Os territórios inventados para vivermos juntos no ‘Sétimo Continente’

Cassiana Der Haroutiounian

16ª Bienal de Istambul deste ano que entrou em cartaz no dia 10 de setembro e vai até 10 de novembro, recebeu o título de “sétimo continente”, que é o nome dado pela comunidade científica ao acúmulo maciço de resíduos flutuando nos oceanos. Nada mais pertinente para se tratar em dias atuais, vendo as catástrofes ambientais acontecendo no Brasil —com o vazamento de petróleo cru se espalhando pelos estados do Nordeste— e no mundo.

Com uma trajetória importante no circuito das artes, o curador Nicolas Bourriaud criou uma atmosfera nessa exposição que se concentra em antropologia, filosofia, arqueologia, geografia e problemas ambientais no mundo. Ao reunir diferentes ciências, o tema também permite que os artistas se posicionem como cientistas. Existem mais de 220 obras de arte de 56 artistas e coletivos, entre eles do brasileiro Jonathas de Andrade e da dinamarquesa parte da coleção do museu Louisiana, Pia Arke, que receberá uma retrospectiva no museu no ano que vem. Cada obra de arte ajuda o espectador a descobrir um novo “território” do “sétimo continente”.

O trabalho de Ozan Atalan analisa o custo das atividades humanas de expansão e responde especulativamente ao crescimento ilimitado da civilização e à erradicação da natureza. A instalação “Monochrome” leva seu ponto de partida da destruição do habitat dos búfalos em Istambul. A construção de um novo aeroporto da cidade, uma terceira ponte sobre o Bósforo e a intervenção urbana nas florestas do norte deslocaram essa espécie endêmica da região. Na instalação de Atalan, um vídeo documentário mostra as casas nativas dos búfalos e o frenesi do edifício que leva à sua destruição. Na mesma sala, o componente escultural mostra um esqueleto real de búfalo em uma plataforma de concreto com solo. (Foto: David Levene)

 

Andrea Zittel concentra-se em questões fundamentais da vida, habitação e natureza humana. “Personal Plots”, o trabalho de Zittel para a bienal, responde às noções de propriedade privada, espaço e estruturas herdadas de dívida e servidão. Zittel, que pergunta: “o espaço é algo que pode pertencer a todos?”, apresenta uma escultura feita de blocos de concreto que demarcam espaços semelhantes a células do tamanho humano. As unidades lembram um cubículo de escritório, um quarto particular ou um terreno de cemitério. O trabalho aponta para a maneira como o espaço e seu delineamento podem ser usados como meio de controle e alienação, enquanto são mais comercializados como fonte de segurança, privacidade e individualismo. (Foto: David Levene)

 

Pia Arke foi uma pintora, fotógrafa e autora dinamarquesa-gronelandesa que examinou as relações étnicas e culturais entre a Dinamarca e a Groenlândia. Para o “Mapa da Velha Escola”, ela se apropriou de um mapa em inglês do Atlântico Norte, que anotou a lápis. A série “Legend I-II-III-IV-V” compreende cinco colagens de mapas da Groenlândia, bem como sua família. Instantâneos, que são revestidos com amostras de mercadorias, incluindo arroz, açúcar e café, e mostram a relação de parentesco, mercantilização e colonialismo. (Foto: David Levene)

Organizada pela IKSV, a Bienal é dirigida desde 2008 pela simpática Bige Orer, com quem bati um papo numa tarde quente, no escritório sede da fundação, com uma incrível vista para o Bósforo, no último dia 9.

Sede da fundação IKSV, em Istambul. (Foto: Cassiana Der Haroutiounian/Folhapress)

Comecei nossa conversa perguntando sobre o tema escolhido para essa edição e como era a resposta política de Recep Tayyip Erdogan, atual presidente da Turquia, para um evento como esse —também tentando fazer alguma comparação com o cenário da arte no Brasil, no último ano. Como ela definiu: a Bienal ajuda a aumentar a conscientização da sociedade, destacando os problemas do mundo contemporâneo. “Essa massa de plástico no meio do oceano Pacífico, formada por resíduos artificiais, cobre uma extensão superior a 3 milhões de quilômetros quadrados. Provavelmente não existe ferramenta melhor do que a arte para descrever a ameaça ao nosso futuro causada pelo grande dano que a humanidade infligiu com sua própria mão ao nosso mundo, nossa única fonte de vida.”

Entre muitos encontros durante os três dias em que estive na Bienal, e com a própria Bige, surgiram similaridades entre Brasil e Turquia nos pontos políticos —e isso acaba influenciando diretamente o mundo da arte. No caso da Turquia, depois do atentado ao embaixador da Rússia numa galeria em Ancara em 2016, e após ter sofrido uma tentativa de golpe militar naquele mesmo ano, o governo turco declarou estado de emergência. Entre milhares de demissões e prisões, quase 200 meios de comunicação foram fechados. Com muito medo de perderem sua liberdade, inúmeros jornalistas, acadêmicos e intelectuais, incluindo antigos apoiadores de Erdogan, fugiram. O país ficou em crise, e o futuro era completamente incerto.

O cenário da arte ficou meio estremecido e isso se notava bem na Bienal de 2017, diferentemente da de 2015, que foi um estouro. Foi desafiador, um período de grandes fluxos, mas Bige nota a diferença. “De alguma maneira, tudo que aconteceu, conectou a comunidade artística do país e nos fortaleceu. Não digo que está perfeito e o mundo maravilhoso, mas estamos caminhando e respirando com mais calma dessa vez, utilizando as ferramentas que temos. A arte foi capaz de trazer pessoas de volta, e a Bienal de 2017 representou isso para a Turquia, e podemos ver as diferenças na deste ano.”

Como a IKSV é uma organização sem fins lucrativos e totalmente independente do governo, não sofre nenhum tipo de censura e não se preocupa muito com as críticas que serão feitas com as obras de arte. Ela age de forma independente na cidade. “Nossa maior preocupação é trazer para Istambul nomes da arte que talvez não pudessem ser vistos de outra forma e poder democratizar o espaço da arte contemporânea para todos, sendo, desta forma, um evento totalmente gratuito desde 2013. [O objetivo é] Tentar fazer da Bienal um ambiente de convívio entre diferentes pessoas, idades e graus de contato com a arte contemporânea. A ideia é que cada espectador, com diferentes repertórios, utilize suas próprias ferramentas para descobrir  esse novo mundo” pontua Bige. Durante a Bienal, a IKSV se preocupa em organizar diferentes workshops e palestras para provocar e acessar o maior número de pessoas, lidando com diferentes expectativas (e também frustrações, claro).

Uma das principais características da Bienal de Istambul é se apropriar, a cada dois anos, durante dois meses,  de diferentes espaços da cidade como centros expositivos. Como a fundação não tem uma sede expositiva fixa, permite essa flexibilidade de acordo com cada curador e com cada tema. Nicolas Bourriaud, o curador desta edição, e a equipe da IKSV tiveram algumas opiniões controversas no início, conta a diretora. Nesta edição, as obras estão divididas em três diferentes espaços: Museu de Pintura e Escultura da Universidade de Belas Artes de Mimar Sinan, Museu Pera e ilha Büyükada (a maior das ilhas Príncipe).

 

Mapa das exposições

 

“Nicolas estava decidido que todas as obras teriam que estar agrupadas em um mesmo lugar, para consolidar essa ideia de um novo continente. Lembro dele em Istambul,  no meio do verão, em agosto, em um dia de caos, com tempestades, e programamos uma viagem para Büyükada —a maior das ilhas Príncipe—  que também recebeu algumas obras na Bienal de 2015, com a curadoria de Carolyn Christov-Bakargiev. Ele, meio mal humorado e com sono por todo caminho, e a gente pensando que era uma loucura fazer isso, mas estávamos certos de que queríamos, nessa Bienal, ter algumas obras na ilha e provocar, mais uma vez,  essa experiência para o espectador.  Ele era totalmente contra. Só passava pela minha cabeça que se não conseguíssemos voltar para Istambul por conta da chuva estaria tudo arruinado. Mas  foi completamente o oposto. Assim que chegou à ilha e se deparou com as ruínas das construções, as cicatrizes nos espaços, a história latente em cada prédio, ele teve certeza de quão pertinente seria estar em Büyükada e como [o local] se comunicava perfeitamente bem com esse sétimo continente, ainda incerto, com todas suas feridas abertas provocadas pela história e por nós, humanos. ”

 

um dos inúmeros edifícios na ilha Büyükada (Foto: Cassiana Der Haroutiounian/Folhapress)

 

O ritual todo de sair de Istambul e ir até a ilha é uma experiência muito prazerosa. O barco custa menos de  R$ 8, e você vai passeando pelo Bósforo e vendo a cidade de diferentes perspectivas. A ilha escolhida é a última parada, e a viagem leva em torno de uma hora e meia. Quase um processo meditativo. Eu decidi sair no primeiro barco, com o sol ainda meio tímido, um pouco vazio, e a chegada ainda silenciosa em Büyükada, que acordava desacelerada. Chegar, tomar um café da manhã turco com vista para o mar e começar a caminhada pelas cinco locações com obras da Bienal foi uma delícia. De alguma maneira, você se conecta de outro jeito com a arte, tem mais tempo para os respiros e não é atravessado pelo caos da cidade. Obrigada, Nicolas, por ter aceito a ilha como um espaço expositivo. É linda!

 

barco que faz o trajeto Istambul – Büyükada, saindo do porto de Beşiktaş (Foto: Cassiana Der Haroutiounian/Folhapress)

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Enquanto estava na cidade, fui convidada pela IKSV para uma palestra com o arquiteto e educador libanês Hashim Sarkis, curador da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2020, na sede da fundação. Depois de mais de 40 visitas a Istambul,  ele afirma que a cidade  tem a capacidade de incluir, envolver e representar o mundo –e, como sempre, se sentiu inspirado por ela em seus projetos. “Istambul é uma varanda para o mundo”, como já dizia Le Corbusier sobre algumas cidades, afirma Sarkis. Como viveremos todos juntos, título escolhido por ele para 2020, parece mesmo uma continuação do pensamento de Nicolas.

Abaixo, o texto curatorial disponibilizado por ele, na íntegra.

 

 

O arquiteto e educador libanês Hashim Sarkis, curador da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2020, durante sua palestra na sede da fundação  (foto: Poyraz Tutuncu)

Precisamos de um novo contrato espacial. No contexto da ampliação das divisões políticas e das crescentes desigualdades econômicas, pedimos aos arquitetos que imaginem espaços nos quais possamos viver generosamente juntos: juntos como seres humanos que, apesar de nossa crescente individualidade, anseiam por se conectar uns com os outros e com outras espécies no espaço real e digital; juntos como novos moradores procurando espaços mais diversificados e dignos para a habitação; juntos como comunidades emergentes que exigem equidade, inclusão e identidade espacial; juntos através das fronteiras políticas para imaginar novas geografias de associação; e juntos como um planeta que enfrenta crises que exigem ação global para continuarmos a viver.

Os arquitetos convidados a participar da Bienal de Arquitetura de 2020 são incentivados a envolver outras profissões e grupos de interesse —artistas, construtores e artesãos, mas também políticos, jornalistas, cientistas sociais e cidadãos comuns. 

Os curadores das participações nacionais são encorajados a abordar um ou mais dos sub-temas da Exposição. A necessidade de habitações sociais e equipamentos mais inclusivos ou de um tecido urbano e territorial mais conectado permanece tão urgente nas economias emergentes quanto nas mais avançadas.

O ano de 2020 tem sido frequentemente referido como um marco no caminho para um futuro melhor. Muitas nações e cidades criaram uma “Visão 2020”. O ano está chegando. Nós nos voltamos à imaginação arquitetônica coletiva para atender a esta ocasião marcante com criatividade e coragem.

Como viveremos todos juntos nesse sétimo continente que sangra? Ainda não sabemos. Mas seguiremos, Hashim!