A solitude, o exílio e a guerra na obra da artista Isabel Rocamora
Com sua essência na performance, a artista hispano-britânica Isabel Rocamora, com quem bati um papo ontem (6 de maio), explora em seus filmes identidades individuais e culturais, a guerra e o exílio, por meio da linguagem do gesto em diferentes corpos humanos; em suas igualdades e diferenças em seus rituais, desacontecimentos, buscas, transições, aflições e descobertas. No sentido de absorver o ser humano, colocando-o em um contexto e capturando os comentários que ele produz nesse mundo.
Seus filmes atravessam as fronteiras do coletivo para dar atenção a cada indivíduo de forma bastante presente. Para ela, a presença de um momento é o que importa, nas solitudes do território. O que a unidade de cada ser desperta nela e no outro é uma de suas grandes motivações. O outro em sua diferença e em sua igualdade. A potência do ser humano vivida, experimentada, sentida.
Para Rocamora, a experiência do tempo no ser e estar de cada indivíduo é uma das fontes de sua pesquisa, criando um espaço onde a figura e o lugar possam se manifestar em sua forma mais absoluta, observando bem de perto esses corpos acontecendo. Ela dirige uma cena condensando um pouco de tudo o que viu desabrochar naquele espaço determinado: os estados emocionais, as fragilidades e as vulnerabilidades que surgiram. Ela busca criar, com esses corpos e esses lugares, um espaço para que o espectador possa encontrar sua própria forma, tentando sempre manter-se o mais longe da representação e mais próximo da realidade, da verdade.
Diferente de uma dança coreografada e regida pelas técnicas, em seus projetos ela deixa que o outro experimente a proposta do filme. acessando seu âmago e interagindo com a terra e a gravidade em seus corpos, criando identidades particulares, inóspitas.
Corpos que flutuam em uma terra de ninguém, em um tempo próprio, com a preocupação com o que o mundo (e nós mesmos) deve ser para que os processos aconteçam. Corpos não têm de ser como são, que o têm em si para serem de outra forma, sempre, na eterna temporalidade do ser humano.
Assim como busca a essência de cada corpo e indivíduo em seus filmes, ela também faz disso o mantra de seus processos criativos, de suas obras, nunca perdendo a epifania que deu origem a uma ideia, a semente fértil de cada filme.
O seu projeto “Horizons of exile” era para ter sido rodado, inicialmente, na Jordânia em 2006, mas por questões políticas entre Israel e Líbano, não pode ser concretizado em nenhum território do Levante. Isabel Rocamora teve, assim, que reinventar seu projeto, se afastando o mínimo possível da ideia inicial. Frequentou reuniões de refugiadas em Londres, onde vive a maior parte do tempo, e se aproximou de duas histórias de exílio: uma mulher iraquiana e outra do Curdistão. Com duas performers chilenas, filmou no deserto do Atacama, com vozes em off dessas mulheres muçulmanas, e o som do duduk (flauta armênia), que remete ao exílio de um povo.
Seres humanos que partem para o desconhecido, árido e vazio sem pontos de referência, para um não território, ou um território em transição. Isabel Rocamora está interessada na tensão do exilar-se, sobre o que acontece com a identidade, com a noção de um “eu” machucado nesse processo, muito na percepção do que somos ou do que achamos que somos… O ato de partir carrega muitas mortes e muitos nascimentos possíveis. De quantos partos uma pessoa precisa para nascer? É sobre as perdas e a demora dessas perdas por todo o processo, com a projeção de um futuro que não seja às cegas e que não pode ser tateado, sendo pautado apenas por alguma esperança desse novo horizonte.
O termo “horizonte” vem dos antigos gregos, que usavam uma das suas palavras para limite (horizein) para designar a linha entre a terra e o céu. Olhar para o horizonte é ver diretamente que vivemos num mundo, mas também que algo o transcende. Os horizontes servem, assim, para nos lembrar que tudo é perceptível apenas contra um fundo menos evidente, mas não menos potencialmente visível. O filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, em um exercício hermenêutico, interpreta o horizonte da seguinte forma:
“O âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. […]. A linguagem filosófica empregou essa palavra, sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracterizar a vinculação do pensamento à sua determinidade finita e para caracterizar, com isso, a lei do pregresso de ampliação do âmbito visual. Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver além disso. Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo os padrões de próximo e distante, de grande e pequeno. A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente a tradição”.
Em outra obra “Faith”, Rocamora sugere que a fé pode não só cruzar a linha do horizonte entre a Terra e o além, mas também as fronteiras que dividem os nossos planos horizontais.
Esse projeto em toda sua complexidade partiu de uma epifania durante as andanças solitárias da artista pelas ruas antigas de Jerusalém, quando fechou os olhos, escutando todos os sons religiosos que chegavam em uma comunhão espiritual em seus ouvidos, para além dos eternos conflitos; e ao abrir os olhos, viu todas as fronteiras e todas as segregações ali presentes, como em uma transcendência da experiência de ver esse mundo limitado. Por muito tempo, ela tentou reprimir a ideia desse filme, até quando não foi mais possível. Atenta a todas as dificuldades de produção, Isabel Rocamora nunca se afastou, em seu processo criativo, da primeira impressão intuitiva que teve, deixando toda segunda decisão para depois. A semente é a verdade do projeto.
O filme se passa nas paisagens cheias de significado e simbolismo do deserto da Judeia, longe das construções. Um judeu ortodoxo, um cristão ortodoxo grego e um muçulmano sunita rezam em sincronicidade de tempo e lugar. Para capturar a autenticidade do ritual local, Rocamora escolheu uma figura importante de cada religião, em suas orações específicas, cada um na parte permitida do deserto, em tomadas longas e individuais. Colocados em três telas diferentes, lado a lado, separados por um espaço, mas como um único ecoar de vozes e sensações. Ao olhar as montanhas atrás de cada um deles, juntas, há a formação de um horizonte. A possibilidade da fé.
Ela convida-nos, em seus projetos, a refletir o tempo todo, a ter a experiência do outro como temos a experiência de nosso próprio ser, com empatia, compreendendo a riqueza irreduzível que existe nessa relação. Reconhecer no outro, nessa figura que se tem a frente, uma humanidade igual a sua, e na diferença e da individualidade do outro, uma celebração.
Em “Body of War”, quatro soldados, entre poloneses e britânicos, estão na única pista de pouso existente na região da Normandia, o Aeroporto de Cherbourg, arquitetonicamente assombrado por bunkers fora de uso, construídas em 1943 pelos alemães como parte da Muralha do Atlântico. Nessa paisagem, esses soldados fazem movimentos do Krav Magá, um sistema de combate corpo a corpo desenvolvido em Israel, que envolve técnicas de luta, quase como uma coreografia cronometrada e calculada para matar. Vozes em off de testemunhos pessoais de soldados aposentados e soldados que passaram por guerras recentes (Iraque, Bósnia), permeiam o filme.
Para Isabel, dentro de cada código de linguagem tem o ser humano. Seu objetivo era extrair além daquele código de linguagem, a humanidade deles dois que é a pura presença, na humanidade do abraço. De repente, toda violência se dissolve e entendemos eles como humanos e não como soldados, e sim como vulneráveis e frágeis ser humanos abraçando um ao outro, apenas no dialeto daquele abraço. O que acontece quando olhamos para os olhos do outro resulta na impossibilidade de tirar essa existência do outro exatamente porque ele é outro. Como refletiu o filósofo judeu Emmanuel Lévinas:
A face do ser que se mostra na guerra fixa-se no conceito de totalidade. Os indivíduos reduzem-se aí a portadores de formas que os comandam sem eles saberem. Os indivíduos vão buscar a essa totalidade o seu sentido (invisível fora dela). A unicidade de cada presente sacrifica-se a um futuro chamado a desvendar o seu sentido objetivo.