O que separa um dia do outro? Verónica Flom e Joaquín Boz no Ensaio Palavra-Imagem
Para este Ensaio Palavra-Imagem, convidei a curadora argentina Verónica Flom e o artista plástico Joaquín Boz para ocuparem esse espaço com uma parceria feliz entre os dois. Desde fevereiro, quando conheci a obra de Boz, em Buenos Aires, essas palavras de Flom, vez ou outra, voltam em meus devaneios. Que alegria poder publicar aqui hoje.
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Notas sobre Los días, de Joaquín Boz
Existe um fenômeno que a ciência ainda não foi capaz de explicar chamado timidez da coroa. Os galhos de certas espécies de árvores crescem próximos, mas nunca se tocam. Como se elas pudessem se comunicar, cada árvore estabelece as margens de seu próprio espaço, seu próprio território. Longe de apoiar essas teorias, eu sempre acreditei que esse fenômeno fosse o oposto da timidez, como se, ao decidir não se aproximar, cada uma das coroas que formam aquela folhagem tivesse ganhado força, forjado uma identidade ou ainda conquistado seu próprio espaço. Eu encontro a mesma força nas figuras borradas e semi-isoladas que constituem as grandes pinturas de Joaquín Boz.
A força do conjunto, eu acho, está nos componentes que preenchem cada painel de madeira tão vigorosamente que obscurecem a composição e parecem ser o produto de alguma força cega. Diante de seu trabalho, tem-se a impressão de estar dentro de uma gruta pré-histórica, bem diante de uma pintura em caverna criada diretamente na pedra, antes da invenção dos pincéis. A paleta telúrica salpica o painel, como a terra manchando a camiseta de um menino. Parece uma volta à infância da humanidade, ao exato momento em que nós supomos que o Homo sapiens mantinha um contato direto e imediato com a natureza, antes de sua dominação. É também uma infância das formas, uma vez que os elementos (às vezes manchas, às vezes rodopios de tinta, às vezes nuvens escuras) parecem estar buscando suas formas definitivas, como se ele se movessem entre abstração e figuração, ou em direção a um estado desconhecido.
No melhor caso, mesmo que não associemos a elas um referente preciso, essas imagens isoladas tornam-se significativas para nós, como as pinturas nas cavernas foram significativas e talvez mágicas para o homem ancestral, ou como uma vassoura pode tornar-se uma criatura única, seja encantadora ou aterrorizante, aos olhos da vítima de um bom hipnotizador. Nós percebemos a força latente que elas possuem antes que ela se torne evidente. Nada é claro nessas pinturas. Talvez o principal interesse no trabalho de Boz seja explorar a força que se aninha dentro do borrado, do grosseiro, do nebuloso; dentro da larva que ainda luta para encontrar sua forma. Essa condição evolutiva é destacada pelo artista em alguns trabalhos em papel, que ele ensopa em óleo de linhaça para deixar um desenho inesperado emergir ao acaso. Plantas movem-se em direção ao sol para transformar luz em energia – com essa mesma lentidão deliberada, o óleo flui pelo papel.
É difícil saber se a disposição elegante e equilibrada de cores e formas é devida a decisões premeditadas, como as feitas por alguém caminhando sobre gelo fino, ou se, ao contrário, é um completo acidente de impulsos abruptos em frente à pintura. É precisamente nessa disputa entre o controle e o acidente, entre amarras e liberdade, onde a precisão de seu trabalho reside, tão exato quando um terno sob medida.
O que separa um dia do próximo? A resposta pode ser imediata, 24 horas. Mas pode-se intuir que apenas milissegundos distinguem o fim de um dia e o começo do próximo. Certamente, não se pode descrever a passagem do tempo sem usar dias como unidade de medida. Existe uma distância que separa cada unidade de medida entendida como um dia. É provavelmente nessa distância, tão sutil quanto aquela entre as árvores que não se tocam por timidez, onde vive a singularidade: ainda que pareçam similares, jamais existirá um idêntico ao outro.