O acontecimento entre dois corpos no trabalho de Marcia Pastore

Dois corpos em ação. Corpos de borracha, gesso e ferro que reagem com a ação do outro. Uma delicada dança escultórica que acontece nas sutilezas do encontro. O equilíbrio entre o volume e o vazio, o positivo e o negativo, a tensão e o descanso. São esses os pilares das 40 obras da artista paulistana Marcia Pastore que inaugura hoje, 23 de novembro, Contracorpo, uma retrospectiva de sua obra.

Pastore utiliza o gesso desde sempre, por ser um  material com uma personalidade muito forte, que tem a capacidade de captação e de reter essa marca indicial. A obra “Linhas de força”, a maior obra da mostra que ocupa a famosa “sala das colunas”, é inédita e carrega diálogos entre força, matéria e espaço, latentes em seu vocabulário criativo. Uma ocupação  de gesso em pó demarcada por blocos de gesso fundido nas extremidades, amarrados por uma cinta,  onde os mais leves são arrastados pelos mais pesados, deixando rastros, formando um desenho com linhas de arraste no chão. “A escultura é quem desenha no espaço, não sou eu. Coloco esses elementos em contato, crio as regras e as condições para esses elementos interagirem e elas se tornam únicas” me conta Pastore, enquanto tomávamos um café, no meio do caos da montagem. “Essa escultura foi uma resposta direta ao espaço”.

Linhas de força, 2019 – simulação 3-D. Blocos de gesso, gesso, guinchos, cintas de lona e cabo de aço. 50 x 800 x 1300 cm. (Foto: Marcelo Venzon)

Cada espaço tem sua potência e em suas obras há sempre essa ideia do acontecimento, do funcionamento, do lugar do quase movimento. É, mas deixou de ser. Aconteceu e deixou sua marca.  Ela convida o espectador a se aproximar das obras e se dar conta do “corpo a corpo”. As obras da artista tem traços marcantes da arte povera, um movimento vanguarda que surgiu nos anos 1960 na Itália. Uma arte que existe para ser mutável. Uma obra que precisa sempre acontecer de novo para voltar a existir. São quase seres vivos que vivem os efeitos do efêmero. Ter o tempo determinado para duração da obra fazia parte do intuito de efemeridade contida na crítica feita à sociedade em forma de arte.

Sem título, 1990, Ferro e borracha, 200 x 400 x 50 cm. (Foto: Romulo Fialdini)

Pastore usa o percurso e os índices do corpo no espaço; o corpo como uma demarcação no espaço“Tudo é corpo, né?! Blocos são lastros e deixam a presença do movimento no lugar e é o mesmo procedimento que eu faço com meu corpo”.

Sem título, 1990, Ferro e borracha, 400 x 200 x 200 cm (Foto: Romulo Fialdini)

“Eu não preciso evocar grandes quantidades de peso de massa para mostrar a força e a potência. Tem uma sutileza que pra mim faz parte de uma experiência feminina mesmo”. Ela me conta que já tentou usar o corpo masculino na moldagem e que não funcionou bem, talvez pelos ângulos, formato do corpo, maneira de se movimentar… “Eu não quero criar uma batalha entre as partes e sim uma comunicação harmoniosa, com um tom mais baixo e a moldagem do corpo masculino é mais bruta, não tem jeito.”

Corpo de prova. Granito, ferro, roldana, cabo de aço, porcas e parafusos.
(Foto: Romulo Fialdini)

Em seu lindíssimo trabalho “Frestas em máquina”, também com montagem inédita, os espaços entre, os hiatos de seu corpo foram preenchidos por resina e gesso e, desde 2003, ela vem explorando a sua própria topografia: “é nesse sentido que eu trato o corpo muitas vezes como arquitetura […] Comecei moldando o volume, depois os espaços negativos e os encontros que as partes do corpo provocam nessas ligações internas.” O positivo que vira negativo que vira positivo. […] Uma brincadeira entres formas vazias e cheias. Essa ideia que na escultura chama molde e contramolde”.

Frestas em máquina, 2019, Bronze polido, resina de poliéster, gesso, breu, cabo de aço, roldanas e ganchos – Dimensões variáveis. (Foto: Isabella Matheus)

Em seu ateliê, Pastore tem uma cama de gesso que funciona como seu caderno de anotações e nela, moldes e experiências aconteceram ao longo de sua jornada. Como em suas obras, nas quais as mutações fazem parte do produto final (que nunca é final, porque mínimas ações estão sempre em ebulição), a montagem do trabalho das frestas também passa por transformações. Uma pesquisa de 2003, montada pela Marcia de 2019, atravessada pelas marcas e pelo tempo da vida. “O meu interior, o meu corpo está mudando. A gente muda o tempo inteiro. E por isso não fazia sentido cravá-lo em uma mesa de gesso. Precisa ser uma montagem suspensa”.

Seus fragmentos de corpos suspensos vivem uma dança única a qual cada espectador nota de uma maneira. Suas peças agem como dois corpos no contato e improvisação. Um trabalho em dupla, ou em grupo, em que o peso e contrapeso são os elementos-chave para o movimento acontecer, de forma improvisada mas consciente, na relação entre corpos e seus próprios limites. Um jogo silencioso entre os materiais, as tensões provocadas por eles, os pontos de apoio e o ambiente em que estão inseridos. As obras de Pastore carregam o estado de presença.

 

Pinacoteca de São Paulo

Edifício Pina Luz – quarto andar

Praça da Luz, 2

De 23 de novembro de 2019 à 6 de abril de 2020.