Habitar o corpo da terra – uma reflexão a partir do corpo-pedra do artista Rodrigo Braga

Corpo duro 4, 2013.
Cassiana Der Haroutiounian

“Viver como uma dilatação momentânea. O corpo vem da terra, exibe-se e encolhe. Quando o corpo desaparece dizem que existimos, que andamos por aí”. João Guilhoto, “O livro das aproximações”.

Antes do pedaço de terra, o corpo. O artista Rodrigo Braga, desde 1999 vem trabalhando em suas obras a relação do homem/corpo com o meio – ecológico, biológico, social e político – numa interface ruidosa entre os dois. Ele traz os conflitos dessas relações com a necessidade de retornar a origem, que é também o fim. Todas as relações que ele constrói são poéticas e metafóricas para falar dos conflitos que nós, humanos, estabelecemos com a natureza.

Desejo eremita 15, 2009.

Atualmente, Rodrigo está mais voltado para o animal humano como um ser social. Um animal mais conectado à terra e à pedra. Mais árido e molecular. O corpo humano com a pedra: “O corpo vem de uma perspectiva da matéria. Uma pedra tem sua corporeidade e nosso corpo também. Uma dureza, flacidez e dimensões diferentes. Outro ponto de vista é pela espiritualidade, com a finitude da matéria, diferente do corpo. Olhar para as rochas é uma maneira de nos enxergarmos menores” discorre Braga.

Ninho definitivo, 2012.

Homem e pedra são “seres” de tempos extremamente longínquos, ainda que pedra carrega uma história de milhões de anos, enquanto o homem, é recente nessa casa chamada Terra. “O tempo se relativiza quando a gente pensa no tempo do mover de uma pedra; olhar para o mineral, para a geologia, certamente tira a super importância do homem”.

“Quando tinha 9 anos de idade, um amigo de seus pais adorava contar histórias e um dia me disse que as pedras andam, se movem… e eu fiquei muito curioso. Ele me explicou de uma maneira científica que as pedras se deslocam lentamente. Eu pequenininho, gravei isso. Aos 10 anos, ganhei do meu pai um fóssil de peixe, o que acabou me influenciando em muitos trabalhos posteriormente”, relembra Rodrigo, que desde sempre trouxe para sua poética as referências de seus pais biólogos.

Ponto zero, 2019.

Em Paris, durante uma residência artística, com o olhar já treinado e pautado pela biologia, percebeu que toda a cidade luz era dominada por uma cor de areia, com incontáveis organismos incrustrados dentro das pedras que formavam as paredes, degraus e colunas da capital francesa, habitando essa arquitetura. “Todas essas conchas que eu via no microcosmos dessas construções me fizeram pensar no mar. Não importa a que distância Paris esteja agora da costa, esse mar já deve ter estado lá. Eu via um monte de castelos de areias na cidade.”

Mar interior (Palais de Tokyo / SAM Art Projects, Paris), 2016.

Rodrigo ocupou com 60 toneladas de pedras calcárias deslocadas do interior da França para  a bacia da esplanada entre o Palais de Tokyo e do Museu de Arte Moderna de Paris Essas pedras brutas  foram escavadas e revelaram os fósseis e restos orgânicos de um mar desaparecido há 55 milhões de anos. Com esse trabalho, ele conecta uma história geológica e zoológica, criando uma ligação a um mar interior reconstituído e o rio Sena que atravessa a cidade.

Mar interior 5, 2016.

Nesse sentido, Paris tem formação geológica semelhante àquela do sertão do Cariri, no Ceará, que também tem muitos fósseis marinhos, ainda mais ancestrais, de cerca de 110 milhões de anos atrás. Braços de mar invadiram o continente e, em seguida, aprisionaram-se como um mar interior na região que é hoje a mais árida e quente do sertão nordestino, para onde o artista fez algumas incursões ao longo de 2017.

Serra Salombra 4, 2017.

Esses acontecimentos contextualizaram inúmeras lendas indígenas, nas quais animais, deuses e pessoas foram “encantados” pelas profundezas das águas ancestrais, transformando-se para sempre em rochas. Afinal, nós agimos e reagimos pela natureza. Há quem duvide disso e se faça ausente, mas os fenômenos naturais nos atravessam, mesmo que a gente não queira. Mas nisso os povos originários estão muito a nossa frente, aprofundando e priorizando essas relações na forma de viver, apegando-se ao essencial, capaz de experimentar o prazer de estar vivo.

Ilha-mar, 2013.

Pequenos mares interiores que habitaram um território, que pautaram a história de um povo e de um lugar, reconstruindo a história, os hábitos, e a paisagem. Escondidos entre elementos geológicos, o fim que vira o início – ou é o início que vira um fim?  E o que somos nós nesse novo habitar? Pequenas ilhas, isoladas e em movimento, como as pedras da história que Rodrigo ouviu quando criança.

Desejo eremita 3, 2009.

O que será que cada um de nós, em nossos pequenos mares interiores que chamamos de casa, deixaremos para a história depois de tudo isso? Falar do começo e do fim, quando se fala do corpo e da terra é algo que se permite inúmeros devaneios…

Broto osso, 2012.

O mundo está morrendo e estruturando seu novo nascer. Estamos no período de gestação. Serão nove meses? Ninguém sabe quanto tempo teremos para nos conectar com outras formas de ser, estar e habitar, para chegar ao mundo, a sociedade outra vez. Estamos aprendendo a nos conectar de outra forma, de estreitar as relações e os laços de uma nova maneira. De olhar para o vazio e para o tempo de um novo jeito, apreendendo o que antes não se notava, respeitando as leis da natureza e da matéria.

Sem título (mão e corpo de carvão e cal, da série “Os olhos cheios de terra”), 2018.

Afinal o que é nascer e o que é morrer quando falamos de experiências vividas? Nós, corpo, como matéria, migratória, em constante movimento, em pequenas pulsações e respiração. Respirar nos faz estar presentes em nós mesmos e também escolher do que se desapegar. Agora vivemos em um mundo em suspensão, sem saber como e o que restará de nós mesmos depois de viver essa experiência. O que será modificado no coração do ser humano? O que mudará da pele para dentro?

Sem título (mão de carvão e sangue, da série “Os olhos cheios de terra”), 2018.

#ficaemcasa