E a arte, que cicatrizes pode deixar?
Desde o dia 17 de outubro, as ruas de Beirute e Tripoli foram tomadas depois do anúncio de mudanças econômicas incluindo novas tributações sobre gasolina, tabaco e telefonemas online, a partir de aplicativos como o WhatsApp. Foi a gota d’água para muitos, em um país onde a corrupção é gritante e a economia vive uma lentidão há décadas.
A população foi às ruas pedindo, inicialmente, o fim dos novos impostos e logo os manifestantes ampliaram suas pautas para exigir o fim da corrupção e a renúncia do Governo, e até hoje, nove dias depois, mais de um milhão e meio de pessoas ocupam as ruas, paralisando as principais cidades do país, de forma pacífica. A polícia tenta controlar as ruas e a população promete não sair até que o governo renuncie. Um país pequeno, com uma história pautada pela guerra civil durante 15 anos (1975-1990), o conflito no Sul do Líbano (1982 – 2000), a guerra de julho, em 2006, e outros tantos conflitos, possui um sistema político bastante complexo – No governo, o primeiro ministro deve ser um muçulmano sunita, o presidente do parlamento deve ser um xiita, enquanto o presidente da república um cristão maronita.
Agora, com os protestos entrando na segunda semana, os manifestantes se perguntam sobre o impacto da desobediência em massa, que fechou a maioria das escolas, algumas empresas e, ocasionalmente, as estradas principais. Embora o futuro dessa atividade revolucionária seja desconhecido, a maioria concorda que manifestações como essa, dessa maneira, nunca ocorreram antes no Líbano.
Sempre fui bem obcecada pelo Líbano, principalmente depois de assistir os filmes da cineasta libanesa Nadine Labaki. Quando finalmente decidi visitar o país em maio de 2017, com um empurrãozinho do querido escritor Milton Hatoum, descendente de libaneses, decidi que queria mergulhar na história do país. Comecei a ler o livro “Pobre Nação” do jornalista britânico Robert Fisk, com 966 páginas contando todas as guerras que o Líbano passou no século XX. Um pouco pretensiosa, eu diria. É claro que meu plano falhou. Mas durante os dias que antecederam a viagem e os dias seguintes, queria entender todos os porquês das guerras, como os espaços de artes podem ajudar nesses conflitos e no papel da mulher em cenários como esses, lembrando de forma latente do “E agora, aonde vamos?” , filme de 2011 da maravilhosa Labaki, que começa com uma das cenas mais femininas e regadas por uma poesia inigualável. Um grupo de mulheres caminha, em um cortejo de luto, rumo ao cemitério dessa remota aldeia no Líbano segurando fotos de maridos e parentes mortos por uma guerra civil que se justifica pela diferença de religiões. O filme, com uma delicadeza e força de arrancar suspiros, insinua que se as mulheres estivessem no controle do Oriente Médio, não haveria tantas guerras.
Usando o filme da libanesa como gancho, entrevistei a jornalista espanhola Ethel Bonet, que cobre conflitos árabes desde 2005, com passagens pelo Iêmen, Somália, Palestina, Paquistão e vive no Líbano desde 2012. Batemos um papo pelo telefone na última quinta-feira, assim que ela chegou em casa depois de mais um dia na cobertura dos conflitos. “Para mim, ser mulher nesses ambientes que antes eram ocupados por homens, tem mais vantagens que desvantagens. Conseguimos mais acessos aos lugares, as histórias e aos personagens, sem causar medo nas pessoas. Claro que você precisa colocar um limite para que os homens não achem o tempo todo que você vai para a cama com eles. Já que essas sociedades mais machistas te lembram 24 horas por dia que você é mulher, usar o sorriso feminino para abrir portas, é até uma sabedoria” pontua Bonet.
“Existe um grupo de mais ou menos 30 mulheres que estão sempre na linha de frente e funcionam como uma barreira para colocar limites em algumas ações mais violentas por parte da polícia. Se tem mulher, tem mais cuidado. Elas abrem espaço para os outros manifestantes se expressarem, pelo menos aqui em Beirute, nessas passeatas que se mantém, ainda, pacíficas.”
Segundo a jornalista, durante as manifestações que se espalharam pelas principais cidades do país, um grupo de acadêmicos e artistas organizaram uma ocupação do “Ovo”, como é conhecido o edifício brutalista, do arquiteto Joseph Philippe Karam (1923-1976), que foi construído para ser o maior cinema da cidade, mas que durante a Guerra Civil teve grande parte destruída, e desde então, é um lugar repleto de cicatrizes fechado e sem uso, na cidade. Os manifestantes ocuparam o espaço para criar um ambiente comum para realizar debates políticos e sobre o papel das artes nos protestos e outras atividades.
Quando os protestos começaram, a comunidade artística de Beirute estava reunida para o fórum “Home Works”, organizado por uma das principais organizações sem fins lucrativos do país, Ashkal Alwan, que aconteceria de 17 a 27 de outubro. O evento é conhecido por inovar e incubar vários projetos ao longo dos anos, desde sua estreia em abril de 2002, e por sempre ter que adiar ou modificar suas estreias por lidar com situações sócio-políticas bastante complicadas. Quando a primeira edição foi aberta, coincidiu com a segunda grande manifestação na Palestina. A segunda, em novembro de 2003, com a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, a terceira, com o assassinato do ex- primeiro ministro libanês Rafik Hariri, a quarta, em 2008, foi interrompida pelas violentas batalhas do Hezbollah. Na sétima edição, de 2015, dois homens-bomba detonaram explosivos ao sul de Beirute, matando mais de 43 civis, um dia antes dos ataques de Paris. Nessa edição não foi diferente. A instituição fez um anúncio adiando o evento na segunda feira passada, 21 de outubro:
Instituições e iniciativas artísticas e culturais não são isoladas de contextos cívicos, políticos, econômicos e ideológicos mais amplos, mas sim moldadas como uma resposta a eventos históricos e suas repercussões. Esta edição do Home Works convidou inicialmente os participantes a participar de atos de construção coletiva do mundo, sugerindo caminhos para repensar as relações sociais como estão atualmente. Então, parecia pertinente ecoar as muitas tentativas da região de desmantelar estruturas herdadas do passado e projetar projetos alternativos para o futuro, do Sudão à Síria e da Argélia ao Iraque. Hoje é a nossa vez.
Parece que , de certa forma, o que o Home Works se propõe a questionar está sendo exibido em tempo real nas ruas do Líbano.
Na sexta feira, mais de 20 instituições de arte se solidarizaram com as manifestações, fechando as portas e incentivando todos a irem as ruas. Tentei contato com a Ashkal Alwan, e a única funcionária que estava lá por algumas horas, me disse “Desculpa não conseguir te ajudar hoje, mas estamos vivendo uma revolução aqui no Líbano e se você puder ligar na terça ou na quarta da semana que vem, acho que já estaremos funcionando normalmente. Eu só vim resolver uma coisa e já estou indo me juntar aos manifestantes”.
Na conversa com Ethel, pensamos em artistas libanesas que usam a arte para passar alguma mensagem política no Líbano e no mundo, se apropriando de espaços importantes da história como espaço expositivo. É o caso de Zena El Khalil, que sempre esteve profundamente envolvida na memória e na história de seu país e nas consequências dele derivadas. Seu trabalho concentra-se na consideração de que arte e cultura podem ter um impacto positivo no mundo.
A artista está com a instalação multidisciplinar “Catástrofe Sagrada: Curando o Líbano” desde o dia 19 de setembro – e termina hoje – no centro cultural Beit Beirut, um dos mais emblemáticos edifícios destruídos pela guerra, em Beirute, construído em 1924 pelo Youssef Aftimus. Localizado na antiga “linha verde” (onde uma quantidade enorme de folhagem crescia porque o espaço era desabitado) de demarcação da cidade, cria um espaço para tentar a reconciliação da comunidade. Para esse projeto, ela reflete sobre a vontade de transformar uma ideia, um objeto, um lugar de violência em algo que gera paz, com uma série de pinturas, esculturas e obras multimídias espalhadas pelos 4 andares do prédio. O processo criativo se inicia com uma cerimônia de cura, que incluir uma meditação, danças, cantos e acender um fogo purificador simbólico. A partir das cinzas residuais de carbono, ela cria a tinta que usa em suas pinturas. Nos vídeos, utiliza-se repetidamente de palavras positivas – em formas de mantras em árabe – para aliviar os edifícios de sua dor. As mesmas também são as protagonistas de suas esculturas de cerâmica e pedra. O segundo e o terceiro andar são ocupados por uma única instalação: uma floresta de memória e lembrança das 17 mil pessoas declaradas desaparecidas na guerra. Essa será a maior exposição que Beit Beirut já teve.
Neste ambiente de revolução política e social, há muita gente insatisfeita sem saber qual é o caminho certo a seguir. Aí a arte contemporânea libanesa surge como uma bússola que aponta a direção que os libaneses devem seguir para reconstruir o seu país: contestação da ordem vigente e respeito à diversidade que compõe aquele país. Assim como no filme de Nadine Labaki, no qual as mulheres da aldeia se organizam para pôr fim à destruição da guerra civil, as artistas, ativistas e jornalistas tem nas mãos uma importante arma no combate à violência e à opressão: sua voz.