Além do que se vê.

Começa hoje (01/11), na sede paulistana do Instituto Moreira Sales, a quarta edição do Festival Zum, realizada pela revista de mesmo nome. Até o domingo, dia 3 de novembro, o evento reúne artistas, fotógrafos, editores e pesquisadores, em debates e oficinas sobre a produção e a circulação das imagens na atualidade. Todas as atividades são gratuitas e abertas ao público.

Capa da Revista Zum – Anfiteatro desativado da UFRRJ em Seropédica, RJ, 2018. (Foto: Vincent Catala)

Segundo o editor da revista e curador do festival, o querido Thyago Nogueira, com quem bati um papo na última quarta-feira, a opção em não escolher um tema específico para cada edição deixa os caminhos mais fluidos e o mais abrangente possível:  “É claro que estamos conectados aos temas políticos globais latentes para fazer a curadoria e fazer uma reflexão da fotografia como um instrumento de poder”, afirma ele. “O que mais me interessa é questionar além do que o que está dentro da imagem em si”.

A programação começa às 18h30, com o lançamento da revista Zum #17 e segue com o debate “desaprendendo a história da fotografia” com a pesquisadora israelense Ariella Azoulay, conhecida como a Susan Sontag dos nossos tempos, além da participação da historiadora e antropóloga Lilia M. Schawrtz, que promete ser arrebatadora. Ariella questiona as origens das fotografias e como elas são produto de uma mentalidade colonialista, enraizada nas estruturas imperiais de poder e legitimação da violência na forma de direitos exercidos sobre o Outro. O fotografado não se representa, mas é representado pelo olhar do fotógrafo, já lapidado e recortado, “dando voz” a esses personagens. Mas que voz esses personagens teriam se pudessem falar por si próprios? Ariella apropria-se, assim, das reflexões iniciadas pelo seu conterrâneo, Edward W. Said, no clássico Cultura e Imperialismo, além do relevante e influente ensaio Pode o Subalterno Falar? de Gayatri Chakravorty Spivak, obras fundamentais dos Estudos Subalternos e Culturais e de uma episteme decolonial.

Conectado a isso, a revista traz ainda um ensaio com o antropólogo Helio Menezes, sobre como o Marc Ferrez, principal fotógrafo brasileiro do século 19, com suas imagens da escravidão fez desaparecer as contradições do país.  “As descrições nos anúncios de fuga, relatos de viajantes e documentos de época estão repletas de marcas de violência e abuso sobre o corpo dos escravizados, mas a fotografia de Ferrez é sintomaticamente plácida. Seria bela, se não carregasse implicitamente tamanha violência”, observa Menezes.

“Man”, da série Maskirovka, Kiev, 2017. (Foto: Tobias Zielony/KOW Berlim)

 

“Quentinha”. (Foto: Aleta Valente)

O fotógrafo Eustáquio Neves, a provocativa artista multimídia Dora Longo e o alemão Tobias Zielony tratarão da importância dos trajetos que as imagens percorrem, tanto como a importância da imagem em si, mediados pela Jornalista Suzana Velasco. Enquanto a artista plástica Rosangela Rennó e o fotógrafo francês Vincent Catala da agência VU, conversarão sobre as novas definições de centro e de periferia que a fotografia sugere.  Com um ensaio nessa edição da revista, o francês que vive na Zona Oeste do Rio de Janeiro registra os vazios formados pelo fracasso das políticas públicas nos rostos e nas paisagens cariocas. O poeta e artista multimídia pernambucano Paulo Bruscky debate “a arte na contracorrente” com a expert em história das artes, Dária Jaremtchuk e no domingo, fechando o ciclo de conversas, acontecerá um papo com a artista vencedora da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS 2018, Aline Motta.

“Pontes sobre abismos #3”, 2017, São Paulo. (Foto: Aline Motta)

Enquanto debatíamos qual a importância da fotografia para comunicar algo, Thyago fez uma declaração que para mim, é a chave de tudo: “O principal objetivo de um festival como esse é colocar em pauta uma fotografia que encapsula uma complexidade de relações, de enigmas e de cortes, que transformam ela em um objeto mais difícil do que parece”. Sim, a fotografia tem esse papel de acessar mais rápido o espectador, sem precisar de uma bula. Ela é direta e democrática, em todos os níveis. É um canal muito poderoso e amplo, mas também pode ser uma armadilha se olharmos apenas o que está impresso, sem atravessar todas as barreiras que vão além da imagem. “Acho que o que mais precisamos estimular é uma alfabetização visual, entender a dificuldade desse elemento que temos nas mãos” pontua Thyago.

“Xeroperformance”, 1982, Nova Iorque. (Foto: Paulo Bruscky)

Nesses dias de tantas reticências e mais perguntas do que respostas quanto ao amanhã, reaprender a olhar parece ser uma ferramenta poderosa para recriar e sonhar o novo. Parece uma missão quase impossível, árdua e tempestuosa em tempos tão sombrios, mas por isso mesmo tão potentes. As mudanças se dão em tempos assim, nos quais a coragem para se reinventar e reinventar o mundo chegam como uma ópera

A programação completa do festival aqui: