Uma temporalidade descontínua – Ensaio Palavra-Imagem com Dominique Gonzalez-Foerster
Hoje no Ensaio Palavra-Imagem, o texto do curador, pesquisador e jornalista Victor Gorgulho com as lindas imagens da francesa Dominique Gonzalez-Foerster. Gorgulho, em sua pesquisa, se debruça, dentre outras temáticas, sobre as contradições dos projetos de modernidade desenrolados ao longo do século XX, ao redor do mundo; Gonzalez-Foerster, um dos nomes mais expressivos da arte contemporânea, trabalha com filmes, fotografias e instalações, com retrospectivas no Centre Pompidou (Paris), Tate Modern (Londres) e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ).
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Adentrar a obra de Dominique Gonzalez-Foerster é a experiência de habitar um não-lugar. Criados desde a década de 1980, seus environments são trabalhos instalativos cruzados por temporalidades distintas e informados por referências oriundas do cinema, da literatura e das artes visuais. Quando pensados para o interior de espaços expositivos (museus, galerias), funcionam como câmaras herméticas, seladas, vedadas ao contato com o mundo externo. Quando muito, são banhados pela luz que vem deste.
São diversas as camadas semânticas que nos permitem aferir leituras poéticas destes lugares imaginados de Gonzalez-Foerster. O inglês Thomas Moore, em romance de 1516, foi quem primeiro cunhou o termo utopia, junção entre as palavras gregas “ou” (não) e “tópos” (lugar), designando, portanto, um lugar inexistente, idealizado. É Michel Foucault, no entanto, quem atualiza as ideias de Moore no texto “Outros Espaços”, de 1984. Nele, o filósofo francês discute a noção de heterotopias, lugares e espaços não mais imaginados, mas sim reais; aglutinadores de múltiplas camadas de significação, “cujas complexidades não podem ser vistas imediatamente”. As últimas décadas, por sua vez, trouxeram consigo um uso cada vez mais usual e disseminado da palavra distopia, na tentativa de dar conta do vertiginoso zeitgeist que envolve as sociedades contemporâneas. O silêncio dos ambientes de Foerster nos indaga: quais espaços comuns são hoje possíveis de serem imaginados, diante da espessa névoa que se apresenta em um horizonte cada vez mais próximo e real?
Mais do que embaralhar passado, presente e futuro, os ambientes de Dominique Gonzalez-Foerster parecem recusar qualquer lógica de uma temporalidade contínua, ditada pelo tempo 24/7 que hoje nos engole em sono, sonhos e cotidiano. Com o que anda a sonhar o inconsciente coletivo diante do implacável corte imposto pela pandemia? Terá o confinamento nos reservado sonhos em espaços cerrados, obtusos? Ou nosso cansaço dos artíficios do digital nos levará de volta à natureza, vislumbrando coreografias de baleias em oceanos e ouvindo cantos de pássaros raros no seio de florestas tropicais? Ou, ainda, o enclausuramento em ambientes domésticos nos endereçará sonhos de espaços urbanos reconstruídos, ressignificados; habitados agora por seres mascarados cujo desejo de justiça social nos conduzirá à destruição de monumentos de falsos líderes e conquistadores de nossa “história”?
Dentro e fora, on-and-off, dicotomias da exaustão. “Só me sinto viva quando estou online”, me diz uma amiga durante uma vídeo-chamada. Se em um primeiro momento celebramos a implosão do frenesi do mundo tal qual o conhecíamos, agora já nos deparamos com um iminente desejo de retorno à forma. Um novo normal, para quem, afinal? Hiper-conectados, superexcitados, atrofiados — nunca estivemos tão live, nunca estivemos tão dead. Estaremos fartos das telas quando tudo isso passar? Desaceleração ou extinção: tudo isso irá passar? Ainda há tempo de refundar o tecido coletivo do sensível?
Um avião solitário cruza o céu em altitude: é possível ouvir seu zumbido mesmo dentro de um espaço fechado. Um foguete tripulado rasga a órbita da terra em disparada, o telefone apita mais uma notificação. Ainda estamos vivos, isto é certo, e isto é muito.