As vozes sobrepostas e habitadas de memória da 34ª Bienal de SP

Uma partitura em branco que será preenchida até setembro, esparramando-se pelo prédio da Bienal e mais 25 instituições de arte por toda São Paulo. Notas desenhadas com vozes em diferentes ritmos e intensidades que estão em mutação diária, em consonância com o que acontece ao seu redor. Com diferentes batimentos cardíacos atravessando e acessando as opacidades de cada corpo, de cada ser, de cada estar.

“Faz escuro mas eu canto”, trecho do poema do amazonense Thiago de Mello, é o título da 34ª mostra de arte, que começa a coletiva em setembro (mas que já deu início a programação no último sábado e terá mais uma exibição em abril e outra em julho) e promete, pelo menos, chacoalhar diferentes partes do nosso corpo e do nosso olhar, como proposta de Jacopo Crivelli Visconti (curador geral) e equipe curatorial composta por Paulo Miyada, Carla Zaccagnini, Francesco Stocchi e Ruth Estévez.

Na terça-feira passada (4 de fevereiro), em uma melodia alinhada e harmônica, falaram dessa edição da Bienal na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Lançado em 1965, o poema de Mello foi também escolhido como título pela própria trajetória que essas palavras carregaram ao longo dos anos. Com o início da ditadura militar no Brasil em 1964, os ventos para Thiago não foram nada favoráveis. Na ocasião em que esteve preso, deparou-se com um de seus versos escritos na cela: “Faz escuro mas eu canto/ Porque a manhã vai chegar”. Era o sinal de que sua luta incessante pelo respeito à vida humana encontrava eco e precisava ser levada adiante.

“Já é quase tempo de amor

 Colho um sol que arde no chão

 Lavro a luz dentro da cana,

minha alma no seu pendão

Madrugada camponesa

Faz escuro (já nem tanto) vale a pena trabalhar.

Faz escuro mas eu canto Porque a manhã vai chegar.”

Uma Bienal pensada para a cidade de SP e que propõe ao espectador diferentes imersões com cada artista e com cada obra de arte, que o ver e conhecer a obra seja uma sobreposição de experiências, de percepções e de sensações. A ideia é trazer também obras que já foram expostas em edições passadas do evento, pontuando e fortalecendo o discurso de que cada coisa, vista em um diferente contexto e em uma diferente época, ganha outros significados. Uma obra nunca se esgota. Muitos dos artistas que estarão na coletiva no prédio de Niemeyer estarão com individuais pela cidade.

A própria apresentação dos cinco fortalece essa fala, com um jogo de slides no qual uma imagem sobrepunha a outra, sem escondê-la, mas deixando as arestas aparentes e uma fortalecendo a outra com as sobras, como uma reação epidérmica aos acontecimentos que também vão acontecendo em ondas. Uma camada atravessa a outra, ganhando mais sentido. É um discurso que está ao redor, através, em torno de uma obra. Eles sugerem que podemos ter escuridões que não são para ser iluminadas. A meu ver, parece interessantíssimo pensar dessa maneira, já que o que nós, humanos, sempre buscamos é entender e acessar os escuros do outro. Poder parar e pensar que nunca vamos e precisamos coincidir 100% com o outro é libertador. Existe um sentimento comum de trevas que nos rodeia – no Brasil e no mundo – e é preciso entender que para muitos povos essas escuridões acontecem há mais de 500 anos.

Num processo de coagulação da memória, de obras com relações mais afetivas, nas quais cada enunciado gera uma vibração que ressoa no entorno, essa edição trará obras carregadas de um sentido histórico. Esse foi o ímã para as escolhas até então. Os temas foram emergindo das obras que cada um dos cinco trazia e não o contrário. Uma montagem que será como um caleidoscópio. Uma constelação pontilhada num emaranhado de significados.

Para eles, o canto faz com que a gente conheça as coisas de outra maneira. A voz como diferentes frequências nos fazem conectar aos nossos escuros e aos nossos pontos de luz mais profundos. O mundo está assim e as conexões propostas são urgentes. Esta Bienal está na potência do acontecimento, pelo menos nas teorias todas. Agora é esperar para ver, em setembro,  como essas vozes todas ecoarão em cada um de nós e no país que estamos atravessando.