Um habitar de tijolo, sonho e ser da artista carioca Brígida Baltar

Abrigo, 1996.
Cassiana Der Haroutiounian

Assim que repousa, volta logo ao fundo de si mesmo. Inversamente seu pudor o obriga a mover-se assim que mostra sua nudez, que entrega sua forma vulnerável. Assim que se expõe, anda. (Francis Ponge. “O Partido das coisas”)

Torre, 1996

São dias e mais dias no mesmo lugar… observar a luz que entra e que sai de casa. Elas sempre estiveram ali, em movimentos doces e suaves… O tempo e o habitar fazem com que a gente perceba o entorno de forma presente. Banalidades aos olhos do passado, mas extremamente poderosas com o olhar do agora que vivemos. O pequeno se tornou grande. O raio de luz desenhado na sala se tornou o cinema; o canto dos pássaros da manhã, a trilha sonora… Há certas coisas que podemos ver melhor quando estamos com os olhos fechados. Deveríamos encontrar a escuta que perdemos, expandir nossas maneiras de estar vivo.

A coleta da maresia, 2001.

A artista carioca Brígida Baltar, com quem bati um papo na sexta-feira (27), tem em sua poética o ímpeto de apostar na potencialidade sensorial da contemplação. Ficar. Observar. Encarar a circunstância. Em sua série “Umidades” (1994-2001), transita no limite entre o material e o imaterial. Captura em vídeo-fotografias extremamente silenciosos o que há no entre. Coleta elementos efêmeros da natureza, numa suspensão do tempo e do espaço. A neblina, a água do mar evaporada, o orvalho… Mais do que capturar esses acontecimentos naturais, dedicando-se a tarefa impossível de pegar o intangível, ela coleta seus próprios sentimentos em cada processo. Existe um devir em cada ritual… Um conectar com os aromas, os sons, a temperatura e as sensações que a habitavam naquele instante.

A coleta da neblina, 1998/2005.

A valorização do instante é fundamental em sua obra. Estar, permanecer e sentir o arranjo do momento, por mais banal que pudesse parecer.

“O que vivemos atualmente, este retorno as nossas casas em uma espécie de reclusão, nos obriga a desfazer hábitos muito antigos e valorar situações novas. Existem possibilidades de novos arranjos afetivos, e percepções ao redor. Ao mesmo tempo, há novos formatos de encontros e aproximações e decisões e posicionamentos coletivos. É estar em casa e não estar”, afirma a artista.

Casa, 1997/2013 – pó de tijolo em 240 frascos de vidro.

As coletas vieram de ações caseiras, da intimidade doméstica, que inicialmente utilizava materiais retirados de sua própria casa, como tijolos, poeira e cascas de tinta.

sem-título, 2003 – pó de tijolo.

“Naquele momento, anos 90, fazia escavações nas paredes, escrevia palavras nas paredes, colhia goteiras e lágrimas, misturava pó de tijolo com água. Havia um espírito de laboratório, com vidros pelas estantes e o sentido da casa para mim era como estar em um corpo expandido, as paredes eram a minha própria pele. Um lugar de reflexões e experiências. Uma construção de si, para estar no mundo.”

Brígida deixa, com o pó de tijolo, sua casa móvel, viajando pelo mundo. Sua casa é seu abrigo. Seu corpo como sua casa. Uma casa viva.  Corpo-estrutura, corpo-tijolo, corpo que sustenta a parede, mais vitalidade do que morte. Um corpo que sustenta a vertigem e sustenta a queda. O abrigo como lugar limítrofe, onde estamos situados entre o dentro e o fora.

Casa de abelha, 2002.

No trabalho As silhuetas, ela usa o corpo como molde, partindo de sete materiais da casa que habitava nos anos 90, como se todos constituíssem-na, colocando-se com bastante disponibilidade em todo aquele espaço. Em Casa de Abelha, projeto da XXV Bienal de São Paulo, o conceito de criar narrativas como fábulas fica ainda mais evidente. Não tem início, meio e fim. Ela constrói favos com um tecido bordado, colocando-os em alguma parte do corpo como se nascessem do próprio. Um ser totalmente híbrido.

Silhuetas, 1997.

“Sempre achei que meu trabalho intimista ecoasse o mundo. Um particular que resvala em outros particulares. Hoje acredito que somos essencialmente o que vivemos ou respiramos; nossa casa, rua, cidade e afetos. Somos mistura, o dentro e o fora, em fluxo, em permutas”.

O hematoma #1, 2016.

A Brígida devora o seu entorno. Suas experiências corpóreas se enraízam em suas obras. Seu sangue menstrual se torna arte. Seu transplante de medula, em 2015, e as transformações acontecidas em seu corpo, poesias em forma de bordados, estarão expostas na Bienal do Mercosul, prevista para este ano.

Utopias e devaneios, 2005.

Brígida – casa – segue bordando e organizando um livro com seus filmes e vídeos, por meio do Projeto Rumos, no qual foi contemplada em 2018.

Vivemos um momento que nos convida a ampliar as formas de vida, a considerá-las, a construir abrigos em um mundo estragado, não para nos refugiarmos e ficarmos trancados, mas para nos reinventarmos. É entender a força que se ganha ao reinventar os laços. Fazer coletivos e trazê-los à vida do inesperado. Do vínculo não premeditado que existe por força e necessidade. É preciso, como escreve Marielle Macé, ouvir o que não fala, mas quem não pensa, menos. Devemos ouvir a terra, o rio, as coisas da vida e, acima de tudo, fazer as perguntas certas. Ouvir o silêncio diante de nós e o que ele disse. Estamos nesse treino diário durante esse isolamento… escutar escutando e ver vendo.  A vida acontecendo está diante dos nossos olhos. É preciso estar atento e criar cabanas dentro da cabana para não dar as costas às condições do mundo atual, encontrar fábulas da infância para este mundo, viver de maneira diferente, ampliá-lo.

#ficaemcasa