A quietude do olhar – a obra da dinamarquesa Trine Søndergaard

Cassiana Der Haroutiounian

” Capturar um estado de ânimo, aproveitar um pensamento
de clareza líquida e de espírito
É como segurar uma vida incompleta e que treme na mão.
É preciso vestir ela de palavras e estrofes
Moldar um traje de proteção
Para que alguém através dele possa vislumbrar remotamente
Tudo aquilo que a pessoa nunca chega a contar/dizer”

(Poema da escritora dinamarquesa Tove Ditlevsen, enviado pela artista)

Uma imagem que nos convida a permanecer. A experiência da espera, do devir. Assim são as fotografias da dinamarquesa Trine Søndergaard, com uma estética silenciosa, aterrada na sobriedade e nas raízes de um solo profundo, com quem bati um papo na última terça-feira (16).

O olhar profundo e ausente de seus retratos combina de forma precisa e perfeita com vestimentas típicas dinamarquesas (pertencentes a museus históricos).  A sensação da imagem introspectiva provoca o devaneio e o estado contemplativo no espectador.

Trine é uma fotógrafa que afirma abertamente pertencer à cultura de seu país de origem. Em muitos de seus projetos, quase sempre com figuras femininas em cena, elementos da história da Dinamarca estão presentes. “Sempre estive interessada em estar aqui e tentar explorar as coisas ao meu redor ao invés de me asfatar, decidi mergulhar no meu próprio entorno”, afirma a artista. Ela coloca luz em elementos dessa sociedade que quase nunca foram consideradas importantes na arte, na questão do feminino e nas histórias das mulheres do passado, de certa forma. Muito mais do que pelas histórias pessoais de cada pessoa retratada, a presença, o ser e o estar desse ser, independentemente de sua trajetória, de sua jornada e de seu passado.

Em narrativas poeticamente fluidas, sua obra é marcada por precisão e sensibilidade que coexistem com uma investigação da fotografia, dos seus limites e do que constitui uma imagem. Essa sempre acontece de forma intuitiva, na sua própria necessidade de aquietar, silenciar o caos e buscar o equilíbrio entre cada camada que existe dentro e fora da Trine mulher e da imagem. “Eu vejo as imagens e existe um espelho do sentimento, tem um tipo de conforto e de satisfação… é algo que se desenvolveu ao logo do tempo…as imagens vieram primeiro do que a sensação que elas carregam”, reflete.

Ela trabalha com fotografia numa maneira de formular coisas para si mesma, tendo coragem para defender ou apresentar ideias que soariam muito radicais ou pesadas pela fala: “A imagem é mais aberta e a palavra é datada. A imagem traz emoções do autor, mas também de quem a vê, ultrapassando a camada direta de uma só palavra.

Os seres humanos e os espaços de casas a serem demolidas que são por ela fotografados causam a mesma sensação em quem as vê: paisagens contempladas. A solidão e o tempo estão impressos na imagem. Nas portas e janelas de edifícios com história, agora vazios, na espera de se tornarem algo, existe o entrelugares, habitando esse tempo suspenso, assim como em seus retratos. “Dirijo muito as pessoas que eu fotografo. Tento dirigi-las para serem corpos presentes no espaço…muito interessada nesse entre, que antecede a pose.” A única diferença entre um ser vivo e um espaço vazio é a existência da minha ação e da reação que vem em troca.”

É essa a função do espaço […]. Aqui o espaço é tudo, pois o tempo já não anima a memória. A memória – coisa estranha! – não registra a duração concreta, a duração no sentido bergsoniano. Não podemos reviver as durações abolidas. Só podemos pensá-las, pensá-las na linha de um tempo abstrato privado de qualquer espessura. É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas permanências. (Bachelard, Gaston, a poética do espaço)

Nas casas abandonadas, existe a habilidade de um estar existencial. Estar por uma fração de tempo dilatada em um lugar onde nada acontece. E como isso é lindo. E como isso é quase um processo meditativo. Existe a preocupação com a espera, permitir-se existir e deixar que o tempo também exista junto, numa mimese contínua e suspensa. Talvez algo que está por vir ou talvez na espera de algo que nunca acontecerá. Em seus retratos não é diferente. O tempo está ali, nas mulheres, nos tecidos, na luz e no fundo. Transcrever a idéia e o sentimento de presença na ausência.

a porta
como toda fronteira
é apenas para se atravessar rapidamente ela já não serve mais um corpo-a-corpo
e já se está do outro lado
dela nasce o fora e o dentro
ela que é seu vazio

(Ana Martins Marques)

Søndergaard – que prefere que as mulheres a serem retratadas sejam de uma faixa etária quase invisível –  no ensaio feito para a exposição “Face to Face” no museu Thorvaldsens, em Copenhagen, escolheu mulheres da sua idade, com a roupa que vestiam, para  ocuparem, individualmente, o pedestal que restou na sala vazia do museu antes ocupado por uma escultura. Nos retratos, cabelos grisalhos substituíram o mármore branco colocando Thorvaldsens em espera para explorar o campo de possibilidade criado pela ausência.  “Quando você, como mulher, envelhece, você fica meio invisível… e esse projeto foi uma procura pela beleza e potência do envelhecer feminino”.

As mulheres-esculturas de suas fotografias trazem a extensão do momento, com a alma e a quietude das esculturas do museu. Aliás, não só nessa série, em todas.

O tempo, o tempo e o tempo… cada presença feminina, em cada retrato de toda sua obra, sem sua identidade real em pauta, é capaz de contar muitas histórias, com narrativas plurais, densas e melancólicas. O olhar que permanece, decanta o próprio ser e o outro a sua frente.

Face to Face” no museu Thorvaldsen de Copenhagen fica em exposição até outubro.