Palavras transbordadas de um coração sufocado – Paulo Miyada e Anna Maria Maiolino no Ensaio Palavra-Imagem

No Ensaio Palavra-imagem de hoje, a bonita e potente  troca de cartas entre Paulo Miyada, curador e pesquisador de arte contemporânea, e a artista Anna Maria Maiolino, durante o mês de Abril.  Que presente poder ter no horizonte esse oásis de devaneios.

Aproveite. E se puder, fica em casa!

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7 de Abril de 2020

 

Querida Anna,

 

Escrevo com afeto e carregado das melhores energias que te possam alcançar.

Faz alguns dias que envio uma carta por noite a um artista que admiro e respeito. É um jeito de seguir perto da arte e, especialmente, das pessoas que tornam a arte possível.

Hoje as palavras transbordam de um coração sufocado. É muita dor e muito medo. Os dias aqui passam como uma sucessão de gincanas, eu e Gal correndo atrás dessas duas crianças que são lindas, mas ocupam todos os espaços. Em alguns intervalos forçados, tento trabalhar – mas são tempos picotados e que demandam esforço e paciência da Gal e do Pedro. Noutros intervalos, lemos notícias – uma mais escabrosa do que a outra. Existe o vírus, mas o mais revoltante é o comportamento daqueles com poder. Acho que as brigas, os escândalos, os pronunciamentos patéticos e tudo isso são, além de sintomas de mentes e almas muito doentes, cacos de uma mise-en-scene feita para adiar as medidas concretas que poderiam atenuar o dano às populações mais fracas, para que elas só sejam tomadas quando for tarde demais e muitos já estiverem mortos.

Talvez seja por estar tão difícil de enxergar alguma esperança que esteja te escrevendo hoje. No último texto que você me enviou, você escreveu: “Gosto de me auto-apresentar como um ponto de tensões“. Eu também te vejo assim, um ponto de tensões poético, político, carnal e existencial – que atravessou migrações forçadas e voluntárias, testemunhou guerras e ditaduras, conheceu o sublime e o amargo da condição feminina, além do potente e do miserável do ofício artístico. Um ponto de tensões, mas nunca uma cela encarcerada; sempre uma espiral de anunciações poéticas. Por isso, falar com você faz vibrar algo, renova a possibilidade de viver o trauma como descoberta (des-cobrimento do que estava oculto ou sufocado).

Mais adiante naquele texto, você citava Maeterlink e então dizia: “Ah! Se tivesse aberto os olhos! Poderia ter visto em um beijo o que hoje observo em uma catástrofe.  É necessária a dor para o despertar da consciência que repousa na nossa alma“. Precisa, essa passagem só não é mais oracular do que a que aparece adiante: “No dia a dia, uma bala perdida, um homem-bomba não nos espantam mais do que a bactéria, o vírus, ou retrovírus“. A única diferença é que agora já não há escolha entre ter medo ou viver anestesiado fugindo da dor. O pavor democratizou-se como estado latente de toda a humanidade, que já sabia comungar uma desesperada paranoia narcísica.

Dói, mas oxalá produza algum despertar. O que eu queria mesmo te contar é que sonhei que alguém saia pela madrugada instalando pelas ruas e praças de São Paulo versões das obras que você fez em um terreno baldio no evento Mitos Vadios, lá em 1978. Seriam dezenas de mesas quadradas cobertas por toalhas negras ofertando, abraçados por um laço de fita também preta, um saco de arroz e outro de feijão – esquinas e passagens de Monumentos à fome. E nos muros e portões metálicos fechados, fileiras de rolos de papel higiênico, dispostos do mais caro ao mais barato, seguidos de um tecido, um jornal e uma folha de figueira – coleções de Estados escatológicos.

Seria uma ação anônima, ninguém contaria para ninguém, nem publicaria as fotos de registro na internet, tampouco as mandaria para as “lives” promovidas nas redes sociais. O público dessa ação não seria o público cativo da arte contemporânea, que agora está em suas casas vendo o mundo pelas telas do celular. O público seria a multidão de despossuídos que não têm outra opção senão estar nas ruas neste momento. Eles provavelmente dariam pouco tempo para a dúvida estética diante dessas intervenções, e as consumiriam imediatamente, transformando seu valor de exibição em valor de uso. Efetivariam assim as obras, que metonimicamente traduzem a barbárie da sociedade brasileira que não permite que sejamos igualmente humanos nem na mais simples necessidade de nutrição nem no tabu do ato escatológico. A divisão de classes, que rateia a humanidade e a subdivide pela qualidade da matéria que atritará com nossos anus após defecarmos, agora assume uma forma superlativa e acelerada, que entrega os desfavorecidos à morte no intervalo de algumas poucas semanas.

Não seria tragicamente verdadeiro?

Um abraço imenso,

Paulo

Sem-título, da série Vida Afora, 1981
Sem título, da série Vida Afora, 1981
Sem título, da série Vida Afora, 1981

7 de Abril de 2020

Querido Paulo,

Receber essa sua carta é um bálsamo para meu humano sentir. Onde será a localização desse sentir dentro de mim? Pois é tão grande o desassossego que gostaria de poder ter referência certa do seu lugar para fazer algo de real que pudesse apaziguá-lo e aplacá-lo. Sem mais nem menos, choro a menudo, movida por uma tristeza profunda. Em que buraco nos encontramos? Estou embalada numa gangorra de sentimentos contrastantes. Digo-me que tenho que comportar-me de forma ajuizada, pois é isso que se espera de uma anciã de 78 anos. Tento, mas o medo, a insegurança, despertam minha menina, aquela que me habita e bate na porta das recordações.

Já lhe disse que nasci em 1942 em plena Segunda Guerra e vivi também o triste depois até 1954, quando imigrei para Venezuela. Apesar de minha terna idade recordo a espessa atmosfera de preocupação que emanava dos adultos. Eu ficava muito perturbada, pois percebia que algo grave e ameaçador nos rondava, do qual eu não tinha o entendimento pleno. Da angústia de hoje, com tudo que está passando no Brasil, também não possuo o entendimento pleno, mas sinto a gravidade de todas as ameaçam que nos cercam. Não aguento mais ouvir o noticiário e receber historinhas tristes e engraçadas pelo WhatsApp.  Nos encontramos num território muito doente. Sei que ainda temos a poesia onde nos refugiar, mas fica difícil nesses tempos tão bicudos começar algo de algum valor verdadeiro. Eu não estou conseguindo trabalhar. Todavia, numa ação de afirmação de vida, todos os dias com grande empenho preparo o almoço para mim, para minha filha Verônica, seu companheiro João e para meu neto Samuel. Acho que esse ato de amor pode ser uma forma de exorcizar a doença o todo o mal purulento que nos ronda. Nesse triste momento de morte da ética-política há de se fazer muito esforço para ter prazer com os exercícios dos devaneios criativos e não ficar à mercê dos pesadelos.

Achei formidável a imagem das mesas de Arroz & Feijão junto com o Estado Escatológico espalhados pela cidade, me emocionei. Neste momento essas obras cumpririam plenamente suas funções políticas e sociais. Ainda é a arte que nos pode salvar da insanidade do homem sobre o homem.

Imagino você e Gal encerrados com os pequenos no apartamento. É preciso de muito amor e coragem. Em um ato de afeto verdadeiro gostaria de abraçar os quatro ao meu coração dizendo-vos, vai passar. Sim, vai passar!

Beijos, annam

 

Sem – título, da série Vida Afora, 1981
Sem-título, da série Vida Afora, 1981
Sem- título, da série Vida Afora, 1981

23 de Abril de 2020

 

Querido Paulo, bom dia,

Botando em ordem meus documentos no computador achei um escrito meu, nem sei se é poesia. Com tudo, me deu vontade de mandar para ti e Gal. Beijos

perdemos o homem interior dos Antigos

esquecido foi seu rosto

o mundo foi abolido

perdeu-se o ofício

 

há de se evitar o aniquilamento da vida

reencontrar a verdade do mundo

 

tenho nostalgia da alma

quem me salvará dessa morte anunciada do homem que é carrasco de si mesmo?

a civilização esta aterrorizada

a razão está em um processo de autodestruição

 

(inspirada do livro “A Barbárie Interior” de Jean-François Mattéi)

Anna Maria Maiolino,  26-10-2017

Sem-título, da série Vestígios I, 2000
Sem-título, da série In-Moto, 2006
Vista da exposição, detalhe da obra

23 de Abril de 2020

Que maravilha, Anna,

Obrigado.

Já nem podemos dizer que é premonitório, porque a verdade é que a humanidade tem cavado sua cova há muito tempo e em alta velocidade.

Mas é verdade, é preciso ter nostalgia da alma, nostalgia do amor e do maravilhamento. Sem gozo e grito, nada fará sentido. E essas coisas ninguém poderá salvar por nós, cada um de nós precisa encontra-las em si e partilhá-las com o outro para se arriscar a outros tipos de contágio – nem sempre será bonito, mas será vivaz, intenso e iconoclástico,

Um abraço,

Paulo

AL DI LÀ DÍ, 2019 – Primeiro ensaio geral público, 2019
AL DI LÀ DÍ, 2019 – Primeiro ensaio geral público, 2019
AL DI LÀ DÍ, 2019 – Primeiro ensaio geral público, 2019
AL DI LÀ DÍ, 2019 – Primeiro ensaio geral público, 2019