Cartografias afetivas através da paisagem na obra da portuguesa Cristina Ataíde
O barulho do mar e do vento.
A montanha, a ideia da montanha impraticável.
E depois a terra arenosa por ali fora. E a solidão.
E sentir sobretudo que já não pode haver medo.
Fecho as portas da casa, a porta de saída e as portas dos quartos entre si.
E fico no quarto sem soalho e deito-me no chão.
Ouço o mar e o vento à frente e atrás da montanha solitária e poderosa.
Depois encosto a cara à terra profundíssima
para escutar o seu húmido sussurro
atravessando-a toda e passando por mim.
E então poderei morrer.
Herberto Helder – o barulho do mar e do vento
Uma lista de tudo o que você não quer esquecer na vida… É assim que a artista portuguesa Cristina Ataíde, com quem bati um papo na última segunda-feira (27), mantém sua memória viva, como um diário que frequenta vez ou outra quando sente saudade ou quando precisa reativar uma lembrança da mente. Foi o jeito que ela encontrou para estar perto de tudo, em um só lugar, experienciando a poesia e a vida.
“A memória nos leva onde quisermos, e deixa o mundo menor. E isso é muito bonito.” afirma a artista. As listas intermitentes, infinitas, passam pelas mortes desnecessárias, sobre o coração, dos desejos… Palavra escrita como uma forma de se apropriar e se lembrar daquilo que quer ou precisa, tornando-se parte de nós e desse mapa que nos guia. A palavra escrita se torna verdade e nítida, deixando tudo mais presente.
Viajar com os acessos das nossas memórias, do nosso mapa imaginário, que cada ser humano constrói dentro de si, com crenças, valores, desejos e sonhos. É por meio desse mapa que se guia, para trilhar e lutar pela sua própria vida. “É imaginário, mas te pertence.”
“Todas as montanhas do mundo” é uma de suas listas, imensas, e geralmente feitas em viagens, indicadas nos seus desenhos com as referências geográficas e de altitude. No papel, as montanhas mudam de cor conforme a experiência que a artista vive com cada uma delas – percorrer, alcançar o topo ou apenas como um desejo. “Um pouco para perceber a imensidão do mundo, vendo o que eu já fiz e o que posso voltar a fazer. Como um mapear onde fui e onde pretendo ir.” Assim como todas as coisas (ideias e seres) existem e transformam-se, são apreendidas e compreendidas, no movimento constante do mundo, na impermanência do ser e da memória, ela se reinventa em cada deslocamento, em cada trajetória, em cada percurso.
Diz um dicionário de símbolos na internet: “A montanha encerra o simbolismo da transcendência, é o encontro entre o céu e a terra, considerada a morada dos deuses e objetivo da ascensão do homem. Alta, vertical, elevada, quase atingindo o céu; vista de cima é como se fosse o centro do mundo e vista de baixo é tida como o eixo do mundo. Pode ainda ser considerada a escada, a inclinação a se escalar, o caminho ascendente objetivado por cada ser. Observamos que várias culturas, países ou cidades possuem uma montanha sagrada, normalmente onde atribuem ser a morada de deuses e divindades. Fato observado desde a mitologia grega até a Bíblia cristã.”
Explorar o mistério que envolve a presença das montanhas na vida humana, ao longo do tempo e dos lugares, é tarefa desafiadora em vários aspectos. Seu encanto e imponência desafiam as limitações físicas do homem, mas instigam sobretudo sua razão e sensibilidade. A montanha está sempre acontecendo e faz com que sempre pensemos no lado de lá. Parece sempre existir um mundo inteiro ao cruzar uma montanha. Fronteiras porosas, fronteiras imaginárias, ou talvez apenas o amanhã.
Para Ataíde, percorrer o caminho até ou ao redor de uma montanha exige a superação do eu, a solidão, o confronto com o mundo, numa mímese pulsante com a natureza e seus acontecimentos. Perceber o eu e o outro, se misturando ao vento. Estar no mundo através do alto de uma montanha, com a vista do horizonte é perceber pequenez e a imensidão do que nos rodeia. Ou será a nossa?
Cristina Ataíde é e está no mundo, em sua exaltação, com as ambiguidades todas que isso carrega. Ela se faz presente, em contato consigo mesma e na busca do contato com o outro, numa relação do ser como um grão de areia na imensidão do universo.
Com desenhos, fotografias, esculturas e instalações, suas obras tem a predominância da cor vermelha, pela potência de dualidades de significados e sentimentos que esse pigmento primário carrega. O amor e o ódio, morte e vida, luminoso, o masculino, mais denso, o feminino; e a compensação do verde e nós precisamos de opostos complementares para seguir nessa jornada da vida, me diz ela.
Suas montanhas vermelhas esparramadas pelas paredes também se complementam com as esculturas das montanhas em mármore. Diferentes relevos montanhosos, como uma casa, com uma mini portinha que te convida e depositar os seus mais profundos devaneios e sentimentos são uma homenagem as casas de Louise Bourgeois. Com o interior dessas montanhas-casas vazio, propõe uma reflexão sobre o recolhimento de nós mesmos. A redoma montanhosa como um abrigo do ser.
Cristina escuta os sussurros das paisagens em suas obras. As questões geográficas (no mais amplo sentido da palavra – para dar sentido a si e as coisas) e as transformações em camadas que todas elas vivenciaram e se transformaram, no âmbito social, cultural e político. Com um processo de frottage – decalque – ela marca a pele do mundo em sua obra, com grafite e uma folha de papel, mapeando um lugar e podendo trazer o lugar com ela, e tudo o que está por trás do desenho, as moléculas desse pequeno mundo que ela escolheu registrar. Deu início a essa técnica pelos caminhos de Santiago de Compostela, e seguiu por caminhos pelo mundo No Brasil, fez o decalque do chão ao redor do mosteiro de São Bento, como uma forma de mapear essas vidas que ali habitam e depois mapeando o horizonte de SP, que para ela é uma montanha de cimento, de pessoas e de casas.
Durante toda a quarentena, ela segue com suas listagens, nessa conexão com a natureza indo e voltando de seu ateliê, rodeado de verde, perto de Lisboa, refletindo sobre toda a impermanência do mundo e sobre o ritmo desse novo espaço-tempo. Apropria-se do movimento-pausa impermanente como um estímulo para o fluir, ajustar, modificar, ativando um estado de alerta e de consciência, já que não sabemos qual será o dia de amanhã. “É preciso estar de olhos bem abertos, sabendo olhar pra dentro e ao redor e acreditando que nós sempre temos a última palavra.”, diz a artista.