A casa branca de Fernanda Gomes, na Pinacoteca

(Foto: Cassiana Der Haroutiounian)
Cassiana Der Haroutiounian

Entrar na “casa”de Fernanda Gomes, na Pinacoteca, pede tempo, cuidado, solitude e presença. Um estado de alerta. Com uma porta de entrada e outra de saída, os caminhos percorridos nessa casa são criados e recriados pelo hóspede/espectador. Não tem fim, nem começo. Uma trajetória branca, pura ou atravessada pelo tempo de vida dos objetos brancos, um pouco amarelados, ou as vezes até marrons, com cicatrizes aparentes e restauros, camada por camada. Essa bolha que é sua redoma e que, se o espectador permitir, se tornará a sua também.

Essa casa que Fernanda habita durante todo o dia pelas três semanas que antecedem a abertura da exposição, amanhã,  30 de novembro, é um panorama da produção da artista desde meados dos anos 1980 até os dias de hoje. “Aqui é meu lugar. Onde tudo acontece”, diz ela, mantendo um ritual diário para estar totalmente conectada, sem desvios. Do hotel que sempre fica em SP, para as salas da Pinacoteca. A casa se mistura com seu ateliê. Um é o outro. Em todas suas exposições, o processo de montagem é que permite o resultado. Fernanda se mudou do Rio de Janeiro durante esse período, onde tem dois apartamentos/ateliês, um ao lado do outro, que ela e seus objetos habitam, juntos. O segundo apartamento veio porque os objetos, a própria arte, a expulsou de casa. São objetos de uso cotidiano, considerados insignificantes, irrisórios ou quase imperceptíveis na sociedade contemporânea, mas carregados de memória, trabalhando constantemente com elementos frágeis e transitórios. Agregados em sua produção, adquirem novos significados. “Eu uso tudo isso para criar um mundo que eu consiga viver. Isso aqui é o meu mundo. Porque tá difícil.”

(Foto: Cassiana Der Haroutiounian)

Um horizonte branco atravessa nosso olhar de uma ponta a outra das salas, Retângulos dentro de retângulos, com movimentos mínimos perceptíveis de longe. O fato de não haver legenda em nenhuma obra (e mesmo a exposição não ter um título) reforça essa imensidão branca, sem interferências. Com obras de diferentes épocas de sua trajetória, usar a palavra seria definir uma linguagem e Fernanda não quer isso: “O branco é luz. Ele carrega a ausência, o envelhecimento e as cicatrizes aparentes”, devaneia Gomes. Um respiro.

(Foto: Cassiana Der Haroutiounian)
(Foto: Cassiana Der Haroutiounian)

A exposição vai tomando forma nessas três semanas. Claro que existe um plano e um objetivo, me conta a artista, mas ele não engessa a arte. As peças vão dialogando com o espaço e umas com as outras durante a montagem. É nesse lugar que elas potencializam sua força, mudando de lugar, de parede, de espaço. “Algumas coisas eu conseguia imaginar na minha casa do Rio, mas é completamente outra coisa ver e montar no espaço real. Eu nem tento reproduzir nada. Deixo que elas aconteçam e tome seus lugares com o tempo”. As obras da carioca carregam a ação do tempo: “Você não para a ação do tempo”.

Com obras em diferentes coleções do mundo, Fernanda tem uma propriedade sobre ela mesma e dela com sua arte, cuidando de todas as etapa dentro do processo. Do catálogo à montagem – na Pinacoteca, é a primeira vez que tem alguém para ajudá-la durante as três semanas antes da exposição –– até a roupa do corpo: um macacão de algodão preto que carrega um martelinho branco no bolso

(Foto: Cassiana Der Haroutiounian)
(Foto:Cassiana Der Haroutiounian)

Fernanda andou incontáveis quilômetros e horas dentro das salas da Pinacoteca com muitas obras de colecionadores e inúmeras de seu acervo pessoal, para poder ver as correspondências dentro da exposição e de forma diferente, sempre. O processo de depuração é fundamental no desenvolvimento da mostra e é isso que ela propõe ao espectador: tatear, calmamente, com os olhos, cada pedacinho desses espaços brancos. Cada frame no caminhar se conecta com alguma obra da sala seguinte. “As visões vão se somando ao longo do percurso e as conexões vão acontecendo através das paredes […] talvez eu coloque essa obra aqui, talvez não”. E assim foi até o último segundo da montagem. “Se eu não ficar o tempo suficiente aqui, eu não percebo as coisas”, ela conclui.

(Foto: Cassiana Der Haroutiounian)
(Foto: Cassiana Der Haroutiounian)
(Foto: Cassiana Der Haroutiounian)

O silêncio do espectador – que terá entrada controlada –  é fundamental para mergulhar no silêncio dessa exposição, que poderia ser um caos com tantos objetos esparramados. Mas não é. Tem espaço, tem um tempo dilatado: “Eu proponho as conexões, mas cada um perceberá como for possível e como se permitir”. Mesmo com muitas peças autônomas, essa exposição na pinacoteca nunca será igual em nenhum outro lugar. Seu trabalho flerta com uma morte constante. Acabou a exposição, acabou. Não existe tutorial ou manual de instruções para montar o trabalho da Fernanda. Precisa da artista para existir. E precisa de nós para pulsar junto das obras. Um suspiro perto de duas madeiras suspensas e pronto: já mudou a posição de uma obra. Entrar na casa de Fernanda é entrar em uma bolha visual e temporal, um hiato no mundo ruidoso e tão visualmente poluído que está do lado de fora. Permitir-se viver essa experiência é permitir-se acessar um lugar interno, muitas vezes desconhecido ou esquecido. É poder respirar com calma e desvendar o que não está nítido no alcance dos olhos. É poder ver, vendo.

(Foto: Cassiana Der Haroutiounian)

30 de novembro de 2019 – 24 de fevereiro de 2020

Galeria de exposição temporária, Pinacoteca – Edifício Pina Luz