Como percorrer a intimidade cultuando o distanciamento? Um ensaio entre a poesia e a fotografia
Convidei as gêmeas Krieger – Carolina, fotógrafa e Isadora, escritora – para me mandarem um ensaio palavra-imagem que representasse os dias longos que habitamos nesse isolamento. Há anos acompanho as duas e é linda a forma que elas tem de se complementar. Um texto parece o eco de uma fotografia e vice versa. Elas, que vivem sob o mesmo “teto” desde o útero, hoje têm como morada uma casa no Balneário Camboriú , Santa Catarina.
Fotografias de Até que o voo e pouso se reconheçam asa com as palavras do livro Explorações Cardiomitológicas, resultaram em um ensaio super delicado que nos faz refletir sobre como abrir as janelas para o mundo e reinventar o que chamamos de casa – de dentro pra fora.
Bom voo (interior)! #ficaemcasa
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todo ser é constituído pelo Oco
a cada tentativa de saciá-lo se vê irremediavelmente só diante da lareira esquecida
se até a música consagrada pelo atravessamento duplo não reluta em transforma-se em suspensão como o amor sobreviveria a si mesmo?
escuta: este silêncio foi uma tentativa de assoprar o fogo para mantê-lo aceso,
apenas-para-mantê-lo-aceso.
ontem o gato da vizinha me flagrou em cima do telhado, esperando-te com duas xícaras, uma garrafa térmica e o molho de chaves
na habilidosa fuga felina vi a nossa principal mentira
ou a nossa principal verdade.
esta é a sobra da nossa memória
isto é o que foi feito dela: um regador repleto de pedras
ou de repetições indissociáveis
há muitos anos conheci uma mulher que contava a mesma história inúmeras vezes (diziam que a loucura lhe sobreveio depois que o pai a abandonou)
mal terminava de contar a história, iniciava novamente:
todo ser é constituído pelo Oco
a cada tentativa de saciá-lo se vê irremediavelmente só diante da lareira esquecida
se até a música consagrada pelo atravessamento duplo não reluta em transforma-se em suspensão como o amor sobreviveria a si mesmo?
observa: esta pergunta não é de fato uma pergunta,
mas uma sentença, para reforçar a tua sentença.
hoje a vizinha (que subiu no telhado à procura do gato) perguntou se podia sentar-se ao meu lado e beber na tua xícara –
ah, a simplicidade, tão mais propensa ao resgate do que o espanto.
o dia terminava e a vizinha apontou para as montanhas: se tu observares demoradamente escutarás elas cantando durante o entardecer.
há poucos anos conheci uma mulher que orava para o Oco enquanto embalava um gato morto (sobre ela diziam apenas: vive distribuindo comida estragada)
não pude alertá-la que o gato que ostentava como uma espécie de diploma cósmico era na realidade a evidência do seu maior fracasso
não pude denunciá-la por ter esmagado a própria ternura e, consequentemente, a ternura do mundo – se pudesse, teria resgatado alguma sinfonia orquestrada pelo entendimento tácito, um olhar-moradia, a coleção de ausências se desfazendo na circunferência de um abraço
mas não pude, não pude mostrar-lhe a similaridade entre a inospitalidade do deserto e o território dos carcereiros de pássaros
seria como abrir as cortinas de uma janela com grades.
como percorrer a intimidade cultuando o distanciamento?
como fazer as perguntas-matrizes num altar de respostas?
não é possível substituir com precisão a proximidade dos corpos pela solidão dos oratórios
então, como reaprender o idioma com as crianças que soletram as primeiras letras do alfabeto balançando-se na árvore?
acompanha: as montanhas cantam durante o entardecer,
e a partir da antecedente pergunta construiremos, enfim, a nossa Casa.
esta é a altura da nossa memória
isto é o que podemos fazer dela.
o dia havia terminado e a vizinha apontou para o molho de chaves: ser anfitrião da súbita visita como as montanhas recebem o sol, em enigma, celebração e, sobretudo, em convergência
e aqui, bem aqui (já estávamos ambas com os pés na terra)
ousar fazer a pergunta-matriz:
em qual ponto que o desejo de permanecer e o desejo de partir se encontram em reciprocidade assombrosa?