotógrafo. Assumiu a alcunha de vez nos anos 1980, e até sua mãe, Maria, aderiu.
Após quatro anos na Abril, onde diz que se sentia em uma repartição, iniciou a carreira de fotógrafo. Em pouco tempo já havia realizado diversos trabalhos para publicações, entre eles retratos de Rita Lee e Elis Regina. Decidiu, porém, dar um passo para trás e ir aos EUA em 1982 para trabalhar como assistente e descobrir como “ser o que achava que poderia ser”. Curiosamente, quando foi a Nova York, voltou a ser Roberto, nome de pronúncia tortuosa em inglês.
Enviou cartas a cinco fotógrafos que admirava: Richard Avedon, Irving Penn, Barry Lategan, Arthur Elgort e Bill King –o único a responder. Lá, na “Hollywood da fotografia”, onde o “fosso entre EUA e Brasil era monumental”, Bob viu “como as coisas eram feitas”.
“Mas era um inferno, um lugar barra pesada.” King estimulava a rivalidade entre seus assistentes –eram cinco–, cheirava muita cocaína e era ríspido, afeito a escândalos em frente aos retratados. Abandonou o emprego após brigar com um colega, que o empurrou. O temperamento do ex-patrão não combina com o de Bob, como lembra André Passos, ex-assistente do fotógrafo. Bob prefere o sarcasmo. “Ele deixa a pessoa envergonhada de outro jeito. É muito irônico.” Se Bob se sentiu em Hollywood ao conhecer o estúdio de King, Passos diz que se viu entrando no Taj Mahal.
Parte dessa ironia vem da matriz judaica e tem um quê de Woody Allen. A mãe era uma judia mais tradicional. O pai, comunista fervoroso, “foi quem a levou para a esbórnia”, brinca o filho, um “judeu laico”. A ascendência aparece mais em sua formação cultural –cita David Grossman, Amós Oz e Philip Roth, todos de origem judaica, entre os escritores que leu recentemente.
A formação à esquerda ainda encontra ecos no presente. Embora Bob afirme que tenha feito uma “revisão desses pensamentos todos”, considera-se um humanista, alguém que, “utopicamente, quer que exista mais igualdade”. Odeia, porém, a ideia de que para se alcançar isso seja preciso “roubar para se perpetuar no poder”. Sobre a política brasileira atual, condena o processo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, retratada pelo fotógrafo no período em que ela estava afastada da Presidência. “Mas não foi uma grande presidenta. Meteu os pés pelas mãos.”
Em 1983, ao voltar para o Brasil após um ano e meio fora, aproveitou o status de assistente de King e ganhou espaço no mercado de moda, com trabalhos para as marcas Riachuelo e C&A, cujos editoriais até então eram dominados por J.R. Duran, com quem travaria uma rivalidade cordial na “Playboy” anos depois. Bob já tinha fotografado para a revista antes de ir a Nova York e passou a ser colaborador frequente da publicação no final dos anos 1980.
No início da década seguinte, os duelos com o espanhol radicado no Brasil ganharam força à medida que ambos viraram estrelas tão importantes quanto as mulheres que posavam –os cachês giravam em torno de R$ 25 mil, cerca de 5% do que as protagonistas recebiam.
“Eles procuravam não manifestar essa rivalidade, que claramente existia”, recorda Ricardo Setti, diretor da “Playboy” entre 1994 e 99, para quem é “inimaginável algo do Bob que não seja refinado”. “Um se esforçava para ser melhor do que o outro, mas era algo civilizado, não era cafajeste. Não era uma briga de foice. Eles não falavam mal ou do outro.”
Bob admite que se sentia estimulado pela concorrência, embora a disputa fosse mais fomentada por terceiros. Certa vez, uma editora de moda que acompanhava uma sessão de fotos disparou: “Ai, a espanhola não faz foto assim!”. “Aí ia lá e mostrava minhas fotos para o Duran. Depois, pegava as fotos dele e mostrava para mim.”
Duran, por e-mail, afirma que teve a sorte de ter um concorrente como Bob. “Nunca me considerei rival, não sei se ele se considerava assim. Como sempre competi bastante comigo mesmo, não tinha tempo para me preocupar com o que os outros faziam.”
A suposta rivalidade, conta o espanhol, era diluída em jantares nos quais comparavam o que uma mesma pessoa dizia sobre cada um deles. Duran e Setti apontam o ensaio de Maitê Proença para a edição de aniversário da “Playboy” em 1996 como o melhor trabalho do colega.
Na Sicília, a atriz, que exigiu Bob como o fotógrafo, interage com crianças, mulheres e senhores de um vilarejo, numa estética que marcou o ponto em que ele passou a trabalhar para a publicação da forma como queria, “um jeito de fotografar nu que punheteiro de plantão não gosta”.
Deixou de colaborar com a “Playboy” por volta de 2003, quando a direção da revista mudou e a nova chefia começou a dar ideias de como as imagens deveriam ser feitas. Para quem participava do trabalho desde a produção até a edição, sugeria a sequência das fotos e até a diagramação, a mudança soou como desaforo. Passou cinco anos fora, até fazer a capa da atriz global Nanda Costa.
NU CIRÚRGICO
Bob compara o nu ao trabalho de um cirurgião. Para o médico, a operação daquele dia é mais uma em sua rotina. Para o paciente, o evento mais importante da vida.
Há dois meses, o cirurgião virou paciente para tratar uma apendicite. O médico, sisudo no primeiro momento, virou só sorrisos quando o assistente o avisou que estava operando um “fotógrafo muito conhecido”. Recuperado, voltou a correr de 6 a 10 km, hábito que cumpre ao menos quatro vezes por semana. “Ele acorda bem-humorado, às 6h, cantando. Dá até raiva”, conta a filha Helena.
Fora a corrida, a paixão é o futebol. Santista, sofre hoje de uma espécie de síndrome de Estocolmo. Gosta de assistir aos jogos do Barcelona, que nos últimos anos roubou Neymar e aplicou duas goleadas no time brasileiro.
Miro, outro fotógrafo que conseguiu casar moda e publicidade, diz que o fato de Bob conciliar ensaios autorais e encomendas editoriais ampliou seu trânsito. “Fotógrafo de moda é visto com maus olhos por outros fotógrafos em geral. Ele conseguiu circular entre todos de forma brilhante.” Se num dia faz o retrato de um ator, noutro Bob fotografa a captura de armas, brinquedos e animais –tema de “Apreensões”, de 2010. Também criou, em 2002, sua própria revista, a “s/nº”.
Ainda assim, André Millan, galerista que representa o trabalho de Bob há cerca de dez anos, não percebe distinções entre as diferentes produções do fotógrafo, tanto as imagens feitas para publicações de moda quanto os trabalhos próprios. “Consigo ver nos trabalhos de moda a impressão digital de um artista. O trabalho de moda do Bob é autoral, assim como o que ele mostra na galeria.” Millan, no entanto, não comercializa as fotografias de moda, porque isso “ele vende para as revistas, para a publicidade”. Com o amigo, que conhece há 40 anos, desde os tempos de colégio Equipe, quer fazer um livro e uma mostra de retratos.
Bob circula e volta sempre ao mesmo lugar. Casado com Mariza “há milênios” –ele não se recorda o tempo exato, embora a conheça desde 1979-, o pai de Helena, Isabel e Francisca, esta filha do primeiro casamento da mulher, é muito generoso, mas quer ter a opinião final de tudo.
Discussões parecem ser exceções no cotidiano do fotógrafo, definido por amigos como sereno e carismático, alguém de trato fácil. Perguntado se não arranja briga com ninguém, Bob ri e provoca: “Você deve estar procurando as pessoas erradas, eu discuto muito em casa”. Helena concorda: “A gente bate muito de frente, nós temos personalidades muito parecidas, os dois querem ter a palavra final, ele sabe muito bem como me provocar, e eu também sei como provocá-lo”.
Caseiro, descreve a filha, “ele não tem muito saco para ir a festa de revista”. “Quer ficar em casa no final de semana, fazer almoço, chamar a família”. Quando não está em São Paulo, vai para Minas Gerais, onde tem uma morada nas montanhas.
Isabel, a caçula, é atriz e Francisca, diretora de TV. Com Helena, Bob compartilha duas predileções: Caetano Veloso e fotografia. A filha do meio escolheu seguir um caminho parecido ao do pai. Além de fotógrafa, morou uma temporada em Nova York. Ensaiaram um projeto à distância, no qual trocavam fotos da cidade de suas respectivas épocas.
A troca ocorre também no dia a dia. Quando está produzindo um ensaio autoral, Bob recorre a Helena e a Isabel, que, definem pai e irmã, tem “um olho muito bom”. Não só nos trabalhos artísticos, mas também nos escritos do fotógrafo, autor do livro “Cartas a um Jovem Fotógrafo” –Helena foi a revisora do texto final.
Ele, por sua vez, orienta a filha fotógrafa tanto na parte técnica quanto no valor que deve ser cobrado dos clientes. O tino para negócios é forte, mas já falhou. Ao ajudar uma de suas cunhadas a abrir um restaurante de comida brasileira, Bob se deu mal. “Restaurante não é para amador, não é para quem cozinha bem. Restaurante é um negócio. Me fodi, durou uns dois anos, o suficiente para perder muito dinheiro”, relembra o fotógrafo.
Além da forte ligação familiar, conserva amizades de infância, como o apresentador de TV Serginho Groisman, o arquiteto André Vainer e o ator e diretor Cacá Rosset. Com os três, além do designer Jair de Oliveira, irmão de criação do fotógrafo, formou uma mesa de pôquer que resistiu durante duas décadas, sempre nas noites de domingo –o encontro, que raramente era cancelado, “só em caso de morte na família”, minguou há sete anos.
Nos jogos, permeados de piadas de judeus e casos da época escolar, o Ratão, codinome que Bob ganhou dos companheiros, destacava-se, ao lado de Serginho. “Quando comecei a participar das mesas, tinha casa própria, automóvel. Hoje eu vivo da caridade alheia. Culpa dos ‘mouses'”, brinca Cacá. O diretor, que também é primo distante de Bob, foi colega de classe do fotógrafo no colégio Aplicação. “Era um aluno médio, médio. Não era um cara muito estudioso, mas como sempre foi muito inteligente, ele se virava.”
Fundador do grupo teatral Ornitorrinco, Cacá deve ter visto o amigo atuar no período escolar sob orientações da atriz Maria Alice Vergueiro, que, por sua vez, foi retratada por Bob na primeira exposição do fotógrafo, “Minhas Amigas do Peito”, realizada na Galeria Fotóptica, em 1989.
Vainer, apontado por pessoas próximas como o melhor amigo de Bob, diz que ele não mudou muito desde que o conheceu, quando ambos tinham dez anos de idade, durante um exame de admissão do Aplicação. Enquanto a prova não começava, eles iniciaram uma guerra de giz que os conectou até hoje. “Continua um cara realizador, extremamente generoso com os amigos e com as pessoas próximas”, afirma o arquiteto das casas do amigo –“talvez o cara com quem meus projetos se realizaram da melhor maneira”.
Se André Millan não vê diferença entre os diferentes trabalhos de Bob, Vainer não enxerga distinções entre a figura pública e a íntima do fotógrafo. “Ele tem a capacidade de continuar sendo, publicamente, o que é com os amigos. Essa coisa de mudar a personalidade, deixar tudo para trás, é coisa de filme americano, não é assim na vida real.” Bob ainda é Roberto, o Beto.
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