Comparação entre ‘Linha Vermelha’ e ‘Touch’ é exercício pedagógico sobre elaboração de fotolivros
É provável que não existam fotolivros tão semelhantes –e tão distintos– quanto “Linha Vermelha”, da brasileira Inês Bonduki, e “Touch”, do uruguaio Javier Calvelo Luisi. Semelhantes porque tratam do mesmo universo, possuem estruturas idênticas, foram produzidos com câmeras de telefones celulares e lançados em períodos muito próximos. É preciso, porém, ressaltar: ao menos que um dos autores admita, este não parece ser um caso de plágio. No final de 2015, ao voltar de uma temporada nos Estados Unidos, Inês já circulava com o boneco da obra iniciada dois anos antes e que seria publicada apenas em maio último, decorrência da vitória no prêmio promovido pelo festival Foto em Pauta. Era, portanto, um trabalho em processo havia muito tempo. O mesmo ocorreu com “Touch”, lançado em 2016 e, segundo o autor, produzido entre 2012 e 2014 em transportes coletivos de Montevidéu, Buenos Aires, Nova York e Cidade do México.
Inês também registrou transportes coletivos. Registrou usuários da linha leste-oeste do metrô de São Paulo –talvez a mais sobrecarregada da cidade– e colocou essas imagens junto a fotos de um festival de dança cujo foco “opõe-se à ideia de coreografia e se fundamenta na construção de um movimento de improviso”. O resultado da mescla são cenas que, num primeiro momento, remetem a uma orgia involuntária, em que corpos se entrelaçam porque não há outra opção. É, na verdade, um retrato fiel da superlotação da linha vermelha em horários de pico e uma ressignificação do cotidiano, uma vez que a artista o aproxima da performance. O uruguaio também discorre sobre “tocar, tocar-se e ser tocado” e “a violência dos transportes urbanos nas cidades”. Reforça, no entanto, a sensação de compartilhar um espaço e ainda assim se sentir distante de quem está ao seu lado. Apesar do título, “Touch” exibe pouco contato físico entre os retratados e muitos momentos de introspecção –quase todos os personagens estão fechados em seus próprios casulos.
Mesmo que existam diferenças na abordagem, a conexão visual entre as obras é inevitável. A ligação é ainda mais espantosa quando observamos a estrutura dos livros. Ambos os artistas elegeram a sanfona como espinha dorsal, o que, convenhamos, é uma ideia quase natural. Criar um caminho sem quebras para discorrer sobre linhas de metrô e gente apinhada em espaços minúsculos é talvez o raciocínio mais lógico para este tipo de trabalho –daí a coincidência. Mas “Linha Vermelha” e “Touch” têm muitas diferenças, o que nos leva a um envolvente exercício pedagógico sobre a elaboração de fotolivros: trabalhos fotográficos com raízes bem parecidas podem ser desenhados de formas muito distintas, a começar pela escolha dos formatos. Enquanto a brasileira opta pelo corte quadrado, mais tradicional em publicações fotográficas, o fotolivro do uruguaio é vertical, similar ao formato de um celular, remetendo ao tipo de câmera utilizada.
Essa associação também está presente no tipo de papel da obra. “Touch” é produzido com papel brilhante, como as telas de telefones. Já as impressões de “Linha Vermelha” são feitas em folhas foscas. O trabalho de Luisi ainda surpreende na capa, de material muito parecido com acrílico, mas preto, que reflete o rosto de quem o lê. É como se o leitor tivesse em mãos um telefone desligado e, ao abrir o livro, acessasse as imagens no aparelho. Há também diferenças no ritmo de edição das fotos. “Touch” é mais econômico no número de imagens do que “Linha Vermelha”, decisão acertada para registros que tendem a ser repetitivos. Por isso, parece-me, o uruguaio utilizou imagens nos dois lados da sanfona, enquanto Inês dedicou as costas da parte principal para texto.
É interessante entender as decisões de cada autor para criar suas publicações. Percebe-se que um mesmo tema pode ser tratado de maneiras extremamente diferentes, porque não há regras para criar fotolivros. Há, sim, coerência dentro de um projeto. Vale lembrar a lição da holandesa Corinne Noordenbos quando veio ao Brasil, em outubro passado, para o festival Valongo: fotolivros devem ser como um triângulo equilátero, cujos lados são representados por fotografia, design e impressão –todos com a mesma importância. Para não me esquivar da comparação entre “Touch” e “Linha Vermelha”, digo que gostaria de ver as mesclas de cotidiano e dança da brasileira embaladas em um objeto tão interessante e bem acabado quanto o desenvolvido pelo uruguaio.
ps. a descoberta da semelhança das duas obras é do olhar atento de Andressa Cerqueira Casado, que trabalha na Livraria Madalena. Obrigado por tantas dicas preciosas.
LINHA VERMELHA
AUTORA Inês Bonduki
EDITORA Tempo d’Imagem
QUANTO R$ 53 (88 págs.)
TOUCH
AUTORA Javier Calvelo Luisi
EDITORA El Ministerio Ediciones
QUANTO R$ 70
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O livro do Javier Calvelo Luisi está à venda no Brasil, Daigo?
Obrigado
Sim, Luiz! Encontrei na Livraria Madalena. Abraço