Em tempos de corpos distantes, a palavra é um abraço – a obra do artista Ivan Grilo
“E as palavras escorrem tão fluidas como o «precioso líquido». Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas.”
“As Palavras”, de José Saramago. 17 de maio de 1968.
São dias lentos… quando o tempo dilata e acontece. Dia após dia. Estamos enraizados no presente, com a espera do futuro próximo, apenas como o dia seguinte. O amanhã é o que nos cabe, por enquanto.
“Daí que as palavras sejam instrumento de morte – ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que vale o silêncio do ato.” (Idem)
Ouvir a palavra “morte” de todos os jeitos, em todas as línguas, por todos os gêneros, raças e etnias… De repente, contar o número de corpos nos quais o coração já não bate mais virou parte das estatísticas que passam por nossos olhos diariamente. Uma corrida contra o tempo, para não deixar nenhum coração parar de bater.
Estamos todos ilhados. Em nossas casas, em nossos bairros, cidades e países. As fronteiras de todos os territórios estão mais rígidas do que nunca. Construídas em concreto, como o muro que tanto temíamos. Não estamos mais separados “apenas” por questões religiosas ou políticas. Estamos separados por um ser microscópico, quase invisível, que nos separa e nos une de forma expansiva e absoluta.
As distâncias estão mais longas. Os caminhos estão interrompidas. Truncados. A casa do vizinho já não é mais um território neutro, mas proibido. O outro lado da rua se tornou longe… hostil.
O que nos une, hoje, é a palavra. E diferente da carta em papel em tempos de guerra, a gente tem a certeza de que nossas palavras chegarão no próximo. Compartilhar angústias, sonhos, conquistas e devaneios… Um email pensado, pausado, dividido entre dias… Para você mesmo ou para outrem. Um caderno em branco que sempre esteve ali, mas que hoje pode ser preenchido. O ser e estar nos provoca reflexões sufocantes e inesperadas. São espaços habitados pelo tempo. Uma só palavra preenche um dia inteirinho…
“Há, também, o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.” (Idem)
Conversei com o artista plástico paulista Ivan Grilo, no último sábado (21), que na contramão da situação atual da humanidade, pulsa vida, na espera de sua primeira filha. O casal está com 39 semanas e vive a espera da espera. “Ela vai nascer independente do que aconteça. A certeza de que a vida é muito maior do que tudo isso. Ela chegará em um mundo que é só espaço. Ela chegará no mundo no entre”, reflete ele. Desde o começo da gestação, Grilo pegou um caderninho comprado em sua primeira residência internacional e começou a escrever cartas para sua filha. Hoje, elas também estão em emails…
Ivan Grilo explora em suas obras, com frequência, as palavras. Além do significado delas, em suas formas, com frases fundidas em placas de bronze. Suas elucubrações mentais se tornam matéria. Ele sempre se encantou com tradições narrativas e utiliza-se de histórias reais e imaginadas para compor parte de seus trabalhos.
Propus a ele que escrevesse uma carta para a L. , sua esperada filha, pensando no que tínhamos conversado sobre o tempo e a espera. No domingo à noite, para minha surpresa, recebi uma carta em meu nome, e não no nome de sua filha. Que abraço mais apertado senti ao receber essas palavras todas como uma melodia doce para esse silêncio ruidoso que estamos habitando.
Vivemos um tempo que não pertence a ninguém, se é que em algum tempo ele pertenceu. Seguimos nessa dança solitária e ao mesmo tempo coletiva, tentando preencher os pontos de interrogação que funcionam como notas musicais em nossas mentes. Temos que esperar. Seguir à espera… dia após dia. Tentando substituir as interrogações por grandiosos pontos de exclamação!
#ficaemcasa