Harmonia musical, humana e cósmica: de que música somos compostos?
Qual é a música que nos compõe enquanto pessoa?
“Necessariamente, a música que nos constitui não é nem boa nem má; ela é a música que cada um de nós anseia naquele momento para poder entrar em contato com a sua alma, com o outro e com a alma do mundo. Não há satisfação maior do que a música e do que a dança, que funcionam como orgasmos cósmicos, onde se entra em comunhão com a vida.” Refletiu André Balboni, músico e estudioso da relação fundamental entre música e filosofia, autor do livro Sopro das Musas (Odysseus Editora, 2018), com quem conversei na terça-feira (12), sobre a importância da música em nossas percepções do mundo, desde o pensamento grego do século VIII a.C. até os dias de hoje.
Na Grécia Antiga do século VIII antes da nossa era, ocorreu, com o surgimento das cidades-estados, um ressurgimento da escrita e dos poetas-cantadores (aedos) que davam voz a tudo que poderia se apagar. Um canto passado de geração em geração, contando as histórias dos antepassados, até Homero. Cada vez que esses poetas-cantadores se apreentavam diante do público, invocavam as Musas, deidades afiliadas a Apolo, deus do sol, da luz, mas também da música e da profecia.
Diferente do que vem a cabeça quando usamos o termo “musas” hoje, para os gregos, as nove Musas, filhas de Zeus e Mnemósine (Memória), são uma constelação de seres que têm papel fundamental na transmissão de sabedoria, no bem viver inspirando ciência e arte e se relacionam diretamente com a memória. Não por acaso a morada das musas, o Museion, dá origem a palavra “museu”, um dos muitos “lugares de memória” das sociedades ocidentais.
As musas visitam o mundo para fundar a memória do ser humano, pois auxiliam na formação da memória através da musicalidade do ritmo, melodia e harmonia, e guardam os aspectos mais fundamentais da vida humana.
A palavra “música”, vem de musiké e significa “aquilo que é das Musas” – nesse campo cosmológico do saber. Portanto, um músico doa o divino às pessoas, embuído de uma responsabilidade ética. Segundo a concepção grega, a música terrena emula a Harmonia Cósmica (ou das Esferas), a música silenciosa do movimento dos planetas.
Cada pessoa possui uma musicalidade inerente que é capaz de ressaltar na alma do outro diferentes processos catárticos através de uma melodia singular. A musicalidade depende da relação entre as três categorias da música: ritmo, melodia e harmonia. O ritmo, que provém da métrica da forma poética da forma do poema, é uma duração das notas que na concepção bergsoniana é aquilo que resiste entre uma nota e outra, em um tempo mais interno; melodia significa “canto da voz ou incorporado”, uma fala que revela a singularidade e a verdade de cada ser; e a harmonia, por fim, é a relação estética entre dos sons. A música do ser humano é um espelhamento da harmonia cósmica e essa mesma harmonia cósmica permeia a alma humana. Essa conexão de almas humanas e divinas é facilitada pelas Musas.
Do ponto de vista da filosofia platônica, temos as seguintes relações entre a música e o ser humano: ritmo-corpo, melodia-palavra, harmonia-alma. Mas, do ponto de vista da filosofia contemporânea, principalmente no campo ético, como é o caso do filósofo francês Emmanuel Lévinas, temos uma mudança de perspectiva sobre essa questão da filosofia da música. Para Levinás, a questão não está somente naquilo que é bom ou ruim, mas na noção de que o encontro com o outro nos constitui enquanto seres humanos. Assim, se Platão estava em busca da “boa música”, em Levinás podemos alçar uma pergunta mais profunda: qual é a música que nos constitui enquanto pessoa?
Qual a melodia verdadeira? Qual o contato com a verdade que reverbera no outro? Qual a ação e reação que o eu causa no outro? A música tem essa potência do encontro, de uma relação do despertar. Há outras relações que estabelecemos ou músicas que nos desconstituem? Esse é o Sopro das Musas, sempre em busca de descortinar um novo mundo por meio da arte.
A música amplia a nossa percepção, nos desperta e desvela outras camadas do olhar, do sentir e do viver, assim como uma pintura, uma fotografia, um filme ou um livro. Cada um, nesses dias, tem acesso a sua melodia interna, a sua própria voz e o seu silêncio. Uma verdade que de uma forma ou de outra vibrará no rosto do outro, celebrando os encontros e desencontros da nossa vida.
Escolhi ilustrar este texto com imagens do fotógrafo malês do povo fula Malick Sidibé, que retratou jovens nos anos 60 em danças fervorosas com trilhas sonoras inéditas importadas do Ocidente, nas salas de casa. Para Sidibé, a música foi a verdadeira revolução; todos podiam se expressar com seus corpos, juntos.
Fique em casa. Tente ligar o som, balançar o corpo e experimentar a comunhão cósmica que ecoa do seu estado de verdade.