Um experimento coletivo nas artes – o ensaio palavra-imagem com a curadora Cristiana Tejo

Projeto Quarantine – Guto Lacaz
Cassiana Der Haroutiounian

Para esta edição do ensaio palavra-imagem, convidei a querida curadora Cristiana Tejo, que mora em Lisboa há 5 anos e é dona da palavra precisa na hora certa. Entre tantos projetos além fronteiras que ela realiza, está o Projeto Quarentine, com artistas do Brasil espalhados pelo mundo, numa espécie de cooperativa que incentiva a compra de obras de arte, na busca de uma relação democrática entre todos os artistas, independentemente de seu status no mercado e de quem compra. Tudo sobre esse projeto está nesta carta que recebi hoje, domingo,  cedo.  <3

Projeto Quarantine – Armando Queiroz

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Querida Cassiana,

Há algum tempo tenho preferido escrever cartas ao invés de outros tipos de textos. Talvez seja pelo trauma da escrita da tese de doutorado, encerrada em agosto de 2017 mas que tem seu peso repercutido ainda em abril de 2020. Ou possivelmente o ceticismo sobre as formas de construção discursivas hegemônicas do mundo moderno (seria contemporâneo?) alicerçado na colonialidade e no patriarcado que me levou a indagar sobre a relevância do texto “objetivo” ao mesmo tempo que perguntava qual texto seria pertinente neste contexto complexo e enviesado. Isso tudo ocorreu-me muito antes da pandemia de COVID-19. Quando as suspensões no cotidiano iniciaram-se eu já estava em meu bunker, de certa forma preparada para a maratona de incertezas que viria. Não houve um planejamento consciente… Eu apenas já estava atenta aos sinais que o mundo enviava. Sentia que o estilo de vida que levava não era sustentável. Intuía que a maneira como trabalhava já não fazia sentido porque sentia no meu corpo. Não havia exatamente um novo projeto a seguir ou uma nova etapa a galgar comol o curadora, mas apenas desejava mudar para um ritmo e uma escala mais orgânica e humana. Eu queria realmente estar presente no que eu fazia e decidi ir modificando as coisas no passar do tempo. Mas não te escrevi falar sobre isso. Ou até vou falar sobre isso mas usando outras palavras e algo mais palpável…

O assunto da minha missiva, minha querida, é o projeto com o qual colaboro no momento e que surgiu no olho do furacão do Corona vírus. O Projeto Quarantine é uma iniciativa de quatro profissionais mulheres atuantes no mundo da arte: Lais Myrrha, Marilá Dardot, Julia Morelli e eu. Tratam-se, portanto, de duas artistas, uma curadora e a fundadora de uma plataforma de fomento de múltiplos. Há muitas coisas que nos une e uma delas é a maternidade. O fato de termos que nos levantar todos os dias não apenas por nós mas por pessoas que dependem diretamente de nós já nos lança uma vigília para o presente e numa aposta o futuro. Nossas crianças vão receber este mundo que estamos tentando remendar agora e esperamos que possam transformá-lo de forma permanente. Ao mesmo tempo, as condições materiais atuais nos inquietam. Exposições foram canceladas, assim como projetos e vendas que organizavam financeiramente nosso ano e da grande maioria dxs profissionais de arte do Brasil. A economia e as atividades profissionais pararam, mas não nossos gastos básicos com a manutenção da vida. Estamos num momento muito ruim em termos de políticas culturais e uma pandemia dessas atinge em cheio o desamparo de sermos cidadãxs de um país sem política cultura de Estado. Ao contrário, o que está em voga é a criminalização e a perseguição dxs artistas, em todas as linguagens. Por outro lado, o mercado não consegue abarcar as demandas mais urgentes dxs artistas, mesmo tendo em vista que apenas uma ínfima parte do universo de artistas está inseridx nas galerias de arte.

O que desejamos é fazer um experimento em que não haja competição entre pares e em que todo mundo ganhe igual, independente de seu status e estágio de trajetória, além de seu gênero, raça ou origem social e geográfica. Por isso todas as obras têm o mesmo preço e o valor arrecadado com qualquer venda é redistribuído entre xs artistas participantes, as colaboradoras (Julia e eu) e a Casa Chama, uma organização civil sem fins lucrativos de ações socioculturais com foco em artistas Transvestigêneres. Entre muitas coisas que o vírus tem nos ensinado está a importância de pensarmos no coletivo e na potência da cooperação, pois apenas ações individuais não trarão saída. Sabemos que nossa experiência é algo pontual num território de grandes faltas e muitas demandas. Não temos a pretensão de ser a resposta, mas um dos possíveis posicionamentos diante de uma das maiores calamidades recentes do mundo. Desejamos contribuir minimamente para apaziguar a situação de grande precariedade dos artistas visuais. Qualquer dúvida, querida Cassiana, dê uma olhada no site do projeto: www.55sp.art/quarantine. Podes sempre encontrar-me no Instagram.

 

Muitos beijos e saudades,

 

Cristiana Tejo

 

Lisboa, 18 de abril de 2020 – 37o dia de isolamento social

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Saudades também, minha querida!

Um beijo grande,

 

Cassiana

Projeto Quarantine – Caetano Costa
Projeto Quarantine – Marcelle e Diran Castro
Projeto Quarantine – Fernando Cardoso
Projeto Quarantine – Lia Chaia
Projeto Quarantine – Sara Não Tem Nome
Projeto Quarantine – Lucas Bambozzi
Projeto Quarantine – Nicolas Robbio
Projeto Quarantine – Laercio Redondo
Projeto Quarantine – Fabio Morais