O tempo dilatado da espera – 14 artistas e suas obras com cadeiras
A espera… vivemos dias na espera de dias melhores, ou na espera do agora. O tempo dilatou; segundos, minutos e horas percebidas, sentidas, observadas. Pensar no tempo pode ter se tornado um hábito também.Tentar ocupar o tempo para alguns é a fuga do dia estendido; para outros, a fuga é esparramá-lo desde o abrir dos olhos até fechá-los outras vez.
Mas o que é esse tempo que tanto falamos e percebemos em dias como os que habitamos? A partir de uma conversa que tive com o filósofo Emilio Terron, devaneei sobre esse tema que nos rodeia incessantemente, partindo de conceitos bergsonianos.
Para o filósofo francês Henri Bergson, quando surge a vida na natureza, acontece uma certa hesitação, um intervalo de movimento entre a recepção do estímulo do outro e a execução de uma ação no mundo. Um intervalo de movimento de ação e reação. Esse intervalo de movimento ele chama de duração.
Todo ser humano tem sua própria duração, sua maneira de receber e reagir ao outro, que depende diretamente de sua subjetividade, consciência, seu filtro da realidade, a maneira como ele percebe o mundo ao redor. Podemos receber o mesmo estímulo, mas em cada um de nós a reação é singular, esse intervalo de tempo é diferente.
O que Bergson diz é que cada ser humano pode experimentar diferentes temporalidades, que de algum modo ressoam com durações que fazem parte do universo. Isso ele chama de intuição. Ele propõe o puro pensamento e uma maneira mais ética possível de viver, que implica em empatia com outros seres, experimentar durações maior, menores ou iguais as nossas, convocando um pensamento com o qual possamos nos transportar para o interior de outros seres. É como se um encontro permitisse desdobrar uma diferença que estava em nós, mas que a vida deu a chance de, naquele momento, desabrochar.
Estamos todos conectados de certa forma nesse singular coletivo. Esses acessos permitidos em cada um de nós é o que dita nossa relação com o mundo, com o que damos a ele. Para Bergson, o tempo é uma maneira de experimentar a vida; o tempo é simplesmente um afeto, um modo de ser, uma maneira de enxergar a realidade.
Cada encontro que o ser humano vive faz com que ele saia de um jeito diferente. Em cada experiência, o que foi vivido no presente, acumula-se, e invade seu novo presente, num prolongamento permanente do passado no presente. Cada tempo vivido incorpora uma singularidade, que entra na sua memória. Memória essa que se aciona conforme a excitação (estímulos) do presente. Nós coexistimos com todo o nosso passado.
É como se tivéssemos um cone invertido em nossas cabeças: a ponta desse cone seria o seu instante, o seu presente mais atual; a base do cone permite acessar a chamada memória mundo. No mundo em que vivíamos antes (sim, porque era um outro mundo antes da Covid-19), recebíamos estímulos o tempo todo, reagindo a tudo sem tempo de deixar a ação decantar para uma reação mais elaborada. Era o chamado de “eu superficial”, numa duração humana, demasiadamente humana. Hoje, o tempo mudou. Os espaços entre o tempo mudaram. Deparamo-nos com um fechamento do espaço e com uma dilatação do tempo. Estamos todos sendo provocados a acessar essa memória-mundo para reagir de outra forma, sem uma resposta imediata a uma excitação no presente, sem agir por inércia. Isso nos dá outras possibilidades de ser e estar, permitindo acessar uma subjetividade espiritual, uma arte do sonhar, experimentando o “eu profundo”. Deixar ser tocado pela temporalidade própria de cada coisa, sair da duração funcional, responsável, cheia de deveres, para poder entrar noutras durações, por exemplo, numa duração-criança, com frescor, encantamento, ingenuidade. Esse “eu profundo” simpatiza com os movimentos próprios do mundo, da vida, e se desapega dos seres e dos nadas que levam ao “eu superficial” a se fixar e aderir ao mundo existente, atual.
O tempo para Bergson, é essa memória-mundo, esse passado imemorial que se renova permanentemente, e também o futuro como prenhe de virtualidade.
Quando pensamos no futuro? Como pensamos o futuro? O tempo futuro não é um possível, um ideal, dado de antemão. Se até essa crise parecia que vivíamos o futuro sob o signo da desesperança, sem a chance vislumbrar um possível viável para nossa sociedade, um acontecimento como esse (corona) pode nos levar a esse tempo dilatado, e assim restituir uma potência fabulante que parecia estar em repouso, para nos permitir a chance de um novo amanhã. Para o francês, o tempo é uma virtualidade que se atualiza e que produz, ao se atualizar, uma diferença no presente. O tempo é criação, é invenção. O vírus é uma diferença que eclodiu na vida e que jamais imaginaríamos que pudesse acontecer, ultrapassou qualquer possibilidade de previsão.
O tempo é essa produção de uma novidade permanente. Estamos diante de uma novidade com a maneira que a gente lida com o corpo, com a espera, com o tempo. Essa novidade chamada vírus pode fazer com que surjam coisas que jamais imaginaríamos. Essa diferença pode levar-nos a encontrar caminhos mais vitais ou a reconectarmo-nos com aquilo que estava completamente esclerosado. Podemos, assim, conduzir a nossa vida como a reprodução da guerra pérpetua ou como um poema contínuo.
Que sentido damos pra isso? Vamos acessar esse eu superficial ou esse eu profundo?
Ao invés de se fixar em territórios conhecidos, podemos ganhar mais intimidade com o que está nos desalojando e perceber que a vida se dá também nesse chão que treme – e já que nesta hora treme para todos -, numa comunhão com tudo que existe. Isso tira-nos a fixação dessa identidade, permitindo ser o todo, lidando com esse eu profundo que nos habita de maneira coletiva, vivendo em si o comum que há entre todos nós.
Apreender-se como participante desse jogo que envolve tudo do planeta, no qual a dor do outro passa também a ser a nossa dor. Sim, podemos captar a duração do outro, sua temporalidade própria, o processo que produziu aquele sintoma, entrar nesse virtual que é sempre o outro e que nos leva a ser outro. Podemos viver a espera só pensando em sair do dia de hoje, que aborta-nos a experiência do tempo, projetando uma expectativa que se dá ou por uma esperança ou por um medo; ou viver essa espera com o nosso eu profundo, habitando esse mundo cósmico, ativando uma potência fabulante que inspire a nossa confiança na vida, através de ficções vitais que expandam a nossa conexão com a vida e com o nosso presente, fazendo com que experimentemos assim um presente encantado.
Uma obra de arte, por exemplo, dilata a nossa percepção, quebra esse intervalo de movimento, nos lança a uma experiência limite. A literatura, um filme, a poesia… Diante dessas experiências, somos expostos a algo que não conseguimos representar, reconhecer, não conseguimos circunscrever num objeto do qual podemos nos apropriar e, exatamente por isso, pode nos levar a explorar nuances jamais convocadas dessa memória-mundo sob a qual todos nós vivemos.