Obra da peruana Ximena Garrido-Lecca marca estreia da programação da 34ª Bienal de SP
A peruana Ximena Garrido-Lecca (Lima, 1980), que vive entre Lima e Cidade do México, faz uma análise profunda da complexa história de seu país natal, formado por um arranjo de culturas indígenas e europeias com suas esculturas e instalações vivas, se apropriando de técnicas ancestrais como a cerâmica e a tecelagem. Vivas, porque muitas delas, seguem no acontecimento até serem desmontadas. Além de sua obra audiovisual, como o lindo vídeo “Líneas de Divergencia (2018)”, que fazia parte da 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, e documentava, com marcas de cal, as demarcações de invasões de térreas desérticas no litoral peruano.
Garrido-Lecca inaugura sua primeira individual no Brasil, nesse sábado, 8 de fevereiro, no pavilhão da Bienal. Uma mostra monográfica com nove obras, entre instalações, fotografia e vídeos, que faz parte da série de três exposições que introduzem parte dos temas da 34ª Bienal de São Paulo – Faz escuro mas eu canto, que será inaugurada em setembro. Com uma poética preocupada em transformar o espaço em um lugar de acontecimentos, sem a ambição de serem definitivas, ampliando a importância dos diferentes diálogos que surgiram e surgirão com as relações ao longo do tempo, a Bienal conversa diretamente com a obra da artista andina. A abertura da mostra conta com o compositor e artista sonoro sul-africano Neo Muyanga que fará uma performance com um coral de 40 vozes esparramadas pelos três andares do pavilhão, numa nova composição de “Amazing Grace” conhecida como um hino de rituais de luto público em diferentes partes da África e que possui conotação político-religiosa para a comunidade afro-americana nos EUA. O grupo de atores do grupo Legítima Defesa, que ocupa o vão central do edifício de Oscar Niemeyer, reincorpora a música e transforma, evoca e devolve a ela as vozes dos negros africanos.
Por ter crescido em um Peru pautado pela violência, corrupção, desigualdade social e crise econômica dos anos 1980, Ximena Garrido-Lecca carrega em si própria todas as cicatrizes que esse período deixou. Foi o período mais sangrento da história do Peru desde o fim da colonização. Em sua obra, analisa a politização do espaço público e o uso de materiais vernaculares que foram utilizados em artesanato, arte e arquitetura ao longo da história peruana. Fazer arte, para Garrido-Lecca, é incentivar o pensamento e conscientizar as pessoas do seu entorno.
Nem sempre metódico, o processo criativo é essencial em sua obra. Muitas vezes parte de viagens, objetos encontrados por longas andanças pelos Andes e pelo mundo, desenvolvendo-se de maneira orgânica. Em outros, é completamente meticuloso e estruturado, com cada passo premeditado antes. Essas variações dependem bastante de seu estado de espírito. Afinal, nós e tudo ao nosso redor está sempre em movimento.
Seu maior interesse é traçar ciclos de transformações econômicas, ambientais e estéticas, particularmente em paisagens urbanas e rurais, pois representam destilações de poder e resistência em torno de mudanças de uso. Apesar de muitas obras tratarem de assuntos locais, ela provoca reflexões com algumas preocupações globais contemporâneas de lutas por recursos naturais, serviços públicos e acesso privado para aqueles que vivem em suas fronteiras. “Defino meu trabalho como artefatos antropológicos; monumentos para costumes e comunidades; e celebrações da desenvoltura dos indivíduos diante da contínua modernização e urbanização da paisagem”, concluiu ela. Muitos de seus trabalhos utilizam o cobre – a maior fonte de economia/exportação do país e também um grande símbolo de resistência – para comunicar os problemas nos processos de modernização e ao colonialismo econômico que o Peru permacene submetido até hoje – exporta o material bruto para depois importar o produto com valor agregado.
Em “Estados Nativos” ela faz o caminho oposto, trazendo o cobre industrializado ao seu estado de matéria outra vez, colocando em pauta a reapropriação da riqueza e numa crítica latente às mineradoras que não param de crescer por toda a América Latina, responsáveis por grandes crimes ambientais. Em esculturas potentes, utiliza o cobre e o entrelaçar de suas linhas remetendo às cercas de processos de ocupação, tapetes e tecidos, resgatando as tradições locais.
Na obra “Arquitectura del humo”, de 2015, ela reflete sobre a grande migração dos anos 1950 e sobre o boom imobiliário que fez muita gente ser marginalizada. O processo da fabricação dos tijolos é mostrado em cada sala da exposição, com dutos metálicos aparentes que percorrem todo o espaço expositivo. Cria-se uma tensão entre a terra – utilizada na construção desde tempos ancestrais e fonte de vida – e o metal, que faz uma referência à industrialização e ao novo modelo de produção. Durante toda a exposição, no corredor central, são construídas paredes com os tijolos, fazendo uma referência ao modelo de vigilância e poder autoritário dentro de um ideal de progresso.
Em “Lecturas botânicas”, de 2019”, ela ressignifica o lugar da folha de coca no país. Com um papel cultural muito forte, é também utilizada como uma tradição ancestral para leitura do futuro. A artista quer debater a ideia míope de que é utilizada apenas na fabricação de drogas e trazer o valor sagrado da mesma, num paradigma entre cultura e natureza, medicina vernacular e ocidental, tradição e modernidade. Com uma instalação no subsolo de um centro comercial desativado em Lima, ela convidava o espectador a interagir de diferentes maneiras com a obra.
Em suas obras, Garrido-Lecca absorve e provoca questionamentos de conceitos de comunidade e de tradições ancestrais com a terra, o cobre, e outros elementos da natureza, mostrando assim as dualidades da sociedade peruana desde os tempos coloniais, que estampam a pele da história do país como veias abertas até os dias de hoje.
Ximena Garrido-Lecca
8 de fevereiro – 15 março de 2020
Sábado, 11hs: performance de Neo Muyanga com o grupo Legítima Defesa
Pavilhão Ciccillo Matarazzo, Parque Ibirapuera
Entrada gratuita