Cartografias afetivas através da paisagem na obra da portuguesa Cristina Ataíde

Montanha #97
Cassiana Der Haroutiounian

O barulho do mar e do vento.

A montanha, a ideia da montanha impraticável.

E depois a terra arenosa por ali fora. E a solidão.

E sentir sobretudo que já não pode haver medo.

Fecho as portas da casa, a porta de saída e as portas dos quartos entre si.

E fico no quarto sem soalho e deito-me no chão.

Ouço o mar e o vento à frente e atrás da montanha solitária e poderosa.

Depois encosto a cara à terra profundíssima

para escutar o seu húmido sussurro

atravessando-a toda e passando por mim.

E então poderei morrer.

Herberto Helder –  o barulho do mar e do vento

Ask for a Smile, 2004/2020

Uma lista de tudo o que você não quer esquecer na vida… É assim que a artista portuguesa Cristina Ataíde, com quem bati um papo na última segunda-feira (27), mantém sua memória viva, como um diário que frequenta vez ou outra quando sente saudade ou quando precisa reativar uma lembrança da mente. Foi o jeito que ela encontrou para estar perto de tudo, em um só lugar, experienciando a poesia e a vida.

Montanha #99

“A memória nos leva onde quisermos, e deixa o mundo menor. E isso é muito bonito.” afirma a artista. As listas intermitentes, infinitas, passam pelas mortes desnecessárias, sobre o coração, dos desejos… Palavra escrita como uma forma de se apropriar e se lembrar daquilo que quer ou precisa, tornando-se parte de nós e desse mapa que nos guia. A palavra escrita se torna verdade e nítida, deixando tudo mais presente.

Na montanha

Viajar com os acessos das nossas memórias, do nosso mapa imaginário, que cada ser humano constrói dentro de si, com crenças, valores, desejos e sonhos. É por meio desse mapa que se guia, para trilhar e lutar pela sua própria vida. “É imaginário, mas te pertence.”

Cartografia do Poder

“Todas as montanhas do mundo” é uma de suas listas, imensas, e geralmente feitas em viagens, indicadas nos seus desenhos com as referências geográficas e de altitude. No papel, as montanhas mudam de cor conforme a experiência que a artista vive com cada uma delas – percorrer, alcançar o topo ou apenas como um desejo. “Um pouco para perceber a imensidão do mundo, vendo o que eu já fiz e o que posso voltar a fazer. Como um mapear onde fui e onde pretendo ir.” Assim como todas as coisas (ideias e seres) existem e transformam-se, são apreendidas e compreendidas, no movimento constante do mundo, na impermanência do ser e da memória, ela se reinventa em cada deslocamento, em cada trajetória, em cada percurso.

Eclipse

Diz um dicionário de símbolos na internet: “A montanha encerra o simbolismo da transcendência, é o encontro entre o céu e a terra, considerada a morada dos deuses e objetivo da ascensão do homem. Alta, vertical, elevada, quase atingindo o céu; vista de cima é como se fosse o centro do mundo e vista de baixo é tida como o eixo do mundo. Pode ainda ser considerada a escada, a inclinação a se escalar, o caminho ascendente objetivado por cada ser. Observamos que várias culturas, países ou cidades possuem uma montanha sagrada, normalmente onde atribuem ser a morada de deuses e divindades. Fato observado desde a mitologia grega até a Bíblia cristã.”

M #6

Explorar o mistério que envolve a presença das montanhas na vida humana, ao longo do tempo e dos lugares, é tarefa desafiadora em vários aspectos. Seu encanto e imponência desafiam as limitações físicas do homem, mas instigam sobretudo sua razão e sensibilidade. A montanha está sempre acontecendo e faz com que sempre pensemos no lado de lá. Parece sempre existir um mundo inteiro ao cruzar uma montanha. Fronteiras porosas, fronteiras imaginárias, ou talvez apenas o amanhã.

Para Ataíde, percorrer o caminho até ou ao redor de uma montanha exige a superação do eu, a solidão, o confronto com o mundo, numa mímese pulsante com a natureza e seus acontecimentos. Perceber o eu e o outro, se misturando ao vento. Estar no mundo através do alto de uma montanha, com a vista do horizonte é perceber pequenez  e a imensidão do que nos rodeia. Ou será a nossa?

Linha de Horizonte

 

Cristina Ataíde é e está no mundo, em sua exaltação, com as ambiguidades todas que isso carrega. Ela se faz presente, em contato consigo mesma e na busca do contato com o outro, numa relação do ser como um grão de areia na imensidão do universo.

Morfismos

Com desenhos, fotografias, esculturas e instalações, suas obras tem a predominância da cor vermelha, pela potência de dualidades  de significados e sentimentos que esse pigmento primário carrega. O amor e o ódio, morte e vida, luminoso, o masculino, mais denso, o feminino; e a compensação do verde e nós precisamos de opostos complementares para seguir nessa jornada da vida, me diz ela.

Ser linha 3 e 4

Suas montanhas vermelhas esparramadas pelas paredes também se complementam com as esculturas das montanhas em mármore. Diferentes relevos montanhosos, como uma casa, com uma mini portinha que te convida e depositar os seus mais profundos devaneios e sentimentos são uma homenagem as casas de Louise Bourgeois. Com o interior dessas montanhas-casas vazio, propõe uma reflexão sobre o recolhimento de nós mesmos. A redoma montanhosa como um abrigo do ser.

Montanha-casa 5

Cristina escuta os sussurros das paisagens em suas obras. As questões geográficas (no mais amplo sentido da palavra – para dar sentido a si e as coisas) e as transformações em camadas que todas elas vivenciaram e se transformaram, no âmbito social, cultural e político. Com um processo de frottage – decalque – ela marca a pele do mundo em sua obra, com grafite e uma folha de papel, mapeando um lugar e podendo trazer  o  lugar com ela, e tudo o que está por trás do desenho, as moléculas desse pequeno mundo que ela escolheu registrar.  Deu início a essa técnica pelos caminhos de Santiago de Compostela, e seguiu por caminhos pelo mundo No Brasil,  fez o decalque do chão ao redor do mosteiro de São Bento, como uma forma de mapear essas vidas que ali habitam e depois mapeando o horizonte de SP, que para ela é uma montanha de cimento, de pessoas e de casas.

Skyline da Cidade de São Paulo

Durante toda a quarentena, ela segue com suas listagens, nessa conexão com a natureza indo e voltando de seu ateliê, rodeado de verde, perto de Lisboa, refletindo sobre toda a impermanência do mundo e sobre o ritmo desse novo espaço-tempo. Apropria-se do movimento-pausa impermanente como um estímulo para o fluir,  ajustar,  modificar, ativando um estado de alerta e de consciência, já que não sabemos qual será o dia de amanhã. “É preciso estar de olhos bem abertos, sabendo olhar pra dentro e ao redor e acreditando que nós sempre temos a última palavra.”, diz a artista.

Montanha #91