‘Aquilo que Foge’: a dança-instalação sonora que traz a voz como gesto em diferentes saudades, no Sesc Pinheiros
Vozes que sentem saudades das vozes de outrem enviadas por whatsapp para a coreógrafa Babi Fontana são a base de sua instalação sonora no espetáculo Aquilo que Foge. Oitenta vozes, em diferentes idiomas, temperaturas, texturas e intensões tornaram-se um dispositivo relacional que nos atravessa, espalhadas pelo palco em 20 alto-falantes analógicos de diferentes tamanhos, unidos como uma teia corpórea. Junto ao movimento do corpo da performer, provocam reticências e inquietudes em uma constelação gestual.
A memória trazida pela voz, que é o gesto. O gesto pautado pelo silêncio e pelo ruído. Como o som que expelimos de nossas bocas se torna a saudade, é algo que percorre nossas veias abertas, respiratórias, pulsantes. Imagens de suas próprias cordas vocais são projetadas sobre uma tela grande, na composição inquietante da fala.
Sua avó, a também artista Maria do Carmo Bauer, com quem sempre teve uma relação fortíssima, perdeu a voz decorrente de uma lesão cerebral em 2008 e, durante essa ausência vocal, em um caderno de notas, dava indicações de movimento, na escrita, criando um inventário de gestos; um gestuário de atos. A experiência de sua avó e o texto “Não eu” do dramaturgo irlandês Samuel Beckett foram as referências primordiais desse trabalho. A peça de Beckett, protagonizada por apenas uma boca– em um palco escuro com apenas uma iluminação focada na boca da protagonista –conta a história de uma senhora de 70anos que viveu uma vida melancólica e solitária depois de ter sido abandonada por seus pais.
Os conceitos de movimento dos pesquisadores de dança Hubert Godard e Isabelle Lunay são peças-chave no processo criativo de Fontana, que conta ainda com a colaboração artística de Dani Lima, coreógrafa, bailarina e pesquisadora do corpo e do movimento.
São latentes na obra da artista as ideias de movimento como um deslocamento do corpo no espaço– que pode ser feito por uma máquina –e o gesto que o colore o movimento, conforme conceituado por Godard, somados ao conceito de Lunay de gesto como um sistema que se organiza em torno de um modo de sentir e de perceber particulares. Para Godard, a forma como estamos de pé já contém um humor, um projeto sobre o mundo. Para Lunay, nós somos o produto dos gestos que nos carregam, ninaram, olharam e que nos constituíram num dado momento. E também dos gestos que não tivemos, que perdemos.
Na dança-instalação de Fontana, o corpo e a voz são matéria e sustentam as ausências e as presenças dela e dos seres vivos que carregam essas vozes, como um mapa geográfico vocal inventado. Na memória, na saudade e no som do silêncio, uma coreografia com a intenção do gesto, na qual o corpo reage a voz. Nós carregamos as impressões digitais de gestos ausentes que nosso corpo não acessou. Criamos uma coreografia às vezes com o que não temos acesso direto, mas que está marcado em diferentes camadas do nosso corpo.
Os hiatos entre seu corpo e essas biografias sonoras são instigantes e deixam marcas como uma porcelana rachada pelo tempo e que conta sua própria história, singular. As mãos, o corpo e a voz funcionam como uma partitura afetiva que imprimem o infinito da multiplicidade da morte, tratando do finito e da pluralidade ao nosso redor (mesmo no silêncio), de uma maneira rústica, como ela mesmo define.
O corpo atravessa a voz e a voz atravessa o corpo na obra de Babi Fontana. Não se sabe onde começa um e onde termina o outro. Carimbam-se mutualmente e carregam os significados em nossa jornada, como uma coreografia atemporal e pautada pelo que carregamos internamente.
Dias 28 e 29 e 30 de janeiro (terça, quarta e quinta-feira), às 20h30
Sesc Pinheiros, em São Paulo
Sala de oficinas, 2º andar / sessões gratuitas / 30 lugares por sessão
Duração: 50 minutos.
Ingressos gratuitos, retirada com uma hora de antecedência.